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Simbolismo indiano da abolição do tempo

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 72-75)

Em sânscrito, o termo latia é empregado tanto no sentido de períodos de tempo,,de durações infinitas, como no de um certo momento

— tal como nas línguas europeias (por ex.: «What time is now?») Nos textos mais antigos, sublinha-se o caráter temporal de todos os universos e de todas as existências possíveis: «O Tempo engendrou tudo o que foi e o que será» (Atharva Veda, XIX, 54, 3). Nos Upanisads, Brahman, o Espírito Universal,

Ser absoluto é concebido simultaneamente como transcendendo o Tempo e como fonte e fundamento de tudo o que se manifesta no Tempo: «Senhor do que foi e do que será, ele é, ao mesmo tempo, hoje e amanhã» (Kena Up. IV, 13). E Krisna, manifestando-se como deus cósmico a Arjuna, declara: «Eu sou o Tempo, que ao avançar destrói o mundo» (Bhagavad-Gîtâ, XI, 32).

Como se sabe, os Upanisads distinguem dois aspetos de Brahman, do Ser universal: «o corporal e o incorporai, o mortal e o imortal, o fixo (sthita) e o móvel, etc.» (Brhadâranyaka-Upanisad, II 3,1). O que equivale a dizer que tanto o Universo nos seus aspetos manifesto e não-manifesto, como o Espírito nas suas modalidades de condicionado e de não condicionado, repousam no único, rio Brahman que cumula todas as polaridades e todas as oposições. Ora, a Madri Upanisad (VII, 11,8), ao precisar esta bipolaridade do Ser universal sobre o plano do Tempo,

distingue as «duas formas» (dve rupe) de Brahman (isto é os aspetos das «duas naturezas» [dvaitibhâva] de uma só essência [tad ekam], como Tempo e Sem-Tempo (kâlaç-câkalaç-ca). Por outras palavras, tanto o Tempo como a Eternidade, são os dois aspetos do mesmo Princípio: no Brahman, o nunc fluens e o nunc stans, coincidem. A Maitri Upanisad continua: «O que precede o Sol é Sem-Tempo (akâla) e não-dividido (akala); mas o que começa com o Sol é o Tempo que tem partes (sakala) e a sua forma é o Ano...»

A expressão «o que precede o Sol», poderia ser compreendida tanto no plano cosmológico, como referindo-se à época que precedia a Criação — pois nos intervalos entre os mahâyuga ou os kalpa, durante as Grandes Noites Cósmicas, a duração deixa de existir — mas aplica-se sobretudo no plano metafísico e soteriológico, ou seja: ela indica a situação paradoxal daquele que obtém a iluminação, que se torna um jivanmukta, um «libertado em vida», e por este mesmo ato ultrapassa o Tempo, no sentido de não participai'. já na sua duração. De fato a Chândogya- Upanisad (III, 11) afirma que para o Sábio, para o iluminado, o Sol permanece imóvel. «Mas, após ter surgido no zénite, ele [o Sol] não se erguerá nem se porá mais. Manter-se-á sozinho no Centro (ekala eva madhyhe sthâtâ). Daí estes versos: «Lá [quer dizer no mundo transcendental do brahman] ele nunca se pôs e nunca se ergueu...» Não nasce nem se pôe; «está no céu de uma vez para sempre, para aquele que conhece a doutrina do brahman.»

Trata-se aqui, bem entendido, de uma imagem sensível da transcendência: no zénite quer dizer; no topo da abóbada celeste, no «Centro do mundo», sítio onde são possíveis a ruptura de níveis e a comunicação entre as três zonas cósmicas, o Sol (= a Tempo) permanece imóvel para «aquele que sabe»; o nunc fluens transforma-se paradoxalmente em nunc stans. A iluminação, a compreensão realiza o milagre da saída do Tempo. O instante paradoxal da iluminação é comparado nos textos védicos upanisadicos ao relâmpago. Brahman compreende-se subitamente como um relâmpago (Kena Up., IV, 4,5) «No relâmpago, a Verdade>, (Kausitaki Up., IV, 2. Sabe-se que a mesma

gregae e na mística cristã).

Detenhamo-nos um instante nesta imagem mítica: o zénite — que é simultaneamente o Topo do Mundo e o «Centro» por excelência, o ponto infinitesimal por onde passa o Eixo Cósmico (Axis Mundi). Mostrámos no capítulo precedente, a importância deste simbolismo para o pensamento arcaico8. Um «Centro» representa um ponto ideal, pertencente não ao

espaço profano, geométrico, mas ao espaço sagrado e no qual se pode realizar a comunhão com o céu ou o Inferno; noutros termos, um «Centro» é o lugar paradoxal da ruptura dos níveis, o ponto onde o mundo sensível pode ser transcendido. Mas pelo próprio fato de transcender-se o Universo, o mundo criado, transcende-se o tempo, a duração, e obtém-se o êxtase, o eterno presente intemporal.

A solidariedade entre o ato de transcender o espaço e o de transcender o fluxo temporal está muito bem esclarecida por um mito relacionado com a Natividade de Buda. O Majjhima-Nikâya (III, p. 123) conta que «mal nasce», Boddhisattva pousa os pés bem assentes no chão e voltado para o Norte, faz sete passadas, abrigado por um guarda-sol branco. Considera todas as regiões em volta e diz com voz taurina: «Sou o mais alto do mundo, sou o melhor do mundo; este é o meu último nascimento; doravante não haverá para mim outra nova existência». Este traço mítico da natividade de Buda é retomado, com algumas variantes, na literatura ulterior dos Nikâya-Agama dos Vinaya e nas biografias de Buda9. Os sapta padâni, os sete passos que levam Buda ao extremo do mundo, foram mesmo representados na arte e iconografia budistas. O simbolismo dos «Sete Passos» é bastante transparente10. A expressão «sou o mais alto do mundo» (aggo'ham asmi lokassa) significa a transcendência espacial de Buda. De fato ele atingiu «o topo do mundo»

8 CL mais atrás pp. 52 sq.

9 Numa extensa nota da sua tradução de Mandprajñâpâramitaçastra, de Nâgârjuna, M. Etienne Lamotte reuniu e agrupou os textos mais importantes; ef.

Le Traité de La Grande Verta de Sagesse de Nâgârjuna, t. I (Louvain, 1944), pp. 6 sq.

10 Cl. Mircea Eliade, Les Sept Pas de Boudha (Pro Regno pro Sane orado, Hommage Vau der Leeuw, Nijkerk, 1950, pp. 169-175).

(lokkage) atravessando os sete andares cósmicos a que correspondem, como se sabe, os sete céus planetários. Mas, por este mesmo fato ele transcende igualmente o tempo pois, na cosmologia indiana, o ponto no qual começou a criação é o topo, e por conseguinte ele é também o lugar mais «antigo». Eis porque Buda exclama: «Eu sou o mais Velho do mundo» (jettho'ham asmi lokassa). Porque, ao atingir o cimo cósmico, Buda torna-se contemporâneo do começo do mundo. Magicamente ele aboliu o tempo e a criação, e encontra-se no instante temporal que precede a cosmogonia. A irreversibilidade do tempo cósmico, lei terrível para quantos vivem na ilusão, deixa de contar para Buda. Para ele o tempo é reversível e pode ser mesmo conhecido por antecipação: pois Buda não só conhece o passado mas também o futuro. O que nos interessa sublinhar é que Buda não só se torna capaz de abolir o tempo, mas pode ainda percorrê-lo no sentido contrário (patiloman, skr, pratiloman, «a contra-pêlo»), e isto será verdadeiro do mesmo modo para os monges budistas e para os yogis que, antes de obterem o seu Nirvâna ou o seu samâdhi, procedem a um «retrocesso» (volta atrás) que lhes permite conhecer as existências anteriores.

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 72-75)