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Tempo cósmico e história

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 66-70)

Detenhamo-nos um pouco neste ponto preciso: a visão do Tempo infinito, do ciclo sem fim das criações e das destruições dos Universos, em última instância o mito do eterno regresso, valorizado como «instrumento de conhecimento» e meio de libertação. Na perspetiva do Grande Tempo, toda a existência é precária, evanescente, ilusória. Consideradas no plano dos ritmos cósmicos maiores, isto é no plano dos mahâyuga dos kalpa, dos manvantâra, não só a existência humana e a própria história — com todos os seus Impérios, Dinastias, revoluções e contra-revoluções sem número — se revelam efémeras, de certo modo irreais, mas o próprio Universo está vazio de realidade porque, como vimos, os Universos nascem continuamente dos inúmeros poros do corpo de Visnu e desapareceu tão depressa como uma bolha de ar que se desfaz à superfície das águas. A existência no Tempo é ontologicamente uma inexistência, uma irrealidade. E.neste sentido que se deve compreender a

afirmação do idealismo indiano, e, em primeiro lugar, do Vedânta, de que o mundo é ilusório, que carece de realidade: carece de realidade porque a sua duração é limitada, porque na perspetiva do eterno regresso, ela é uma não-duração. Esta mesa é irreal, não porque não exista no sentido próprio do termo, porque seria uma ilusão dos sentidos; pois ela não é uma ilusão: neste momento preciso ela existe — mas esta mesa é ilusória porque já não existirá daqui a dez mil ou cem mil anos. O mundo histórico, as sociedades e as civilizações penosamente construídas pelo esforço de milhares de gerações, tudo isto é ilusório porque, no plano dos ritmos cósmicos, o mundo histórico dura o espaço de um instante. O vedantino, o budista, o rsi, o yogi, o sâdhu, etc., ao tirarem as conclusões lógicas da lição do Tempo infinito e do Eterno Regresso, renunciam ao mundo e buscam a Realidade absoluta; pois só o conhecimento do

Absoluto os ajuda a libertar-se da ilusão, a rasgar o véu da Mâyâ.

Mas a renúncia ao mundo não é a única consequência que um Indiano tem o direito de tirar da descoberta do Tempo cíclico infinito. Como hoje se começa a compreender melhor, a Índia não conheceu só a negação e a recusa total do mundo. Partindo ainda do dogma da irrealidade fundamental do Cosmos, a espiritualidade indiana elaborou igualmente urna via que não conduz necessariamente à ascese e ao abandono do mundo. É, por exemplo, a via que prega Krsna na Bhagavad- Gîtâ5: a phalatrsnavairâgya, quer dizer, «a renúncia ao fruto das suas

acções», aos lucros que se podem tirar das respetivas acções, mas não à acção em si. É a via que traz à luz a continuação do mito de Visnu e de Indra, cuja aventura foi contada mais atrás.

De fato, humilhado pela revelação de Visnu, Indra renuncia à sua vocação de deus guerreiro e retira-se para as montanhas para aí se entregar ao mais terrível ascetismo. Noutros termos, apressa-se a tirar o que lhe parece ser a única conclusão lógica da descoberta da irrealidade e da vaidade do mundo. Encontra-se na mesma situação do príncipe Siddhârtha imediatamente após ter abandonado o seu palácio e esposas em Kapilavastu e se ter empenhado nas suas penosas mortificações. Mas podemos perguntar-nos se um Rei dos Deuses, um esposo, tinha o direito de tirar tais conclusões de uma revelação de ordem metafísica, se a sua renúncia e a sua ascese não colocavam em perigo o equilíbrio do mundo. Efetivamente, pouco tempo depois, a rainha Çaci, sua mulher, desolada por ter sido abandonada, implora a ajuda do seu padre-conselheiro, Brhaspati. Tomando-lhe a mão, Brhaspati aproxima-se de Indra e fala-lhe demoradamente, não só das virtudes da vida contemplativa, mas também da importância da vida ativa, da vida que encontra a sua plenitude neste mundo. Indra recebe assim uma segunda revelação: compreende que cada um deve seguir a sua própria via e realizar a sua vocação, isto é, em última instância, cumprir o seu dever. Mas como a sua vocação e o seu dever consistiam em continuar a ser Indra, retoma a sua identidade e

5 Cf. por exemplo, Bhagavad-Gitâ, IV, 20; ver nosso livro Techniques du Yoga (Paris, Gallimard, 1948), pp. 141 sq.

prossegue as suas aventuras heróicas, sem orgulho e sem fatuidade, pois compreendeu a vaidade de toda a «situação», fosse ela a de um Rei dos Deuses...

Esta continuação do mito restabelece o equilíbrio: o importante nem sempre é renunciar à sua situação histórica esforçando-se em vão por atingir o Ser universal mas sim ter constantemente no espírito as perspetivas do Grande Tempo, continuando a cumprir o seu dever no tempo histórico. É exatamente a lição dada, na Bhagavad-Gîtâ, por Krsna a Arjuna. Na Índia, tal como um pouco por todo o mundo arcaico, esta abertura para o Grande Tempo, obtida pela recitação periódica dos mitos, permite o prolongamento indefinido de uma certa ordem, ,metafísica, ética e social simultaneamente, ordem que não leva de modo algum à idolatria da História; porque a perspetiva do Tempo mítico torna ilusório qualquer fragmento do tempo histórico.

Como acabamos de ver, o mito do Tempo cíclico e infinito, destruindo as ilusões urdidas pelos ritmos menores do Tempo, isto é, pelo tempo histórico, revela-nos simultaneamente a precaridade e, finalmente, a irrealidade ontológica do Universo, e a via da nossa libertação. De fato podemos salvar-nos dos laços da Mâyâ, quer pela via contemplativa, renunciando ao mundo e praticando o ascetismo e as técnicas místicas aferentes — quer por uma via ativa, continuando no mundo, mas sem gozar «do fruto das respetivas acções» (phalatrsnavairâgya). Tanto num caso como noutro, o importante é não crer unicamente na realidade das formas que nascem e se desenvolvem no Tempo, nunca deve perder-se de vista o fato de tais formas não serem «verdadeiras» senão no seu próprio plano de referência, mas que, ontologicamente, são desprovidas de substância. Como dizíamos mais acima, o Tempo pode tornar-se um instrumento de conhecimento, no sentido de nos bastar projetar uma coisa ou um ser plano do Tempo cósmico para nos apercebermos da sua irrealidade. A função gnoseológica e soteriológica de tal mudança de perspetiva obtida pela abertura para os ritmos maiores do tempo, é admiravelmente trazida à luz por certos mitos relacionados com a Mâyâ de Visnu.

Ramakrishna6. Um asceta ilustre chamado Nârada, tendo obtido a graça

de Visnu pelas suas inúmeras austeridades, vê aparecer-lhe o deus, o qual lhe promete cumprir qualquer desejo por ele emitido. «Mostra-me a força mágica da tua mâyâ» — pede-lhe Nâranda. Visnu acede e faz-lhe sinal para que o siga. Pouco tempo depois, tendo chegado a um caminho deserto e ensolarado, sentindo sede, Visnu pede-lhe para andar umas centenas de metros até uma pequena aldeia que se avista e trazer-lhe água. Nârada precipita-se e bate à porta da primeira casa que encontra. Uma bela rapariga abre-lhe a porta. O asceta olha-a demoradamente e esquece o motivo que ali o levou. Entra na casa e os pais da jovem recebem-no com o respeito devido a um santo. O tempo passa. Nârada acaba por casar com a rapariga e conhece as alegrias do casamento e a duração de uma vida de camponês. Passam-se doze anos: Nârada tem agora três filhos e após a morte do sogro torna-se proprietário da quinta. Mas no fim do décimo segundo ano, chuvas torrenciais acabam por inundar a região. Numa só noite os rebanhos perecem afogados e a casa desmorona-se. Segurando com uma das mãos a mulher, com a outra dois filhos e levando o mais pequeno ao ombro, Nârada caminha com dificuldade através da água. Mas o fardo é por demais pesado. Escorregando, o pequeno cai na água. Nârada larga os outros dois e faz tudo para o encontrar. Demasiado tarde: a corrente levou-o para longe. Enquanto procurou o mais pequeno os outros desapareceram tragados pelas águas; pouco tempo depois a mulher tem a mesma sorte. O próprio Nârada cai e a corrente arrasta-o, inconsciente como um pedaço de madeira. Quando desperta atirado sobre uma rocha, lembra-se das suas infelicidades e rompe em soluços. Mas, de repente, ouve uma voz familiar: «Filho, onde está a água que devias trazer-me? Espero-te há mais de meia-hora!» Nârada volta a cabeça e olha. Em lugar da cheia que tudo destruíra, vê campos desertos, brilhando ao sol. «Compreendes agora o segredo do meu mâyâ?» — pergunta-lhe o deus.

Evidentemente que Nârada não podia afirmar que tinha

6 The Sayings of Sri Ramakrishna (edição de Madras, 1938), Book IV, chapter 22. Ver outra versão deste mito segundo a Matsya Purâna, contada por H. Zimmer, Myths and Symbols, pp. 27 sq.

compreendido tudo; mas aprendera uma coisa essencial: sabia agora que a Mâyâ cósmica de Visnu se manifesta através do tempo.

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 66-70)