• Nenhum resultado encontrado

O soberano terrível

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 90-93)

Conhece-se o papel que Dumézil atribui ao Soberano Terrível das mitologias indo-europeias: por um lado, no centro mesmo da função de soberania, ele opõe-se ao Soberano Jurista (Varuna opõe-se a Mitra, Júpiter a Fides); por outro lado, comparado com os deuses guerreiros que combatem sempre por meios militares, o Soberano Terrível tem de certo modo o monopólio de uma outra arma, a magia. «Não há portanto mito de combates em torno de Varuna, que é todavia o mais invencível dos deuses. A sua grande arma é a sua «mâyâ d'Asura», a sua magia do Soberano, criadora de formas e de prestígios, que lhe permite também administrar, equilibrar o mundo. Esta arma revela-se, aliás, na maior parte

,das vezes sob a forma de um laço, do nó, das ligaduras «pâçâh» materiais

ou figurados. Ao contrário do deus guerreiro, é Indra, deus combatente, deus manejados de raios, herói de duelos sem conta, de riscos enfrentados, de vitórias disputadas. «A mesma oposição se observa na Grécia: enquanto Zeus combate e mantém guerras difíceis, Urano não combate, não há vestígios de luta na sua lenda, se bem que ele seja também o mais terrível e o menos facilmente destronável dos reis: por uma captura infalível ele imobiliza, mais exatamente "liga", arrasta para os infernos os seus rivais que no entanto são vigorosos entre os demais.» Nas mitologias nórdicas, «Odhinn é decerto o senhor, o chefe dos guerreiros neste mundo e no outro. Mas nem na Edda em prosa nem nos

poemas édicos é ele próprio a combater...»

Ele possui toda uma série de «dons» mágicos: o dom da ubiquidade ou, pelo menos do, transporte imediato, a arte do disfarce e o dom de metamorfose ilimitada e, principalmente, o dom de cegar, de ensurdecer, de paralisar os seus adversários e de retirar toda a eficácia às armas destes...1 Enfim, na tradição romana, aos processos mágicos de Júpiter,

que intervém na batalha como um feiticeiro todo poderoso, opõem-se os meios normais, puramente militares, de Marte2. Oposição que, na índia,

se manifesta por vezes de maneira ainda mais nítida: Indra, por exemplo, salva, «desligando-as», as vítimas «ligadas» por Varuna3.

Como era de esperar, Dumézil prossegue a verificação desta polaridade «ligadora» e «desligadora» nos domínios mais concretos dos ritos e dos usos. Rómulo, «tirano tão terrível como prestigioso, ligador de laços potentíssimos, fundador dos Lupércios selvagens e das Celeres frenéticas» (Horace et les Curiaces, 1942, p. 68) é, no plano «historicizado» da mitologia romana, o equivalente a Varuna, Urano e Júpiter. Toda a sua «história» e as instituições socio-religiosas cuja fundação lhe é atribuída se explicam a partir do arquétipo que ele encarna de certo modo: o Soberano Mágico indo-europeu, mestre dos «laços». Dumézil recorda um texto de Plutarco (Romulus, 26) onde se diz que: adiante de Rómulo marchavam sempre «homens armados de chibatas, que afastavam a multidão, e cintados com correias a fim de ligarem imediatamente aqueles que ele mandasse ligar»4. Os Lupércios, confraria mágico-religiosa instituída por Rómulo, pertencem à ordem dos

1 Georges Dumézil, Mythes et Dieux des Germains (Paris, 1939), pp. 21 sq., 27 sq.; Júpiter, Mars, Quirinus (Paris, 1941), pp. 79 sq.; cf. Ouranós-Varuna (Paris, 1934), passim.

2 Mitra-Vartma (Paris, 1940), p. 33; Júpiter, Mars, Quirinus, pp. 81 sq.

3 Dumézil, Flamen-Brahman (Paris, 1935), pp. 34 sq.; Mitra-Varuna, pp. 79 sq. 4 Mitra-Varuna, p. 72; cf. as observações de Jean Bayet, na Rev. Hist. des Religions,

CXXIV, 1941, pp. 194 sq. Ainda segundo Plutarco, Questions Romaines 67, o próprio nome dos litores deriva de ligare e Dumézil não vê razão para «rejeitar a relação que os antigos sentiam entre litor c ligare: litor pode ser formado a partir de um verbo radical ligere, não confirmado, que estaria para ligare como

equites e nesta qualidade usam um anel no dedo (Mitra-Varuna, p. 16). Pelo contrário os flâmines Dialis, representando a religião grave, jurídica, estática, não podem montar a cavalo (equo dialem flaminem vetei religio est, Aulu-Gelle, X, 15) nem «usar anel a menos que este fosse furado e oco» (item annulo uti, nisi pervio cassoque, fas non est). «Se um homem manietado entra [em casa dos flâmines diális], é necessário libertá-lo e que as correias sejam levadas para o telhado pelo impluvium e de lá atiradas à rua. Ele (o flâmine) não usa nó nem no que lhe cobre a cabeça nem na cintura nem em nenhuma outra parte (nodum in apice negue in cintu negue in alia parte ullum habet). Se se leva um homem para ser vergastado e este homem se deita, suplicante, aos pés do flâmine, é um sacrilégio bater-lhe nesse dia» (Aulu-Gelle, Notes Atticae, X, 15, trad. M. Migon)5.

Não se trata de retomar o processo constituído e admiravelmente avalizado por Dumézil. O que desejamos é diferente: queremos seguir, num plano comparativo ainda mais amplo, os motivos do «deus ligador» e da magia da «ligação», tentando tirar daí as respetivas significações e também precisar essas funções noutros conjuntos religiosos além do da soberania mágica indo-europeia. Não pretendemos esgotar esta extensa matéria, que já deu lugar a várias monografias6. Mas a nossa intenção é antes de ordem metodológica: tirando proveito, por um lado, dos ricos repertórios de fatos acumulados pelos etnógrafos e pelos historiadores das religiões, e, por outro lado, dos resultados das investigações realizadas por Dumézil no domínio particular da soberania mágica indo- europeia, perguntar-nos-emos: 1º em que sentido a noção de «soberano

5 Cf. Servius, in Aen., III, 607; J. Heckenbach, De nuditate sacra sacrisque vinculis (R. V. V., IX, 3, Giessen, 1911), pp. 69 sq.; Dumézil, Flamen-Brahman, pp. 66 sq. 6 Indicar-se-á, segundo o livro decepcionante de Heckenbach, Prazer, Taboo and

the perils of the sota, pp. 296 sq. (trad. francesa de Henri Peyre, Tabou et les périls de l'âme (Paris, 1927, pp. 245 sq.); I. Scheftelowitz, Das Schlingen-und Netzmotiv im Glauben und Brauch der Völker,(R. V. V., XII,2, Giessen, 1912);

id.; Die altpersische Religion und das Judentum (Giessen, 1920), pp. 92, sq. e os

estudos etnográficos e folclóricos indicados por Dumézil, Ouranós-Varuna, p. 52, n. 1. Sobre o nexum romano, os nós mágicos e o direito penal, cf. Henri Decugis, Les Êtapes du droit (2.' edição, Paris, 1946), t. I, pp. 157-178.

ligador» é específica, caraterística do sistema religioso indo-europeu; 2º qual é o conteúdo mágico-religioso de todos os mitos, ritos e superstições centrados no motivo da «ligação». Não ignoramos os perigos que tal programa comporta, em primeiro lugar o «confusionismo» brilhante- mente denunciado por Dumézil (Naissance de Rome, 1944, pp. 12 sq.). Mas trata-se menos de explicar aqui os fatos indo-europeus por paralelos heteróclitos do que levantar o mapa dos «complexos» mágico-religiosos do mesmo tipo e de precisar, na medida do possível, as relações do simbolismo indo-europeu da «ligação» com sistemas morfologicamente vizinhos. Ficar-se-á assim em estado de avaliar se tal confrontação pode apresentar interesse para a história geral das religiões e nomeadamente para a história das religiões indo-europeias.

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 90-93)