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Idealismo alemão à francesa?

No documento ATESE (páginas 44-67)

34. A certa altura, na carreira intelectual de Proudhon, ele se vê habitualmente reconhecido, entre os estudiosos socialistas, tanto franceses quanto alemães, como “o mais alemão dos franceses”, em vista da linguagem por vezes bem mais abstrata que faz

parte de seu estilo, e pelo que esses leitores julgam detectar em seus textos como um constante diálogo indireto com os pensadores do idealismo alemão. O elo mais comum que eles costumam observar em Proudhon, nesse diálogo indireto, é com Hegel.

Mas os socialistas alemães de extrato hegeliano, atribuindo ao diálogo especificamente com Hegel uma importância muito maior, tendem a compreender isto não propriamente como um diálogo, e sim como um hegelianismo de Proudhon, e abordando-o sob este ângulo, mostram-se cada vez mais exigentes quanto a uma suposta fidelidade que Proudhon deveria ao pensamento hegeliano original, quando Proudhon, no mesmo passo, mostra-se justamente cada vez mais distante de Hegel, bem como aliás de qualquer outro idealista alemão.

Como muito do olhar lançado por esses leitores hegelianos sobre Proudhon permanece até hoje, é preciso esclarecer alguns pontos: primeiro, Proudhon jamais pretendeu, em qualquer momento de sua vida, ser fiel a nenhum autor além de si mesmo, e em seus textos sempre procura deixar isto muito claro; e segundo, jamais se pretendeu “idealista”, embora talvez já não coloque isto em termos tão claros. Dependendo do aspecto de sua obra ao qual se refere, se diz ora “empirista”, ora “realista”, ora “ideo- realista”, mas cada um desses termos é usado por Proudhon de uma maneira que lhe é peculiar e que nem sempre coincide com o uso normal que se faz deles.

35. “Empirista”, “realista”, “ideo-realista” — o que significam então essas nomenclaturas, para Proudhon? O “empirismo” proudhoniano consiste por um lado em experimentalismo que deve ser compreendido em sentido prático, bem mais do que em sentido sensorial, pois ele entende por conhecimento “empírico” aquele obtido mediante a interação prática com o objeto de conhecimento, interação que inclui a atividade sensorial, mas não se limita a ela; e os dados colhidos por tal experiência também não são de caráter estritamente sensorial, mas caberiam talvez no termo “intuição” tal como compreendido filosoficamente, isto é, como apreensão imediata e, considerada exclusivamente em si mesma, evidente — mas seria preciso então considerar sob este termo indiferentemente e indistintamente intuições sensoriais e intuições intelectuais.

36. A noção proudhoniana de “realismo” é, basicamente, a de uma defesa da noção de que o “real” é o próprio campo fenomênico. Proudhon utiliza muito a expressão “fenômeno”, tendo-o extraído de suas leituras de Kant, mas o reformula em um sentido que se aproxima bem mais do sentido de pródela (aparência)32 do ceticismo pirrônico; no entanto, também não coincide com ele — o preciso conceito proudhoniano de fenômeno será esclarecido mais adiante33 —, cabendo acentuar aqui que, para Proudhon o fenômeno ocorre à mente do sujeito psicológico, individual ou coletivo34, e que há graus de

fenomenicidade, o fenômeno pode ser mais presente ou menos para o sujeito, sendo que o mesmo fenômeno pode variar de grau.

37. Mas o termo “realismo”, além disto, tem quase sempre, para Proudhon, o sentido de uma oposição ao romantismo filosófico. O realismo fenomênico e psicológico de Proudhon é, portanto, um realismo anti-romântico, e é anti-romântico principalmente porque, opondo-se à valorização do “absoluto” e à crítica das aparências por parte dos filósofos românticos, considera que o fenômeno é mais presente, tem maior fenomenicidade e portanto maior realidade, na medida em que mais nega o absoluto. O fenômeno, segundo Proudhon, se constrói por essa negação, ele é a própria negação, ou dissolução, do absoluto — ou mais precisamente, o absoluto é a negação do fenômeno, e ser “realista” significa mover-se contra os supostos absolutos no sentido de reafirmar e realizar o campo fenomênico, sob a suposição de que a realização completa do campo fenomênico anularia e faria desaparecer a suposição de qualquer “absoluto”.

38. O termo “ideo-realismo” — extraído de Fichte, mas que pouco ou nada tem a ver com a formulação original fichteana — apresenta, em Proudhon, triplo sentido. Por um lado, refere-se à consideração de que as idéias têm realidade própria no interior do campo fenomênico, sendo elas próprias fenômenos à maneira de quaisquer outros. Por 32 Pródela é tudo aquilo que “aparece” ou “ocorre” à mente do sujeito individual, independentemente do caráter sensível ou intelectual dessa ocorrência ou “aparência”, ou de ser “real” ou “ilusório”, e independentemente também de qualquer afirmação de um ádela, isto é, de algo inaparente — a maneira de um ser ou substância que seria real em si mesmo, por exemplo — a dar sustentação a essa aparência. Cf. SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of pyrrhonism. London: Harvard University Press, 2000, vol 1, p. 15 (Edição bilíngüe, acompanhada do original em grego). Cf. também PORCHAT PEREIRA, Oswaldo. Sobre o que aparece. In: Vida comum e ceticismo. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 166-212. 33 Cf. Tópico 2, sub-tópico A do Capítulo 2 desta pesquisa.

outro lado, à consideração de que, sendo fenômenos de um tipo muito particular, podem além disso representar outros fenômenos, e assim fazerem-se “realistas”, isto é, dotadas de um sentido que aponta para o real, além de em si mesma já serem reais enquanto idéias.

Ou podem pelo contrário constituir-se apenas como realidades em si mesmas, enquanto puras idéias sem referência a nenhuma outra realidade fenomênica, e neste caso, apresentam um grau de realidade diminuído — “ideo-realismo” seria então, neste caso, a defesa da primeira dessas condições e a oposição à segunda, no sentido de uma luta contra as idéias que não têm referências reais e fenomênicas; sendo que o apego a idéias sem referência caracteriza o que Proudhon chama, em oposição ao “ideo- realismo”, de “ideomania”35. E finalmente, “ideo-realismo” refere-se também à hipótese — segundo Proudhon a ser sempre e incessantemente submetida a novos exames — de que certas idéias encontrem alguma referência extra-fenomênica, isto é, algo que rompa com a sua própria concepção da realidade como necessariamente fenomênica e apresente realidade em si mesmo.

39. Colocados os termos com que o próprio Proudhon costuma definir seu posicionamento, torna-se claro que não se trata de algo como um “idealismo alemão à francesa”, porque não se trata de um idealismo — a menos que se subverta a própria noção proudhoniana de “idéia” para compreender todo o campo fenomênico, tal como concebido por ele, como algo que o caracterizaria como “idealista”. Um idealismo psicologista, talvez? Mas o subjetivismo psicologista envolvido nessa concepção parece figurar, para Proudhon, sobretudo como um dispositivo de defesa contra possíveis deslizamentos da simples aquiescência perceptiva com relação às aparências (ou fenômenos) para a afirmação dogmática do aparente tal como aparece. É neste sentido, também, que se parece colocar a consideração, por parte de Proudhon, da hipótese, por assim dizer autocrítica, de uma realidade extra-fenomênica.

35 Cf BANCAL, Jean. Proudhon, pluralismo e autogestão - os fundamentos. Brasília: Novos Tempos, 1984, p. 87.

40. O raciocínio de Proudhon parece se desenvolver como que por um sistema de contrapesos que, lançados ora de um lado, ora de outro, iriam lhe garantindo evitar precipitações dogmáticas em alguma dessas direções. Seja como for, percebe-se que procurar caracterizá-lo como seguidor de alguma linha de pensamento já existente em sua época, por exemplo no campo do idealismo alemão, reduz a compreensão de sua filosofia, mais do que a enriquece. Podem-se por outro lado estabelecer os seus diálogos, diretos ou indiretos, nesse campo — mas o diálogo com Hegel, neste caso, tende a perder para o diálogo com outros autores, sobretudo Kant.

Não se trata de modo algum, portanto, de um “hegeliano” infiel ou incompetente em suas leituras de Hegel — acusação bastante habitual, sob a alegação de que Proudhon, pobre e com pouca escolaridade, não conseguiu aprender alemão. Além disto, seu diálogo com Hegel é mais conflituoso do que harmônico. Proudhon lê com boa fluência o latim, o hebraico e o grego, tendo aprendido essas línguas sozinho — coisa que por si só já faz pensar melhor a respeito de tais acusações, freqüentes entre socialistas alemães da época, e até hoje entre os comentadores de linhagem marxista.

Acrescente-se que é um estudioso obcecado e apresenta sempre grande interesse por questões de filologia e história das línguas — e o que se afigura mais provável, então, é que não se trate propriamente de uma deficiência: tudo indica que ele simplesmente não se interessou muito por estudar uma língua tão difícil como o alemão, porque a motivação não lhe parecia suficiente.

41. Mas os hegelianos e marxistas estão certos quanto a um ponto: apesar de tudo isso, não deixa de haver de fato alguma proximidade entre o pensamento proudhoniano e o de Hegel, coisa que não pode ser ignorada. A filosofia de Hegel não é totalmente indiferente para Proudhon — sobretudo, aliás, precisamente porque ela representa uma possível ponte com aliados na Alemanha, na luta por um socialismo liberto das amarras do pensamento cristão.

42. O centro das controvérsias a respeito está no fato de que Proudhon se utiliza bastante de uma linguagem que, embora tenha longa história na filosofia, para os leitores de sua época remete incontornavelmente a Hegel, ou mais precisamente à terminologia dos hegelianos de então, e Proudhon sabe disto. Examina os desenvolvimentos históricos

a partir de uma dinâmica que parece36 constituída por três fases, às quais chama de “tese”, “antítese” e “síntese”37, e batiza isto de “dialética”: estas são, por assim dizer, marcas registradas do hegelianismo — e como se já não bastasse, ocasionalmente Proudhon chega até a referir-se a si mesmo como influenciado por Hegel. Diante de tais evidências, como esquivar-se da idéia de que era, ou pretendia ser, um hegeliano — e portanto como esquivar-se de avaliá-lo em função disto? —

43. Sem entrar no mérito da questão, a assim chamada “dialética” de Proudhon, tal como exposta em 1843, se é mesmo uma dialética — e embora não venha ao caso, vale notar que o autor desta pesquisa é propenso a considerar que sim — exige a consideração de que a dialética não é algo que se deva atribuir exclusivamente à ortodoxia hegeliano-marxista que se estabeleceu entre os dialéticos das gerações seguintes, e considerá-la enquanto desenvolvimento histórico mais amplo, gradual em não-linear, legitimando o caráter efetivamente dialético de todo um leque de variantes e também de formulações anteriores à de Hegel. Dentro deste quadro mais amplo, a dialética proudhoniana, então teria de ser considerada extremamente heterodoxa em relação à já mencionada ortodoxia hegeliano-marxista.

Uma tal compreensão teria a vantagem de acomodar tanto as referidas evidências, como as também evidentes e aparentemente contraditórias recusas explícitas do pensamento hegeliano por Proudhon, na verdade realizadas em passagens bem mais extensas e de maior importância na lógica de seu pensamento — a rigor deve-se dizer passagens não meramente retóricas — que curiosamente não costumam ser trazidas à consideração por esses comentadores, senão para demonstrar o que seriam “erros” de Proudhon em relação a Hegel. De fato, o caráter retórico das passagens que costumam ser escolhidas não é tão óbvio, mas a desimportância da maior parte dessas passagens na economia geral de seus textos, é.

36 Proudhon as apresenta de fato como três fases. A terminologia e diversos outros elementos no texto e na vida política de Proudhon — mais precisamente seu diálogo com os jovens hegelianos alemães — sugerem ser uma aplicação das três fases da dialética hegeliana, mas o modo como Proudhon faz constituir-se a terceira sugere, sob diversos aspectos, mais um equilíbrio entre as duas primeiras fases ainda coexistentes do que propriamente uma terceira diferente de ambas.

37 Tal terminologia, em voga entre os jovens hegelianos alemães da época, ajuda a produzir a aparência de hegelianismo na dialética proudhoniana (cf. nota acima).

44. Ademais, a coisa tem se passado, habitualmente, do seguinte modo: o comentador recolhe uma ou mais passagens em que Proudhon rejeita explicitamente, e com argumentos, a filosofia de Hegel; com base nessas passagens, acusa distorções na leitura de Hegel por Proudhon, e a partir daí, se esquece de que se trata de uma rejeição a Hegel, e passa a acusar Proudhon de ser um mau seguidor da filosofia hegeliana. O agravante é que geralmente ocorre em artigos ou livros dedicados especificamente — ou pelo menos pretensamente — ao estudo do pensamento proudhoniano, e não do pensamento hegeliano ou marxiano.

Nos melhores casos, há o cuidado de acusá-lo de ser não um mau hegeliano, mas um mau leitor de Hegel. Isto sim, constitui uma possibilidade defensável, mas somente a partir de um estudo comparativo e diferencial das duas linhas de pensamento. E mesmo nestes casos, não costuma haver qualquer esforço no sentido de compreender a dialética própria a Proudhon em suas articulações com o conjunto de seu pensamento, para examinar de onde emergem as tais críticas errôneas que Proudhon faz a Hegel, e qual o seu verdadeiro sentido. Coloque-se então desde já com clareza: são críticas completa e propositalmente externas a Hegel — e não se pretendem ou se dizem ou se dão a entender como críticas internas, tal como tem ocorrido entre quase todos os comentadores que o comparam a Hegel. Elas partem quase por completo e assumidamente das concepções articuladas por Proudhon em sua concepção do processo histórico de desenvolvimento da capacidade cognitiva humana38, e de sua teoria serial, na qual pretende que esse processo culmine.

A filosofia de Hegel, nesse percurso, é comentada por Proudhon sem grande alarde, em meio às de diversos outros pensadores — por exemplo a de Ampère, à qual ele dá um pouco mais de atenção, e que hoje é desconhecidíssima apesar de seu renome como cientista no campo do eletromagnetismo. Proudhon situa Hegel, Ampère e outros, entre os que teriam desenvolvido, cada qual, o que ele chama de uma “série” teórica particular com aplicações de grande abrangência — mas as preocupações de Proudhon pretendem estar em outra parte, em outro nível, porque sua teoria reflete sobre o próprio processo de desenvolvimento histórico e de construção, espontânea ou deliberada, de 38 Cf. Tópico 5: O diferencial de Proudhon, neste mesmo capítulo.

“séries” particulares nas suas mais variadas formas e aplicações — por exemplo como estas. Em outras palavras, não há como pretender compreender o que Proudhon diz de Hegel sem compreender o que ele entende por “série” — que é o que sera objeto do Capítulo II desta pesquisa.

45. O exame mais detido das relações entre Proudhon e Hegel, em conformidade com a proposta desta pesquisa, não será realizado, mas apenas indicado, a seguir, o suficiente para oferecer algum norte para futuros estudos mais cuidadosos. As passagens citadas foram todas colhidas em Da criação da ordem na humanidade39, e se procurará

sobretudo dar voz ao próprio Proudhon, apontando caminhos para que o leitor acaso interessado possa por si mesmo, com base na exposição resumida da Teoria Serial mais adiante40 extrair delas sua compreensão do que Proudhon vê em Hegel.

Segundo Proudhon, Hegel “generalizou” uma “idéia engenhosa” de Kant, a de um engendramento entre as categorias kantianas:

210. (...) Kant, tendo dividido os conceitos em quatro famílias compostas, cada uma, de três categorias, mostrou que essas categorias se engendravam, por assim dizer, uma à outra, sendo constantemente a segunda a antítese ou a oposta da primeira, e a terceira procedia das outras duas por uma espécie de composição.

Tese Antítese Síntese Quantidade Unidade Pluralidade Totalidade Qualidade Afirmação Negação Limitação Relação Inerência Dependência Reciprocidade Modalidade Possibilidade Existência Necessidade

(PROUDHON, 2000)

A generalização engenhosa de Hegel resultou no seguinte:

(...) O mundo, o Universo-Deus, segundo ele, se desenvolve em três momentos consecutivos que formam entre si os termos e o período da eterna evolução. Eu, Não-Eu, Absoluto.41

39 PROUDHON, Pierre-Joseph. De la création de l’ordre dans l’humanité. Antony: Tops/Trinquier, 2000, p. 164. Tradução para o português de J. Borba (especificamente para esta pesquisa).

40 Do último tópico deste Capítulo até o final do Capítulo II da presente pesquisa. 41 Idem (seq. da cit. anterior).

A citação acima está, por assim dizer, ainda franqueada ao exame dos críticos como uma leitura que talvez se pretenda em alguma medida “interna” a Hegel, pois ainda não apresenta, ou ao menos não parece apresentar à primeira vista, nenhum elemento que possa ser encontrado na filosofia proudhoniana do próprio Proudhon. A seqüência, por outro lado, já é dominada pela projeção dessa filosofia sobre Hegel:

Esta é uma vasta classificação da natureza e das idéias em três grandes séries, subdivididas por três até aonde a imaginação possa alcançar. Ciências naturais, moral, política, jurisprudência, tudo entra nela: as séries se sucedem e encadeiam com arte maravilhosa: os termos estão tão bem escolhidos e dispostos de tal modo, que sua aproximação é uma demonstração e parece pintar a verdade ante nossos olhos. O gênio do homem não havia feito jamais um esforço tão prodigioso.42

46. Reduzir a dialética hegeliana a “uma vasta classificação” é sem dúvida uma simplificação enormemente distorsiva, mas a palavra “séries” já está presente aí, e ocorre que Proudhon considera todo e qualquer pensamento redutível em última instância a um sistema de signos, e todo signo, como sendo necessariamente e incontornavelmente a fixação, em um plano abstrato, de uma generalização — isto é, de uma categoria, um “tipo” — que só tem legitimidade hipotética. Todo ato de nomear o que quer que seja, é portanto, para Proudhon, um ato de classificação, o que se estende ao próprio raciocínio, que se desenvolve, afinal, por meio de signos.

302 (...)

Assim, raciocinar é classificar, operação que compreende duas partes distintas: 1º a análise dos termos; 2º a reconstituição de sua relação. Assim como o naturalista diz: O boi rumina, a cabra rumina, o carneiro rumina, o veado, o camelo ruminam, portanto, esses animais formam um grupo ou série que chamo série dos ruminantes; da mesma forma o metafísico, comparando entre si idéias cujo objeto é diverso, agrupa-as em gêneros e espécies, segundo a identidade das relações e do ponto de vista.

(PROUDHON: 2000, p.244)

Para Proudhon de fato nomear e raciocinar — operar com nomes — é classificar, organizar a diversidade segundo “tipos” gerais e abstratos. Não há lugar para acesso a qualquer realidade que se suponha ultrapassar este plano das abstrações que se reinstaura a cada gesto de nomear ou raciocinar. Pode-se, quando muito — e deve-se — sempre lutar por essa ultrapassagem, apesar de irrealizável.

359. (...) Como se demonstraria pelas idéias qualquer coisa que não fosse Idéia? A teoria serial parece (...) incompetente: o seu axioma fundamental diz que, fora das leis e das suas combinações, o espírito nada pode conhecer. É por ela, no entanto, que refutaremos o idealismo.

(PROUDHON: 2000, p. 298)

A Teoria Serial pretende oferecer meios para que se possa tornar essas generalizações abstratas e hipotéticas mais úteis, como ferramentas contra o seu próprio véu, nesse movimento jamais completado no sentido de ultrapassá-las. Mas essa maior utilidade buscada não se confunde com a generalidade de sua aplicação. Observe-se bem que a engenhosidade elogiada em Hegel se encontra em outra parte: em ter levado mais adiante algo já presente em Kant: a dinamização dessas classes — ou “tipos” — mediante um engendramento entre elas a partir de suas oposições. E note-se bem: para Proudhon pouco importa de quantos tipos mutuamente engendrados se trata.

Note-se também que Hegel não está sendo colocado como precursor privilegiado da Teoria Serial, mas como um formulador qualquer de séries dessa espécie mais engenhosa. Nem mesmo o primeiro formulador que elas encontraram, porque este não foi, segundo ele, nem mesmo Kant, mas o socialista utópico Charles Fourier, que no entanto o fez, com tanto cuidado e meticulosidade quanto, a de quem está delirando e se põe a dizer bobagens. Fourier teria lançado quase por acaso, e com péssimo acompanhamento reflexivo, um passo muito adiante de seu tempo, passo apenas esboçado por Kant, mas com uma meticulosidade e consistência que lhe valeram a larga preferência de Proudhon.

47. Mas o importante a observar é que, se aos olhos de Proudhon Hegel extraiu bem o que deveria extrair de Kant, por outro lado não o fez melhor do que diversos

outros o fizeram, de outras maneiras, de modo que há, neste elogio a Hegel, algo de ironia e de provocação dirigida aos jovens hegelianos do socialismo alemão. A seqüência já não poupa Hegel por sob uma mera ironia, e deixa bem claro o caráter externo de sua

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