• Nenhum resultado encontrado

Relativismo perspectivista e antiteísmo

No documento ATESE (páginas 71-89)

C) Fourier

2. Relativismo perspectivista e antiteísmo

A) PERSPECTIVISMO E RELATIVISMO EM PROUDHON

62. O perspectivismo pode ser encontrado em outros pensadores sob diversas variações, algumas vezes com maior radicalidade, outras com radicalidade menor, moderado pela combinação com formulações que já não são mais propriamente perspectivistas. Pode-se considerar como “base” de uma concepção perspectivista aquilo que está sendo examinado de diferentes ângulos ou sob diferentes perspectivas, isto é, o que se coloca como objeto invariável sob as várias perspectivas consideradas, que é, em geral, o próprio objeto de conhecimento. Mas é possível imaginar um perspectivismo

axiológico, isto é, um perspectivismo em que o que estaria em consideração seriam objetos de atribuição de valor, e não objetos de conhecimento, e as perspectivas examinadas seriam diferentes formas de avaliação desse objeto.

63. Na verdade é muito plausível defender a idéia de que, em última instância, acaba por ser precisamente esse o caso de Nietzsche — o mais emblemático dos perspectivistas64 — e se o perspectivismo pode ser considerado nele efetivamente como uma teoria do conhecimento, e não como uma formulação de caráter puramente axiológico, é um ponto para debate. Também é plausível questionar, na suposição de um Nietzsche puramente axiológico em seu perspectivismo, a sua caracterização como “relativista”, uma vez que para ele, no campo dos valores, há em última instância apenas duas perspectivas extremas, sendo todas as outras intermediárias entre elas, e uma vez defende inequivocamente, e sem qualquer relativização dessa defesa — ou ao menos sem qualquer relativização evidente dela65 —, uma das duas perspectivas (a do “forte”) em detrimento da outra (a dos “fracos”). A questão é intrincada, mas só um ponto dela interessa aqui: se é possível considerar Nietzsche ao mesmo tempo perspectivista e não- relativista, seria então o perspectivismo, justamente em sua figura mais renomada, uma formulação não-relativista?

Pensada deste modo, a questão conduz a um labirinto do qual é difícil sair. Decerto é possível encontrar formulações perspectivistas em autores que não se filiam ao relativismo, ou cuja associação ao relativismo seria no mínimo questionável: Leibnitz e Pascal66 já foram apontados, por exemplo, como portadores de alguma forma de perspectivismo — mas relativistas? É no mínimo algo a se debater.

64. Seja como for, o perspectivismo, considerado no conjunto das variações com que pode ser encontrado, não parece conectar-se necessariamente a posturas não- relativistas, e mais do que isso, quando se consideram apenas os elementos mínimos necessários para que se possa falar de fato em “perspectivismo”, descartando da definição 64 Cf. notas da Introdução, Tópico 3, Seção 24.

65 Segundo declaração informal de Scarlett Z. Marton, por ocasião de uma exposição sobre Nietzsche realizada no auditório da PUC-SP, ao menos do ponto de vista dos valores Nietzsche não deve ser assimilado ao relativismo. O presente pesquisador discorda. A questão está fora do escopo da pesquisa. 66 Cf. MARTON, Scarlett Z. Pascal: a busca do ponto fixo e a prática da anatomia moral. Discurso. São

aquilo que pode variar de um autor para outro — isto é, quando se considera o perspectivismo apenas como o exame de um mesmo objeto ou foco de observação segundo diferentes perspectivas, comparando-as — pouca coisa parece poder ser mais caracteristicamente relativista do que ele.

Este é o ponto de partida para a afirmação do perspectivismo proudhoniano como parte de sua filiação a uma postura relativista, afirmação que deve ser completada, para sustentar-se, pela demonstração de que não há mais nada, em Proudhon, que faça desse perspectivismo presente nele apenas um mero traço relativista no interior de uma filosofia não-relativista.

65. O primeiro passo neste sentido é observar que, se em Nietzsche se pode detectar a questão dos valores como uma possível porta pela qual ele escapa ao relativismo, no perspectivismo proudhoniano o elemento axiológico é muito menos acentuado, embora não deixe em nenhum momento de estar fortemente presente. O que ganha maior atenção, no caso proudhoniano, é de fato o aspecto epistemológico, a teoria do conhecimento implicada em seu perspectivismo.

Proudhon chega a sugerir algo como uma ciência dos valores morais — mas seria uma ciência firmemente perspectivista, como toda ciência, a seu ver, deveria ser. O relativismo inscrito em sua postura perspectivista, por este caminho, acaba por se manifestar bem mais plenamente — sem essa torção paradoxal que pode ser encontrada em Nietzsche, na utilização nietzscheana do perspectivismo para a defesa para de um quadro de valores único, firmemente definido e não-relativizado. Não significa que os valores morais de Proudhon sejam frouxos ou variáveis, mas que, se por um lado é cabível dizer que Nietzsche encontra meios coerentes para colocar formulações relativistas típicas a serviço da afirmação não-relativizada de um quadro de valores determinado, em detrimento do quadro oposto, Proudhon faz da própria relativização um valor em oposição à atribuição de valor ao não-relativizado, pois constrói uma ética que caracteriza precisamente o “absoluto” como valor negativo, como aquilo que se deve evitar considerando um mal.

Tal posicionamento — bastante incomum em sua época — embora rigorosamente oposto ao de Schelling e outros filósofos da linhagem romântica, coincide com o deles em um ponto: o “absoluto” de que se trata, em última instância, é “Deus”. Proudhon transita sempre entre essas duas palavras quase como sinônimos. Apenas dá ao termo uma utilização um pouco mais elástica: para ele deus, ou o absoluto, manifesta algo de seu em todas as coisas, e quando se refere a qualquer dessas manifestações, Proudhon usa o termo “absoluto”, mas ele próprio admite esta como uma utilização pouco rigorosa da palavra, alegando que, a rigor, “absoluto” só poderia haver um, ou seria uma contradição nos termos, porque relativizado pela presença do “outro” absoluto. O correto, segundo Proudhon, seria usar “absoluto” apenas para referir-se a deus, e “absolutismos” para essas suas manifestações nas coisas — indicando como que uma propensão para o absoluto presente nas coisas. Tudo isto poderia sugerir uma construção teórica de perfil quase medieval, se não fosse o posicionamento inequivocamente anti-absolutista que a acompanha:

E eu digo: o primeiro dever do homem inteligente e livre é expulsar incessantemente a idéia de Deus de seu espírito e de sua consciência. De fato, Deus, se existir, é essencialmente hostil a nossa natureza e não sentimos falta alguma de sua autoridade. Chegamos à ciência apesar dele, à sociedade apesar dele; cada um de nossos progressos é uma vitória na qual esmagamos a divindade.

(PROUDHON: Sistema das contradições econômicas67, p. 372)

(...)

De fato, Deus é tolice e covardia; Deus é hipocrisia e mentira; Deus é tirania e miséria; Deus é o mal.

(Idem, p. 373)

Mas as surpresas, como se verá, não param por aí, e se radicalizam na medida em que se compreende melhor o posicionamento proudhoniano.

67 PROUDHON, Pierre-Joseph. Sistema das contradições econômicas ou filosofia da miséria. São Paulo: Escala, 2007, vol. 1.

B) ANTITEÍSMO E RELATIVISMO DIFERENCIAL

66. Com esse posicionamento excêntrico, ao qual ele próprio chama de “antiteísmo”, Proudhon consegue desagradar a todos em sua época: aos conservadores por razões evidentes, e ainda mais evidentes na medida em que o discurso cristão tradicional serve na época como justificação da monarquia absoluta de direito divino; aos socialistas franceses na medida em que, na sua maioria, procuram apropriar-se desse discurso como base de um socialismo cristão, sob a idéia geral de que a voz do povo — e não a do rei — é a voz de Deus; e aos socialistas alemães, porque na maioria são ateus militantes ou então tendem, à maneira de Feuerbach, para a divinização do próprio homem.

67. Mas na verdade, o posicionamento de Proudhon é mais complexo que essa simples oposição a deus que parece resumi-lo: ele se admite ateu, mas afirma a necessidade de supor a hipótese da existência de deus, como uma idéia que deve regular as ações — eco do pensamento kantiano — incluindo neste quadro tanto as ações morais como as cognitivas. Mas a idéia de Deus deve orientar as ações de que modo? Oferecendo-lhes algo a ser combatido. Guerra à idéia de deus (ou de absoluto), é o que Proudhon propõe. Uma guerra visando a desconstrução intelectual daquilo que, real ou ilusório, essa idéia pretende significar. E como se trata de um conteúdo que se supõe infinito, pode-se afirmar que o que interessa a Proudhon não é exatamente a conclusão dessa guerra, mas a guerra em si mesma, pensada como guerra infinda, incessante, interminável.

Proudhon então assume-se ateu, e no entanto, recusa-se a abandonar a idéia de deus. Não deixa de afirmá-la, mas a afirma apenas para poder combatê-la. Também se recusa a transferi-la para o próprio homem, pois critica esse “humanismo” feuerbachiano como anti-humano, como valorização do homem sob a forma do que seria a própria negação do humano — uma vez que é justamente essa negação o que, segundo Proudhon, caracteriza a condição divina.

Admito que toda afirmação ou hipótese da divindade procede de um antropomorfismo e que Deus não passa em primeiro lugar do ideal ou, melhor dizendo, o espectro do homem. Admito ainda que a idéia de Deus é o tipo e o fundamento do princípio de autoridade e do arbitrário, que é nossa tarefa destruir ou ao menos subordinar em toda parte onde se manifestar, na ciência, no trabalho, na cidade. Por isso não sou contra o humanismo, eu o continuo. Apoderando-me de sua crítica do ser divino e aplicando-a ao homem, observo:

- que o homem, adorando-se como Deus, pôs de si mesmo um ideal contrário à sua própria essência e se declarou antagônico do ser reputado soberanamente perfeito, numa palavra, do infinito;

- que o homem não é, por conseguinte, a seu próprio juízo, senão uma falsa divindade, porquanto, ao admitir a Deus, se nega a si mesmo, e que o humanismo é uma religião tão detestável como todos os teísmos de antiga origem;

- que esse fenômeno da humanidade, que se toma por Deus, não se explica com os termos do humanismo e exige uma interpretação ulterior.

(Idem, p. 378-379)

68. A ética de Proudhon, intimamente conectada ao seu antiteísmo (ou anti- absolutismo), não é objeto desta pesquisa, mas o que se verá no exame de sua teoria do conhecimento — que é — mostrará com bastante clareza uma confluência harmônica do campo cognitivo com o campo ético, no que diz respeito a isto: pode-se dizer que em Proudhon, como em Sócrates, o mal coincide com a ignorância, e sobretudo com a ignorância quanto ao próprio fato de se ser ignorante.

A palavra “deus” exprime, segundo Proudhon, o conteúdo mais inacessível e incognoscível que o homem em toda a sua história já foi capaz de nomear — isto é, exprime precisamente a própria ignorância humana em sua máxima potência historicamente já alcançada. Portanto, compreender a base de todo mal — a ignorância — não poderia conduzir a outra coisa: deus é o mal em seu sentido mais completo e radical, é o supremo mal. Se os próprios homens atribuem consistência própria a essa malévola ignorância pela qual se deixam dominar, se a valorizam, e fazem dela objeto de fé, isto equivale na verdade — a crer em uma imagem recorrentemente sugerida pelo próprio Proudhon — a algo como uma doença. Proudhon chega a forjar, para as

manifestações de absolutismo — propensão para o absoluto — nas consciências humanas, o termo “ideomania”, que sugere propositalmente algo de caráter patológico. Rousseau, por exemplo, é claramente, para Proudhon, um ideômano, sob vários aspectos.

A ética de Proudhon, apesar do perfil agressivo que a caracterização de certas linhas de pensamento como doenças, é por isso mesmo generosa: deve-se desculpar o doente em suas fraquezas e limitações na luta contra a doença. Deve-se desculpar até mesmo a sincera (doentia) crença, por parte do doente, de que detém algum saber de caráter “absoluto” — embora neste caso a patologia seja mais grave. Deve-se desculpá-lo também se ele crê (patologicamente) que o “absoluto” seja de fato algo em si mesmo bom — ilusão em última instância desculpável porque, afinal, a própria afirmação proudhoniana de que o “absoluto” é um mal, neste caso, não pode ser tomada em termos absolutos sem incoerência, e é sensato então relativizá-la, sensatez que não escapa a Proudhon, que admite a possibilidade de estar errado se a questão é examinada de um ângulo que não seja o seu.

O problema maior é que tais crenças patológicas interferem na vida alheia — o que não se pode permitir. Correlativamente, não se deve perdoar de modo algum, aquela luta ativa e militante em defesa da valorização do “absoluto” que é realizada com hipocrisia, e não por um posicionamento sinceramente (patologicamente) “absolutista”. Proudhon considerava indesculpável, portanto, que a defesa do absoluto seja realizada apenas como uma fachada para mascarar uma simples defesa de interesses e privilégios que a acompanha. Este é o limite da generosidade proudhoniana para com seus adversários, que recobrem todo esse leque de atitudes.

69. A metáfora da doença cai bem neste caso: forçando um pouco o raciocínio de Proudhon, o limite extremo da doença seria a morte, e como a ignorância, por sua vez, segundo ele despotencializa as ações humanas no mundo, porque as orienta mal, pode-se concluir que ela acaba por encaminhar os homens também nessa direção, de modo que seu limite extremo é mesmo: a morte. Proudhon não chega a estabelecer esse elo com a morte, mas é um elo que conectaria perfeitamente bem sua metáfora com sua reflexão acerca do absoluto. Considerando que morte é um tipo de experiência que só pode ser antecipada — e só imaginariamente, porque não é certo que assim seja — por um esforço

de absoluto apaziguamento mental, de anulação de todos os pensamentos, sentimentos e sensações, retorne-se, com essa idéia enxertada, aos pensamentos de Proudhon, por exemplo em sua crítica à divinização do homem pelos feuerbachianos:

No homem, o sentimento emana, por assim dizer, de mil fontes diversas: ele se contradiz, se perturba, se dilacera a si mesmo; sem isso, não se sentiria. Em Deus, ao contrário, o sentimento é infinito, isto é, uno, pleno, fixo, límpido, acima das tempestades e não tendo necessidade alguma de se irritar pelo contraste para chegar à felicidade. Nós mesmos fazemos a experiência desse modo divino de sentir quando um sentimento único, arrebatando todas as nossas faculdades, como no êxtase, impõe momentaneamente silêncio às outras afeições. Mas esse arrebatamento não existe, sempre, senão com o auxílio do contraste e por meio de uma espécie de provocação vinda de outro lugar: nunca é perfeito ou, se chegar à sua plenitude, é como o astro que atinge seu apogeu num instante indivisível.

Desse modo, não vivemos, não sentimos, não pensamos senão por meio de uma série de oposições e de choques, por meio de uma guerra intestina; nosso ideal não é, portanto, um infinito, é um equilíbrio; o infinito exprime outra coisa e não nós.

(Idem, p. 381)

Deus — ou o “absoluto” — é para ele o mal, porque é a própria imagem mais completa e acabada humanamente formulável do que seria, justamente, a negação do humano, sua inexistência, a aniquilação total da existência humana. O enxerto da noção de “morte” dá talvez de fato mais sentido à metáfora proudhoniana, aproveitando aliás um procedimento de raciocínio habitual para ele, que é o de imaginar determinada coisa exagerada e radicalizada até o seu máximo (a morte, no caso, seria o extremo da doença). Mas a “doença” é uma metáfora de Proudhon, de modo que tal enxerto não chega a ser necessário à sua coerência. Basta acompanhar o próprio Proudhon no seguinte: a idéia de Deus é assim projetada imaginariamente pelos humanos porque a única maneira de conceberem-se a si mesmos enquanto seres humanos é conceberem-se em contraste com uma outra concepção que lhes seja oposta.

A humanidade, ao reconhecer Deus como seu autor, seu senhor, seu alter ego (outro eu), nada mais fez que determinar por uma antítese sua própria essência: essência eclética e repleta de contrastes, emanada do infinito e contraditória ao infinito, desenvolvida no tempo e

aspirando à eternidade, por todas essas razões falível, embora guiada pelo sentimento do belo e da ordem. A humanidade é filha de Deus como toda oposição é filha de uma oposição anterior; é por isso que a humanidade descobriu Deus semelhante a ela, que lhe emprestou seus próprios atributos, mas conferindo-lhe sempre um caráter específico, isto é, definindo Deus contraditoriamente a ela mesma. A humanidade é um espectro para Deus, do mesmo modo como ele é um espectro para ela; cada um dos dois é para o outro causa, razão e finalidade de existência.

(Idem, p. 386)

Como se vê o próprio Proudhon apresenta uma perspectiva diferencial das coisas — precisamente a mesma a ser adotada metodologicamente nesta pesquisa sob a forma de uma crítica marginal. Tudo o que existe para o homem, segundo Proudhon, só existe para ele diferencialmente, o próprio homem e sua idéia de deus, inclusive (sendo o homem de constituição historicamente maleável), só são o que são diferencialmente, um em relação ao outro — e esse par estabelece a mais ampla e abrangente oposição diferencial concebível: de um lado, tudo o que é humanamente acessível; de outro, o que é inteiramente negação de tudo isso em seu conjunto.

70. Este primeiro esclarecimento que acaba de ser realizado, por si só, vale como toda uma introdução à teoria serial proudhoniana. Uma visão visão simples, rápida e global que indica o sentido geral de sua teoria do conhecimento e seu método — ou em outras palavras, a própria ignorância inicial com respeito a esse método assinalada como ponto de partida. Todo e qualquer conhecimento, segundo Proudhon, parte de uma ignorância assinalada análoga a esta, e que tem seu supremo modelo na idéia de deus. Todo conhecimento, é uma guerra empreendida contra ela no sentido de determinar-lhe os detalhes, decompondo-a em suas partes e articulações internas. É o que se fará nesta pesquisa sobretudo a partir da terceira parte do Capítulo I, em que já se entra no exame do livro Da criação da ordem na humanidade.

71. Uma das razões do maior equilíbrio entre o ponto de vista do conhecimento e o ponto de vista dos valores no caso do perspectivismo proudhoniano, quando comparado ao de Nietzsche, pode ser, precisamente, o maior apego de Proudhon a uma postura cética, no sentido etimológico do termo, quando comparado com Nietzsche: ceticismo significa, originalmente, investigacionismo. Trata-se de uma postura fundamentalmente investigativa, e que portanto estabelece um elo direto com o campo da teoria do conhecimento, enquanto para Nietzsche o papel da filosofia não é propriamente investigativo, mas avaliador: ela deve avaliar os valores68, e neste caso sua (também

possível) aproximação com o ceticismo, se daria por outras razões, bem diversas e indiretas, à parte o sentido etimológico desse termo.

É possível que a filosofia de Nietzsche acabe resultando, indiretamente, cética, ou favorável ao ceticismo69. Mas essa aproximação com o ceticismo, em Nietzsche — como aliás também em Proudhon —, não é de modo algum evidente, e o que ela oferece é apenas mais um ponto para debate. Ademais, Nietzsche é trazido à lembrança, aqui, somente na qualidade de referência maior, reconhecida pelos historiadores da filosofia, quanto ao perspectivismo. Discutir os posicionamentos de Nietzsche em relação à filosofia cética não é matéria desta pesquisa. Mas discutir o mesmo ponto quanto a Proudhon, é. E para afirmá-lo em alguma medida cético, o percurso não é indireto, porque ele se lança de imediato e com clareza no campo da teoria do conhecimento, que é um campo inequivocamente investigativo.

72. Em suas formulações mais puras e características, o ceticismo — recorrentemente mal compreendido por seus adversários ao longo da história e que por isso tem se defendido, até hoje, muito mais de incompreensões do que de efetivos e válidos contra-argumentos — se define, portanto, como um anti-dogmatismo radical. Conforme Lessa70,

68 Sobre esta questão, cf. MARTON, Scarlett Z. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São paulo: Brasiliense, 1990, Cap. II, p. 67 e seguintes.

69 Cf. VELLOSO DA ROCHA, Sílvia Pimenta. Os abismos da suspeita: Nietzsche e o perspectivismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/ FAPERJ, 2003, Cap. 3, p. 133-134.

70 Cf. LESSA, Renato. Veneno pirrônico: ensaios sobre o ceticismo. Rio de Janeiro: Francisco alves, 1997, p. 120.

Diante das fabulações dogmáticas, o ceticismo tem sido considerado como um estilo filosófico eminentemente destrutivo. Sua marca nobre seria a da interposição de óbices no filosofar dos dogmáticos. Nessa faina, a máquina de guerra pirrônica — para usar a expressão reconstituída por richard Popkin71 — não teria afirmado nada que pudesse se afigurar como um modo positivo de filosofar. Apesar dessa forte tradição interpretativa, pretendo sustentar que (...etc.)

No documento ATESE (páginas 71-89)