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A filosofia do tempo no budismo

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 77-80)

Osimbolismo dos Sete Passos de Buda e do Ovo Cósmico, implica a reversibilidade do tempo, e teremos de voltar a este processo paradoxal. Mas é necessário que apresentemos previamente as linhas gerais da filosofia do Tempo elaborada pelo budismo, e especialmente pelo budismo mahâyânico12. Para os budistas também o tempo é constituído

por um fluxo contínuo (samtâna) e até pelo fato da fluidez do tempo, toda a «forma» que se manifesta no tempo é não só precária, mas ainda ontologicamente irreal. Os filósofos do Mahâyâna falaram abundantemente sobre o que poderia chamar-se a instantaneidade do tempo, isto é a sua fluidez e, em última instância, a não-realidade do instante presente que se transforma continuamente em passado, em não- ser. Para o filósofo budista, escreve, Stcherbatzky, «a existência e a não-

12 Encontrar-se-ão os elementos nos dois volumes de Th. Stcherbatsky, Budhist

Logic (Leningrad, 1930-1932, «Bibliotheca Budhica») e na rica monografia de

Louis de la Vallée-Poussin, Documents d'Abhidharma: la Controverse du Temps

(Mélanges chinois et boudhiques, V, Bruxelles, 1937, pp. 1-158). Ver também S.

Schayer, Contributions to the problem of Time in Indian Philosophy (Cracóvia, 1938) e Ananda K. Coomaraswamy, Time and Eternity (Ascona, 1947), pp. 30 sq.

existência não são as diferentes aparências de uma coisa, mas a própria coisa» conforme diz Çantaraksita, «a natureza de tudo o que existe é a sua própria instantaneidade (feita de um número considerável) de stases e de destruições» (Tattvasangraha, p. 137; Stcherbatzky, Budhist Logic, I, pp. 95 sq.). A destruição a que alude Çantaraksita não é a destruição empírica, por exemplo de uma jarra que se quebra quando cai no chão, mas a anulação intrínseca e contínua de todo o existente que se encontra implicado no tempo. Por isso Vasubandhu escreve: «Porque a anulação é instantânea e ininterrupta, não existe movimento (real)»13. O movimento,

e, por conseguinte o próprio tempo, a duração, é um postulado pragmático tal como o Ego individual é, para o budista, um postulado pragmático; mas como conceito, o movimento não corresponde a uma realidade exterior, pois ele é «qualquer coisa» de construído por nós próprios. A fluidez e a instantaneidade do mundo sensível, a sua contínua anulação, é a fórmula mahâyânica por excelência para exprimir a irrealidade do mundo temporal. Tiraram-se por vezes conclusões acerca da concepção mahâyânica do tempo: que, para os filósofos do Grande Veículo, o movimento é discontínuo, que «o movimento é constituído por uma série de imobilidades» (Stcherbatzky). Mas como o nota, a justo título, Coomaraswamy (op. cit., p. 60), uma linha não é feita de uma série infinita de pontos, mas apresenta-se como um contínuo. Vasubandhu disse: «o curso dos momentos é ininterrupto» (nirantara-ksana-utpâda). O termo samtâna, que Stcherbatzky traduz por «série», etimologicamente significa «continuum».

Tudo isto não constitui novidade. Os lógicos e os metafísicos do Grande Veículo não fizeram outra coisa senão levar aos limites extremos as intuições pan-indianas sobre a irrealidade ontológica de tudo o que existe no Tempo. A fluidez oculta a irrealidade. A única esperança e a única via de salvação é Buda que revelou o Dharma (a realidade absoluta) e mostrou o caminho do Nirvâna. Os discursos de Buda retomam infatigavelmente o tema central da sua mensagem: tudo o que é

13 Abhidharmakoça, IV, 1, citado por Coomaraswamy, op. cit., p. 58. Ver a tradução eomentada de Louis de la Vallée-Poussin, L'Abhidharmakoça de

condicionado é irreal; mas nunca se esquece de acrescentar: «isto não sou eu» (na me so attâ). Pois ele, Buda, é idêntico ao Dharma, e por conseguinte ele é «simples, não composto» (asamkhata) e «atemporal, sem-tempo» (akâliko, como diz o Anguttara Nikâya, IV, 359-406). Muitas vezes Buda lembra que «transcende os éons» (kappâtito... vipumatto), que ele «não é homem dos éons» (akkapiyo), ou seja que não se encontra realmente comprometido no fluxo cíclico do tempo, que ultrapassou o Tempo cósmico14. Para ele, diz a Samyutta Nikâya (I, 141) «não existe

passado nem futuro» (na tassa paccha na purattham atthi). Para Buda todos os tempos se tornam presentes (Visuddhi Magga, 411); isto é o mesmo que dizer que ele aboliu a irreversibilidade do tempo.

O presente-total, o eterno presente dos místicos, é a estase, a não- duração. Traduzido para o simbolismo espacial, a não--duração, o eterno- presente é a imobilidade. E, de fato, para indicar o estado não condicionado de Buda ou de libertado, o budismo — e como aliás o Yoga — utiliza expressões que se referem à imobilidade, ao estase. «Aquele cujo pensamento é estável» (thita-citto; Dîgha Nikâya, II, 157), «aquele cujo espírito é estável (thit'attâ; ibid., I, 57, etc.), «estável, imóvel», etc. Não esqueçamos que a primeira e a mais simples definição ido Yoga é a dada pelo próprio Patañjali no início dos seus Yoga-Sûtra (I, 2): yogah cittavrttinirodhah, isto é, «o Yoga é a supressão dos estados de consciência.» Mas a supressão é apenas a meta final. O yogin começa por «parar», por «imobilizar» os seus estados de consciência, o seu fluxo psico-mental. (O sentido mais usual de nirodha é, aliás, o de «restrição- obstrução», é o ato de fechar, encerrar, etc.). Voltaremos às consequências que podem advir desta «paragem», desta «imobilidade» de estados de consciência sobre a experiência do tempo dos yogins.

Aquele «cujo pensamento é estável» e para o qual o tempo deixa ide correr, vive num eterno presente, no nunc stans. O instante, o momento atual, o nunc, diz-se em sânscrito ksana e em pâli khana15. É pelo ksana,

14 Sutta Nipâta, 373, 860, etc., e outros textos recolhidos por Coomaraswamy, op.

cit., pp. 40 sq.

15 Ver Louis de la Vallée-Poussin, Notes sur le «moment» ou ksana cies boudhistes

pelo «momento», que se mede o tempo. Mas este termo tem também o sentido de «momento favorável, opportunity», e para Buda é através de um tal «momento favorável» que se pode sair do tempo. Com efeito Buda aconselha a «não perder o momento», pois: «lamentar-se-ão aqueles que perderem o momento». Ele felicita os monges que «aprisionaram o seu momento» (khano vo patiladdho) e lamenta aqueles «para quem o momento passou» (khanâtitâ; Samyuta .Nikâya, IV, 126). O mesmo é dizer que, após o longo caminho percorrido no tempo cósmico, através de inúmeras existências, a «iluminação é instantânea» (eka ksana). A «iluminação instantânea (eka-ksanâbhisambodhi) como lhe chamam os autores mahâyânistas, quer dizer que a compreensão da Realidade se faz subitamente, como um relâmpago. É exatamente a imaginaria verbal, baseada no simbolismo do relâmpago, que já encontrámos nos textos upanisadicos. Um momento qualquer, um ksana qualquer, pode transformar-se no «momento favorável», no instante parodoxal que suspende a duração e projeta o monge budista no nunc stans, num eterno presente. Este eterno presente não faz já parte do tempo, da duração; ele é qualitativamente diferente do nosso «presente» profano, desse presente precário que surge debilmente entre duas não-entidades — o passado e o futuro — e que se deterá com a nossa morte. O «momento favorável» da iluminação é comparável ao relâmpago que comunica a revelação ou com o êxtase místico, e prolonga-se paradoxalmente para fora do tempo.

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 77-80)