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O perspectivismo de base cética e o problema dos filtros filosóficos

No documento ATESE (páginas 31-39)

22. Proudhon responde ao problema dos filtros filosóficos com um método que combina perspectivismo e ceticismo, mais precisamente um perspectivismo de base cética — esta afirmação constitui a tese da presente pesquisa. Nela se encontram articulados um “problema dos filtros filosóficos” e as noções de “perspectivismo” e “ceticismo”. O que significam essas três expressões?

De fato, é preciso esclarecer os termos da tese, porque não são evidentes.

23. Respondendo a essas questões uma de cada vez, em que consiste, primeiramente, o problema dos filtros filosóficos?

Trata-se de um problema incontornável para todo e qualquer pensamento de caráter efetivamente filosófico, especialmente quando avança para o campo da teoria do conhecimento. A reflexão efetivamente filosófica não pode ignorá-lo, e precisa necessariamente lidar com ele, sob pena de escamotear o seu próprio caráter filosófico. Isso porque a filosofia, ao contrário da ciência, é uma forma de pensamento que não pode ignorar a presença de filtros personalizados (sejam individuais ou coletivos) em qualquer processo de conhecimento, que alteram ou tendem a alterar a aparência do objeto de conhecimento para o conhecedor. Nem tampouco pode ignorar o caráter problemático desses filtros, em face da exigência de alguma forma de acesso, em algum grau, a uma realidade objetiva que se mostre livre deles — pois em face dessa exigência, característica do que se costuma entender por “conhecimento”, supõe-se que tal filtragem em alguma medida falseia o acesso ao objeto pelo conhecedor.

As formulações do problema e o modo de lidar com ele apresentam variação. Em sua concepção mais enxuta, é o problema do acesso de uma subjetividade a algo objetivo, e o que se acentua, aqui, é o papel problemático desempenhado pelos traços característicos de uma subjetividade particular — individual ou coletiva — em vista das

condições que interferem nesse acesso ou que o determinam: o que fazer com a interferência de traços característicos quando se luta por esse acesso? Ou deve-se questionar essa luta em busca do acesso? Como lidar com a questão?

Em ciência, a impossibilidade de ignorar a presença de filtros personalizados que distorcem a imagem do objeto captado ocorre apenas em casos específicos, e dependendo do caso, ignorar tal problema pode pôr em risco talvez a qualidade dos resultados ou o perfil da abordagem adotada, dependendo do caso, mas dificilmente a própria cientificidade da esforço cognitivo despendido. Geralmente, em ciência — e principalmente nas ciências exatas e nas naturais, nos laboratórios de pesquisa — o que se tem é uma ignorância proposital e calculada quanto ao assunto, ignorância que não é sequer produto da reflexão do pesquisador, porque já é pressuposta de antemão como parte dos procedimentos padrões e conduzida mecanicamente, sem questionamento. Em filosofia, essa alternativa seria apenas uma saída possível — portanto matéria de debate — e nada fácil exigindo boa argumentação.

O problema não é formulado por Proudhon nos mesmos termos, mas o que é colocado por ele em Da criação da ordem na humanidade ou Princípios de organização política, acaba por figurar como algo bem próximo quando se considera o perfil geral de sua resposta. Trata-se do “problema da certeza”, que ele apresenta subdividido em dois:

O problema da certeza, dito de outro modo problema lógico, ou problema da legitimidade absoluta do conhecimento, se divide em dois: 1º o problema da origem das idéias; segundo, o problema da certeza, ou da conformidade do conhecimento com a realidade.

(PROUDHON, 1843, p. 267)

Segundo Proudhon, trata-se basicamente de saber de onde vêm as idéias e como se adequam ao ideado no processo de conhecimento. O problema não recebe maior formulação do que isto, e mesmo as variantes com que aparece em Proudhon não oferecem muito muito mais do que esta, caindo ora sob uma dessas subdivisões, ora sob outra, ora introduzindo ou retirando de cena a questão do “critério” de certeza como parte da formulação, coisa que não altera substancialmente o problema. Na passagem citada acima, examinando em seguida a sucessão histórica dos sistemas filosóficos que propõem

diferentes soluções, Proudhon mostra como cada solução particular acaba aprofundando, para as seguintes, o caráter problemático da questão, e finalmente, apresenta a sua própria solução, a Teoria Serial.

Mas o próprio perfil da resposta, compreendida em toda a sua extensão, recoloca os termos do problema: é preciso atentar para o caráter espontâneo ou proposital das idéias que se formula, valorizar sua base sensível, quando ela existe, mas reconhecendo a impossibilidade de acesso efetivo a essa base sensível a valorizar, pois ela só se capta já idealizada; e finalmente, é preciso reconhecer a força do condicionamentos sociais na formação espontânea das idéias, e ao mesmo tempo, a diversidade que tanto os condicionamentos, contraditórios uns aos outros, quanto a própria realidade ideada, parecem transmitir às idéias com que se tenta representar esta última. Nesse conjunto de condições de extrema incerteza, por fim, é preciso, grosso modo, lançar as idéias umas contra as outras, a fim de permitir que se destaque, considerado como “real”, aquilo que resiste e persiste à sua destruição mútua. Perceba-se que a questão é colocada sempre — e este é o ponto — com referência a subjetividades particulares, que são individuais ou coletivas, e dotadas de características próprias. Proudhon não se refere de modo algum a algo como uma subjetividade transcendental e humana em sentido geral.

A interpretação conduzida adiante nesta pesquisa é a de que essa diversidade das idéias se manifesta sob a forma de uma diversidade de filtros pelos quais as diferentes filosofias captam a realidade ou modelam suas respostas a ela, e de que Proudhon, pretendendo que as idéias sejam lançadas umas contra as outras sob o critério de recolher como “real” o que resta e resiste, tenha em mente colher aí algo que se demonstre dotado em alguma medida de existência própria e independente desses filtros, anulando-os mutuamente ao lançá-los uns contra os outros para permitir, com isto, a mais clara manifestação de algo cujas características resistem a filtragens subjetivas particulares. Entretanto, o próprio Proudhon põe em jogo formulações metodológicas que garantem uma grande marge de frustração dessa expectativa de colheita do “resistente”, tormando essa resistência precária, provisória e sempre questionável.

O perspectivismo é um posicionamento epistemológico de perfil relativista. A caracterização como “relativista” tem sido freqüentemente utilizada na desqualificação de certas filosofias, como uma caracterização pejorativa. O presente pesquisador discorda desse hábito, sobretudo na medida em que por ele se tende a confundir com relativismo o que seria melhor caracterizado como um indiferentismo, em que todas as teorias ou posicionamentos em jogo têm o mesmo valor e as alternativas se apresentam por isso como indiferentes. Segundo essa concepção, o relativismo não poderia oferecer critérios sólidos para a decisão entre teorias ou posicionamentos divergentes, mas não é o que ocorre entre os pensadores que assumem para si mesmos esta qualificação nem tampouco entre aqueles que, sem assumi-la, são mais consistentemente e inquestionavelmente caracterizados deste modo. Trata-se de uma imagem superficial do que essa linha de pensamento tem a oferecer, e em geral marcada pelo preconceito. O perspectivismo, em especial, figura como uma formulação relativista que se mostra bastante consistente no campo da teoria do conhecimento, embora não seja necessariamente de uso exclusivo de filósofos relativistas, encontrando lugar também entre alguns que não poderiam ser propriamente classificados assim.

O termo “perspectivismo” foi cunhado primeiro por Gustav Teichmüller, em 1981, no livro die wirkliche und die scheinbare Welt, para exprimir a possibilidade de considerar algo de diversos ponto de vista igualmente justificados, cada qual único e independente, e ao mesmo tempo indispensável para a compreensão desse algo24. A presença dessa concepção foi detectado pelos historiadores da filosofia primeiramente em Leibnitz25, e depois explicitamente adotado sob nova formulação por Nietzsche26. Consiste na concepção de que o fundamental para o processo de conhecimento é a consideração de diferentes pontos de vista ou abordagens — diferentes perspectivas — acerca do mesmo objeto.

24 Fonte: FERRATER MORA, José. Dicionário filosófico, Madrid: Aliança Editorial, 1981. 25 A partir do desenvolvimento do conceito de “perspectivismo” por Ortega y Gasset.

26 Fontes: LALLANDE, André. Vocabulário técnico e crítico de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999; e também JACOB, André (dir.). Enciclopédie philosophique universelle. Paris: Presses Universitaires de France, s/data. No Brasil, MARTON, Scarlett Z. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São paulo: Brasiliense, 1990, cap. VI.

Em outras palavras, o perspectivismo, ao invés de procurar alguma forma de acesso mais direto à realidade objetiva tentando eliminar os filtros filosóficos, se apropria deles, ou mais precisamente dos diferentes pontos de vista gerados por eles, como instrumentos pelos quais procura responder ao problema, utilizando-se da comparação entre as diferentes perspectivas. A partir daí, é possível pensar inúmeras variações do perspectivismo segundo o modo como se lida com essas perspectivas, ao compará-las. Em Nietzsche, por exemplo, há um critério de avaliação segundo o qual se valoriza a perspectiva mais abrangente27, aquela capaz de explicar o mesmo que as outras e ir ainda mais longe.

25. Para responder à questão quanto ao terceiro termo que compõe a tese desta pesquisa, o que constitui, enfim, o alegado “ceticismo” em Proudhon? A tese afirma que a própria base do perspectivismo, no autor, é considerada por ele à maneira cética. O que significa isto?

O ceticismo, em filosofia, corresponde de fato em larga medida ao já mencionado significado etimológico da palavra “ceticismo”. Sua origem está na palavra grega skepsis, que significa investigação. A formulação skepticismo significa então, literalmente, investigacionismo. O ceticismo, ou investigacionismo, é uma escola filosófica com uma tradição histórica que se manteve bastante consistente e fiel a esse sentido desde suas origens, na antiguidade, até os dias de hoje. Seus princípios consistem, fundamentalmente, em uma defesa radical do próprio processo de reflexão e da mobilização do pensamento nesse processo, sob a forma de uma dúvida ou questionamento incessante, em detrimento dos possíveis resultados ou respostas encontrados — resultados ou respostas em que esse processo ou parte dele estacionaria, deixaria de mover-se; ou em outras palavras, deixaria de exercer questionamentos, encerrando em alguma medida a investigação.

Mas esse investigacionismo se pretende, além disto, uma forma radical de antidogmatismo, atuando preferencialmente como uma crítica à pretensão dos filósofos a um saber de algum modo superior aos pequenos saberes práticos e simples do dia-a-dia, em que não se costumam defender teses acerca da verdade. Toda e qualquer afirmação de 27 Cf. MARTON, Scarlett Z, mesmo livro e capítulo referidos acima.

caráter tético, toda e qualquer afirmação que se pretenda propor como dotada de algum grau de verdade — portanto como tese neste sentido — é considerada pelos céticos como “dogma”. E os céticos pretendem, de sua parte, não dogmatizar, não formular teses, pautando-se apenas em procedimentos aos quais se habituaram.

Em vista disto, a tradição cética desenvolveu, no decorrer de sua história, contrapontos que visam evitar que esse mesmo mobilismo intelectual seja conduzido ele próprio à maneira de uma tese, do mesmo modo como se conduzem as formulações dogmáticas portanto, ou assumindo papel similar ao de uma tese. Desenvolveu também meios para fazer frente, quando necessário, mesmo ao possível dogmatismo ingenuamente inscrito — por exemplo, sob a forma de rígidos pressupostos no próprio senso comum e na própria vida prática diária, com relação aos quais permaneceu, no entanto, sempre propenso a uma posição mais favorável do que com relação ao dogmatismo filosófico, teórico e especulativo em geral, que se mostra um dogmatismo mais profundamente deliberado.

26. Colocada como um dos termos em que se articula e se formula a tese desta pesquisa — como uma “base cética” que estaria presente no perspectivismo de Proudhon — a noção de ceticismo exprime, em conjunto com o resto da formulação, a idéia de que a resposta de Proudhon ao problema dos filtros filosóficos não é puramente relativista, mas um relativismo (perspectivista) fortemente marcado por esse investigacionismo, caracterizado à maneira da tradição cética de filosofia; ou, examinando isso de outro ângulo, a resposta de Proudhon se apresesenta como um ceticismo moderado por formulações relativistas.

O que se formula e defende aqui pode então ser compreendido, em sua unidade, como uma articulação íntima entre essas três afirmações: 1ª) um “filtro” de acesso a um objeto de conhecimento, com todo o caráter problemático que qualquer filtro de acesso apresenta em termos filosóficos, pode ser compreendido como o foco de origem de uma perspectiva (personalizada) pela qual se aborda o objeto; 2ª) Proudhon responde ao problema dos filtros filosóficos concebendo uma teoria do conhecimento e um método que são de caráter perspectivista, isto é, que trabalham com a consideração e comparação de diferentes perspectivas ou pontos de vista possíveis sobre o mesmo objeto; e 3ª) no

caso de Proudhon, esse objeto, que é a base sobre a qual se erguem as diferentes perspectivas de exame, não está simplesmente dado para depois ser examinado sob essas diversas perspectivas, mas apresentado ele próprio — em conformidade com a postura cética ou pelo menos com uma versão moderada do ceticismo, mas nem por isso menos característica dessa escola de filosofia — como objeto de uma busca incessante e que, a rigor, não deve ser jamais encerrada de modo definitivo.

Neste sentido, pode-se constatar facilmente que Proudhon apresenta mais elementos para o constante questionamento de verdades do que de fato para o estabelecimento delas. Isso, ao fim e ao cabo, atribui à teoria do conhecimento e ao método de Proudhon, com toda a sua formulação perspectivista, a feição de um imenso instrumental cético para a mobilização antidogmática do pensamento, muito mais do que a de um meio para o pretenso acúmulo de informações e conhecimentos, ou mesmo para a aproximação progressiva rumo a uma verdade concebida como horizonte ideal.

A formulação do problema dos filtros filosóficos figura como um pressuposto implicado na primeira das três afirmações componentes da tese apresentadas no parágrafo acima, e não como uma segunda tese. Portanto, a expressão “problema dos filtros filosóficos” não indica propriamente um ponto de defesa, carente de argumentos. Trata-se de um ponto de partida. O problema aliás aparece formulado já pelo próprio Proudhon, apenas de maneira diferente. A reformulação do problema de Proudhon em termos de “filtros filosóficos” não é grande.

Além disso — o que é mais importante — a reformulação não é grande. O próprio diálogo com o texto de Proudhon examinado conduz, desde o início da leitura, a colocar em jogo essas questões, relativas aos contornos da atividade filosófica e aos seus diferenciais em comparação com a atividade científica (como também em comparação com a atividade religiosa), e a considerar a discussão dessas questões como o próprio terreno do qual ele extrái sua teoria do conhecimento e seu método. Assim, ao discutir as formulações de Proudhon e posicionar-se em relação a elas, o pesquisador, procurando refletir com alguma autonomia, não poderia deixar de confrontá-las com as suas próprias formulações nesse mesmo sentido, e utilizou-se então de uma terminologia que ressalta algo que lhe desperta particular interesse, entre as questões implicadas no problema: a

questão do que ocorre a uma subjetividade particular28 — individual ou coletiva — em suas fronteiras com um objeto de conhecimento. Isto — esse interesse mais específico, no interior do problema, pela fronteira considerada pelo lado subjetivo — é o se que exprime na palavra “filtros”, introduzida na reformulação do problema.

27. Esclarecidos os termos que compõem a tese, bem como a unidade e coesão da tese composta por esses termos, quais as dificuldades a serem enfrentadas, e que tipo de argumentação determinam?

Embora complementem-se uns aos outros formando uma tese una e coesa, os termos que a compõem são heterogêneos uns em relação aos outros no que diz respeito a isto, e não exigem todos eles o mesmo tipo e grau de defesa argumentativa por parte do pesquisador, ponto cujo esclarecimento já antecipa algumas informações importantes.

Em vista do modo como eles se apresentam nos próprios textos proudhonianos, que tipo e grau de defesa argumentativa, então, é exigido desta pesquisa em cada um dos termos que compõem a tese?

28. O problema dos filtros filosóficos, conforme já dito, não é propriamente um ponto de defesa e não exige argumentação, mas apenas esclarecimentos.

O perspectivismo e o ceticismo exigem o mesmo tipo de argumentação: trata-se de demonstrar a presença desses dois posicionamentos combinados nas formulações de Proudhon em resposta ao problema dos filtros filosóficos. Mas exigem essa argumentação em graus diferentes, porque o perspectivismo é muito facilmente demonstrável nele, mas o ceticismo não. Mais uma vez, cabe responder então a essas questões uma por uma.

A detecção dos traços de ceticismo no pensamento de Proudhon, e em particular naquilo que ele coloca como base de exame em seu perspectivismo, é o ponto mais controverso e o que deve exigir maior argumentação, por uma razão bastante precisa: o próprio Proudhon recorre com com muita freqüência, e em termos bastante passionais — diria-se até que obsessivamente — a menções explícitas ao “ceticismo”. E ocorre que 28 A questão diz respeito às atividades do pesquisador enquanto professor de filosofia no ensino universitário, atividades desempenhadas com paixão crescente já há quase oito anos, e cujos interesses têm sempre conduzido direta ou indiretamente as suas pesquisas a algum ponto de contato com questões educacionais.

essas menções acompanham quase sempre um declarado posicionamento contra o ceticismo, de modo que o que se está demonstrando, nesta tese, se demonstra em certa medida apesar das afirmações explícitas do próprio Proudhon. Malgré lui — se diria em sua língua.

29. A tese, em suma, é a de que Proudhon, ele próprio, responde ao problema dos filtros filosóficos com um método epistemológico que combina relativismo perspectivista e ceticismo — apesar de não se pretender cético. O ceticismo proudhoniano, se esta pesquisa está certa em afirmá-lo, é moderado, mas nem por isso deixa de ser bastante consistente caracterizá-lo como ceticismo. A pesquisa se propõe a esclarecer os pensamentos de Proudhon com relação a isto, evidenciando em seus textos a presença da referida resposta cético-relativista a esse problema.

4. Autores envolvidos por Proudhon na

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