• Nenhum resultado encontrado

A Lua e as águas

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 122-125)

As ostras, as conchas marinhas, o caracol, a pérola, são solidários tanto das cosmologias aquáticas como do simbolismo sexual. Todos participam, com efeito, nas forças sagradas concentradas nas Águas, na Lua, na Mulher; são, além do mais, por diversas razões, emblemas destas forças: semelhança entre a concha marinha e os orgãos genitais da mulher, relações reunindo as ostras, as águas e a lua, enfim simbolismo ginecológico e embriológico da pérola, formada na ostra. A crença nas virtudes mágicas das ostras e dos moluscos encontra-se no mundo inteiro desde a pré-história aos tempos modernos1. O simbolismo que está na

1 G. F. Kunz e Charles Hugh Stevenson, The Book of the Pearl (London 1908), recolheram material documental considerável respeitante à difusão das pérolas; J. W. Jackson, The geographical distríbution of the use of Pearls and Pearl-shells (53 p., Manchester, 1916; monografia republicada no volume Shells as Evidence

ofthe migration of Early Culture, Manchester, 1917) completa as informações

de Kunz e Stevenson. Encontrar-se-á o essencial da extensa bibliografia sobre a função mágica das conchas no artigo de W. L. Hildburgh, Cowrie-shells as amulets in Europe (Folk-Lore, vol. 53-54, 1942-1943, pp. 178-195). CL também as diversas contribuições para o problema publicadas na revista Man; otobre 1939, No 165, p. 167 (M. A. Murray, The meaning of Cowrie-shell, pensa que o valor mágico do cauri lhe vem da sua semelhança tom um olho semi-fechado); Janeiro 1940, No. 20 (Murray respondendo a Sheppard); No. 61, pp. 50-53 (Dr. Kurt Singer, Cowrie and Baubo in early Japan, publica uma estatueta neolítica japonesa que demonstra a assimilação da concha à vulva); No. 78 (C. K. Meek,

origem de tais concepções pertence muito provavelmente a uma camada profunda do pensamento «primitivo». Mas ele conheceu «atuações» e interpretações variadas: encontra-se ainda a presença das ostras e dos moluscos nos ritos agrários, nupciais ou funerários, na ornamentação de vestuário ou em certos motivos decorativos, mesmo que, mais do que uma vez, metade dos seus significados mágico-religiosos pareçam ter-se perdido ou abastardado. Entre certos povos as conchas continuam a ser motivos de decoração, enquanto a sua valência mágica nem sequer já constitui lembrança. A pérola, ontem emblema da força geradora ou símbolo de uma realidade transcendental, conservou apenas, no Ocidente, o valor de «pedra preciosa». A degradação ininterrupta do simbolismo aparecerá mais nitidamente no fim do nosso trabalho.

O conjunto iconográfico Água-ostras é abundantemente atestado na América pré-columbiana. O «Tula relief» de Malinche Hill representa uma divindade rodeada de Água onde se banham ostras, espirais, círculos duplos2. No Codex Nuttall predomina o complexo iconográfico Agua- Peixe-Serpente-Caranguejo-Ostra3. O Codex Dresdensis representa a Água quer escorrendo de cascas de ostras quer enchendo jarras formadas por serpentes enroladas4. O deus mexicano da tempestade usava uma corrente de ouro da qual pendiam pequenas conchas marinhas5; o deus da lua tinha por símbolo um grande caracol do mar6.

Na China antiga o simbolismo da ostra está ainda mais bem

contra a hipótese de Mlle. Murray), No. 101 (Balkans), No. 102 (J. H. Huttons; Naga Hills), No. 187 (Grigson; Central Provinces, India); 1941, No. 36 (C. K. Meek; Nigeria); No. 37 (Fidji, Égypt, Saxons); 1942, No. 71 (M. D. W. Jeffreys: Cowry, Vulva, Eye).

2 Peñafiel, Monumentos dei arte mexicano antiguo, p. 154, reproduzido por Leo Wiener, Mayan and Mexican Origins (Cambridge, 1926), estampa IV, fig. 8. 3 Wiener, ibid. estampa IV, fig. 13; estampa VII, fig. 14, reproduzindo o Codex

Nuttall, p. 16, 36, 43, 49.

4 Codex Dresdensis, p. 34, etc., reproduzido por Wiener, fig. 112-116.

5 B. de Sahagun, Historia general de las cosas de Nueva España (Mexico, 1896), vol. I, cap. 5; Wiener, p. 68; cf. fig. 75.

6 J. W. Jackson, The Aztec Moon-Cult and its relation to the Chank-cult of India

conservado: as conchas participam na sacralização da Lua ao mesmo tempo que prolongam as forças aquáticas. No tratado ch'un ts'iu (século III A.C.) pode ler-se: «A Lua é a raiz de tudo o que é yin; na Lua cheia as ostras pang e ko estão prenhes e todas as coisas yin se tornam abundantes; quando a Lua escurece (última noite do ciclo lunar) as ostras estão vazias e todas as coisas yin começam a faltar7. «Mo-tsï (século v

A.C.), depois de ter notado que a ostra perlífera pang nasce sem intervenção masculina, acrescenta: Por conseguinte, se pang pode ter por fruto uma pérola, é porque ela concentra toda a sua força yin»8. «A Lua,

escreve Liou Ngan (século 11 A.C.) é o princípio do yin. É por isso que os cérebros dos peixes diminuem quando a Lua está vazia e as conchas dos univalves espiralados não estão cheias de partes carnudas quando a lua está morta». O mesmo autor acrescenta, num outro capítulo: «Os moluscos bivalves, os caranguejos, as pérolas e as tartarugas crescem e decrescem com a Lua»9.

O yin representa, entre outras coisas, a energia cósmica feminina, lunar, «húmida». Assim o excesso do yin ativo numa determinada região exaspera o instinto sexual feminino e faz com que «as mulheres lascivas pervertam os homens» (I Chou shu, cap. 54, citado por Karlgren, op. cit., p. 38). Existe efetivamente uma correspondência mística entre os dois princípios, yin e yang, e a sociedade humana. O carro do rei era ornamentado com jade (rico em yang), o da rainha, com plumas de pavão e conchas, emblemas do yin. Os ritmos da vida cósmica seguem o seu curso normal enquanto a circulação dos dois princípios opostos e complementares se processa sem entrave. Sün-tsï escreve: «Se o jade está na montanha, as árvores da montanha darão fruto; se as águas profundas produzem pérolas, a vegetação da margem não secará» (Karlgren, ibid., p. 40). Ver-se-á mais adiante a mesma polaridade

7 Trad. B. Karlgren, Some fecundity symbols in ancient China (The Bulletin of the

Museum of Far Eastern Antiquities, No. 2, Stockolm, 1930, pp. 1-54), p. 36.

8 Karlgren, ibid. Cf. relações pérolas (conchas) — Lua in Granet, Danses et

Légendes de la Chine ancienne (Paris, 1926), pp. 480, 514, etc.

9 J.-J. de Groot, Les Fêtes annuellement célébrées à Emouï. Étude concernant la

religion populaire des Chinois (Paris, 1886), vol. II, p. 491. Rapports entre la lune

simbólica jade-pérola reaparecer nos costumes funerários chineses. Em relação à influência das fases da Lua nas ostras, a antiguidade conheceu ideias análogas.

Luna alit ostrea et implet echinos, muribus fibras et jecur addit, dizia Lucilius: «a Lua alimenta as ostras, enche os ouriços-do-mar, dá força e vigor aos mexilhões». Plínio (Hist. Nat., II, 41, 3), Aulu-Gelle (Notes Atticae, XX, 8), com vários outros escritores, pretendia ter verificado fenómenos semelhantes. Esta tradição para-científica, herdada de um simbolismo antigo cuja função deixara de ser compreendida, devia perpetuar-se na Europa até ao século XVI10.

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 122-125)