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Autores envolvidos por Proudhon na discussão de seu problema

No documento ATESE (páginas 39-44)

30. Um ponto para o qual é preciso atentar é o fato de que, em Proudhon, teoria e método de conhecimento, que são o objeto da presente pesquisa, valem igualmente para a ciência e para a formação e o desenvolvimento intelectual de uma sociedade ou de um indivíduo, de modo que para ele não há ruptura entre filosofia da ciência e filosofia da educação29. A pesquisa então traz à tona o confronto, colocado em cena por ele, entre o ensino acadêmico de filosofia na França naquele contexto histórico, e o seu autodidatismo declaradamente anti-acadêmico.

A filosofia acadêmica francesa, na época, é marcada, conforme já dito, pela corrente eclética de seu contemporâneo Victor Cousin. Cousin é uma figura de importância nos órgãos governamentais responsáveis pelas diretrizes da educação na França de então, mas essa filosofia concorre com a de um outro contemporâneo e conterrâneo de Proudhon, Augusto Comte, cuja corrente positivista, em contraste com o ecletismo cousiniano, exerce crescente influência no campo científico, promovendo um 29 Essa proximidade entre a educação e outros campos de produção e circulação de conhecimentos está

movimento histórico que tende a valorizar a ruptura entre filosofia e ciência — e, como decorrência, embora não seja este o propósito de Comte, a promover também um distanciamento crescente entre a esfera da educação e a da produção científica. Das duas esferas esta última ainda é, na época, justamente a mais aberta ao exame da realidade social. Proudhon luta contra essa ruptura e esse distanciamento, e se opõe às duas correntes, tanto a positivista quanto a eclética, sem deixar de assimilar em suas formulações alguns elementos de cada uma delas, especialmente da primeira.

Sua resposta ao problema dos filtros filosóficos encontra-se justamente no centro dessa luta, porque esse problema — formulado por Proudhon de outro modo, e não exatamente nos termos em que é formulado nesta pesquisa — acaba por traduzir para ele o que há de mais importante a ser considerado no referido conflito entre o ecletismo acadêmico e filosófico de Cousin e o positivismo científico comteano: a questão da validade e do valor dos conhecimentos humanos para a vida prática e corriqueira de cada um.

31. Cousin e Comte são enfrentados por Proudhon na qualidade de representantes — e em certa medida deturpadores — de outros dois grandes vultos intelectuais: respectivamente, o idealista Hegel e o assim chamado “socialista utópico” Saint-Simon. Ao enfrentá-los, Proudhon enfrenta também em alguma medida esses dois vultos. Mas ao mesmo tempo, por outro lado, corrige Cousin e Comte como se retomasse algo do que julga ter sido deturpado de Hegel e Saint-Simon pelo ecletismo e pelo positivismo. De Hegel, na verdade, retoma pouco. De Saint-Simon, um pouco mais. Mas ao fim e ao cabo, não cabe considerá-lo nem saint-simoniano nem hegeliano. Mais do que uma retomada, portanto trata-se de uma crítica ao sentido específico que Cousin e Comte escolheram dar às suas leituras de Hegel e Saint-Simon, uma crítica ao específico deslocamento de relevâncias que, mediante seus filtros particulares, escolheram operar nesses autores. Fosse outro o deslocamento, talvez escapasse aos ataques proudhonianos.

32. Proudhon realiza esse enfrentamento crítico em torno do que chama de “o problema da certeza”, ou “do critério de certeza” — problema que o preocupa constantemente e reaparece mencionado em passagens espalhadas por diversas de suas obras ao longo da vida — e o faz mobilizando também a referência a outros autores,

especialmente o socialista utópico Fourier e os filósofos Kant e Hume. O problema recebe dele um tratamento concentrado acima de tudo em duas obras: Da criação da ordem na humanidade ou Princípios de organização política (1843) e Filosofia do progresso (1852). Em cada uma dessas obras, opera uma drástica reformulação crítica de um conceito comteano fundamental, sem com isto encaminhar-se para o ecletismo.

Quanto a Kant e Hume, de certo modo opera um retorno do primeiro ao segundo — uma espécie de retorno pós-kantiano a Hume. Retorno “pós-kantiano” porque marcado não apenas pela leitura de Kant, mas também pela de outros pensadores alemães, idealistas ditos “pós-kantianos”, que contribuem com o modo como o pensamento kantiano é filtrado por Proudhon.

Nada disto, porém, será aprofundado ou detalhado nesta pesquisa, que deve limitar-se à exposição mais básica das formulações que são diretamente proudhonianas, procurando dar destaque aos aspectos relativistas e céticos dessas formulações. Tais autores figurarão somente como sombras ou reflexos que se projetam sobre Proudhon dando ao seu pensamento certas tonalidades, reconhecíveis pelos estudiosos especializados nessas diferentes filosofias. O que está em foco, de fato e diretamente, são os conceitos e articulações de Proudhon, e se fará apenas — no decorrer dos tópicos 1 a 4 do Capítulo I — um breve e superficial mapeamento, bastante restrito em relação às dezenas e dezenas de nomes sempre mencionados por Proudhon, estabelecendo quais os filósofos com os quais ele trava maior diálogo especificamente no que diz respeito à formulação de seu método em 1843, que é o momento principalmente focalizado nesse processo de formulação; e deixando de lado inclusive uma série de outros que entrariam necessariamente em cena se considerado também o livro metodológico-epistemológico de 1852, Filosofia do progresso. De todas essas ausências, note-se desde já, há uma que chama a atenção: a do socialista utópico Charles Fourier, pois Proudhon faz longas menções a ele no próprio Da criação da ordem na humanidade. Ocorre que nessas menções, Proudhon curiosamente não aponta de fato as mais fortes influências fourierianas em seu pensamento, e nem mesmo explicita o papel que desempenham no caso específico de seu método. Apenas elogia Fourier como primeiro a vislumbrar a noção de “série” com olhar metodológico, esclarecendo por outro lado que Fourier tem

pouco ou nada a oferecer neste sentido além da própria noção de “série”, e trabalhada sem detalhamento. Sabe-se no entanto que a influência de fourier é maior do que isto, e será assinalada30.

33. Pode-se dizer que a desatenção às referências de Proudhon a outros filósofos constituem, de todas, uma das lacunas mais prejudiciais à compreensão de seu método, nos estudos realizados a seu respeito até o momento, e a presente pesquisa pretende sim esboçar um movimento claro no sentido de saná-la. Mas a lacuna é muito grande, e esse movimento ainda está longe de ser o direto exame dessas relações, porque além de grande, ela deriva de uma outra lacuna: a desconsideração de Proudhon como filósofo não resulta da ignorância em relação a esses diálogos seus com a comunidade os filósofos de diferentes épocas, e sim o contrário. Não se dá atenção a esses interlocutores no estudo de Proudhon, porque não se julga que ele seja de fato filósofo, de modo que ele não tem despertado a atenção de estudiosos que se interessam por tais autores e que conhecem o métier dos mesmos.

Decerto se poderia resolver a dificuldade fazendo um levantamento rigoroso e refletido desses diálogos, de modo que a face filosófica de sua produção pudesse emergir em conjunto com essa rede de interlocuções. Mas são muitos os interlocutores, seria preciso não uma, e sim muitas diferentes teses de doutoramento complementando-se para percorrer esse caminho.

Além disto, o repúdio do próprio Proudhon a esse tipo de estudo “de autor”, mais adequado ao proposto em sua época pelo academicismo dos filósofos ecléticos, acaba por tornar toda a sua extensa produção intelectual permeada a cada passo por muitas dificuldades neste sentido — propositalmente plantadas em sua obra pelo próprio Proudhon, inclusive. Alusões indiretas sem sequer a menção aos nomes dos filósofos aludidos, por exemplo — conforme o que se verá31, referente a Kant e Hume — às vezes chegam a pesar tanto quanto suas passagens de análise direta e explícita de uma filosofia.

30 Cf. Capítulo I, Tópico 1, Sub-tópico A.

Proudhon não quer ser estudado à maneira acadêmica. É claro que tal rede dialógica enlaçando-o com outros filósofos está presente e não poderia deixar de estar, em suas reflexões filosóficas, mas mesmo assim ele prefere que seus textos sirvam para o leitor diretamente como instrumentos para a reflexão sobre os acontecimentos ao seu redor, e trata então de desviar-se das condições que poderiam transformar esses textos, de provocativos exames dos acontecimentos, em peças de leitura e apreciação acadêmica, com reflexões cujos níveis mais profundos seriam acessíveis, no limite, apenas para a comunidade filosófica.

Nas condições históricas atuais, entretanto, e sendo Proudhon um autor desconhecido, esse tipo de estudo acerca de sua obra passa a ser importante, porque fornece referenciais para que seus pensamentos, melhor compreendidos, possam ser depois simplificados e difundidos com distorções menos graves, e tornarem-se ao menos acessíveis para a população.

A cultura filosófica brasileira, marcada por uma clara herança francesa, mantém até hoje, e bastante vivas — e nem sempre percebidas com clareza nos meios acadêmicos — algumas marcas historicamente herdadas da discussão entre ecléticos e positivistas empreendida no país de Proudhon no século XIX, e é da convicção do presente pesquisador que aclarar o posicionamento polêmico e agressivo do autor nesta questão, em seu contexto, examinando por dentro suas formulações metodológicas para que se possa melhor avaliá-las, pode ser de grande utilidade não apenas para futuros estudos proudhonianos, mas também para a reflexão acerca da cultura filosófica brasileira e do melhor rumo que se pode procurar dar a ela daqui para o futuro.

I - PROUDHON FILÓSOFO

1. Alguns interlocutores privilegiados por

No documento ATESE (páginas 39-44)