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Saint-Simon por trás de Comte?

No documento ATESE (páginas 106-109)

98. Todos esses procedimentos, bastante avessos a práticas acadêmicas tradicionalmente consideradas mais rigorosas, não são, como se vê, mero produto de uma falta de correta formação acadêmica: estão — e isto se tornará mais claro no decorrer desta pesquisa — coerentemente inscritos em uma atitude de recusa radical, por parte de Proudhon, de toda uma postura que o academicismo tradicional, já desde a França de sua época, parece-lhe representar, e que em sua avaliação, contribui para a sustentação de uma esfera de produção intelectual isolada das práticas sociais efetivas, dominada por elites econômicas e, na prática, com acesso vedado para a população em geral, que acaba sujeita à condição de mero público “leitor” sem espaço para manifestação e articulação de produção intelectual própria — e a atenção de Proudhon se volta, aqui, especialmente para o proletariado.

É também em última instância nesse quadro que se deve compreender, afinal, a formulação, por Proudhon, dessas noções que parecem filiá-lo ao positivismo comteano. Antecipando a questão, a aparente filiação é na verdade uma frontal oposição crítica, e o foco dessa crítica é precisamente aquilo em que Comte acaba por contribuir, com seu positivismo, para a formação dessa esfera intelectual à parte, desconectada de suas interações sociais e de efetivas vias de acesso por parte da população proletária. Por isso mesmo é que não se deve compreender Proudhon desconectando-o da referência a Comte, como as leituras de algunos comentadores sugerem. É o caso dos comentários de Armand Cuvillier, por exemplo.

99. Também Georges Gurvitch, talvez o mais famoso comentador de Proudhon, tende a examiná-lo sem a referência a Comte, e remetendo-o ao invés disto a Saint- Simon. Segundo o próprio Gurvitch, aliás, Proudhon “não disperdiçava ocasião de manifestar sua extrema antipatia intelectual em relação a Comte” (GURVITCH, 1970, p. 27), e vale a pena reproduzir uma citação do próprio Proudhon colhida por ele neste sentido: “A leitura deste animal de Augusto Comte, o mais pedante dos sábios, o mais fraco dos filósofos, o mais vulgar dos pensadores, o mais insuportável dos escritores, me subleva” (PROUDHON, Correspondência, tomo V, p. 7). O que se verá aqui é que essa oposição não se limita ao terreno da antipatia pessoal, e tem grande importância para a

compreensão da filosofia de Proudhon. Não se deve portanto descartá-la em favor da consideração de teóricos com os quais Proudhon simpatiza.

Com exceção do par contraditório formado por Comte e Saint-Simon, as referências filosóficas proudhonianas apontadas por Cuvillier, bem ou mal são, todas elas, tratadas diretamente pelo próprio Proudhon no Capítulo III de Criação da ordem — aquele no qual fundamenta seu método e que constitui o centro do interesse desta pesquisa. As referências econômicas aparecem principalmente depois dessa fundamentação, nos capítulos seguintes do livro de Proudhon (capítulos IV, V e VI). Mas é nos capítulos iniciais, I e II, que se desenvolve, como ponto de partida para essa fundamentação, aquilo que para muitos comentadores parece ser, em Proudhon, uma exposição da lei comteana dos três estados — embora sem que o próprio Proudhon atribua isso claramente a uma influência de Comte — e é este o primeiro foco de atenção aqui. A referência mais correta será mesmo a Saint-Simon, como apontam Cuvillier e Gurvitch? Já se antecipou neste capítulo que Comte não pode ser descartado, precisamente em função da oposição de Proudhon a ele.

Mas e Saint-Simon? Proudhon, segundo Cuvillier sempre “tão atento a indicar suas referências” (cf. p. 18 de sua Introdução), não faz referência direta a Comte, e o que nele parece comteano pode ser na verdade saint-simoniano. Não se deve considerá-lo, então, mais filiado a Saint-Simon do que a Comte? Em outras palavras, poderia-se afirmar que a oposição de Proudhon a Comte só toma sua forma mais clara como uma oposição saint-simoniana? Seria um retorno a Saint-Simon? Ou talvez a retomada de uma trilha originalmente aberta por Saint-Simon da qual Comte se teria desviado?

100. Em primeiro lugar é preciso observar que Proudhon de maneira nenhuma é “tão atento a indicar suas referências”. Essa suposta constatação de Cuvillier não faz o menor sentido. Proudhon é de fato profuso e pode-se dizer que bastante generoso em suas indicações, dando lugar inclusive a muitos autores completamente desconhecidos. Mas decididamente não é preciso nem direto. Portanto poderia sim estar referindo-se indiretamente a Comte. O fato de ser uma referência indireta, no entanto, não diminuiria o peso de importância dessa referência para a compreensão de Proudhon. E sim, o livro

Criação da ordem apresenta três estados de desenvolvimento do pensamento que se assemelham demais a esses estados comteanos para que se possa ignorar isto, e que na verdade não se encontram delineados em Saint-Simon da mesma maneira, mas apenas esboçados em textos escritos conjuntamente pelos dois, mestre e discípulo, e que marcaram, justamente, a ruptura entre eles.

O que se vê é que Proudhon está atento a essa ruptura, e que a referência a Comte só pode ser minimizada em relação à referência a Saint-Simon na medida em que se examinem as filiações de Proudhon deixando em segundo plano suas confrontações e enfrentamentos. Como a postura metodológica aqui adotada é diferencial este decididamente não é o caso, e Comte, portanto, volta à cena como foco dos ataques críticos de Proudhon. Por outro lado será o caso de destacar não tanto a filiação de Proudhon em relação a Saint-Simon, mas também as suas diferenças em relação a esse socialista utópico, de modo que, se por um lado serão devidamente diferenciados um do outro Saint-Simon e Comte — na medida em que necessário, e estritamente nessa medida — revelando indiretamente o aspecto saint-simoniano da oposição de Proudhon a este último, por outro Proudhon deve ser diretamente diferenciado também de Saint-Simon — diferenciação para a qual Gurvitch atenta, mas que é descuidada por Cuvillier — e também diferenciado conjuntamente do par Saint-Simon/Comte naquilo que indiretamente se revelam como aspectos comuns desses dois.

4. Comte ou Saint-Simon? Hegel ou Cousin?

No documento ATESE (páginas 106-109)