• Nenhum resultado encontrado

Magia e religião

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 110-113)

Todas estas crenças e todos estes ritos nos conduzem, sem dúvida, ao domínio da mentalidade mágica. Mas pelo fato de estas práticas populares se relacionarem com a magia, ter-se-á o direito de considerar o simbolismo geral da «ligação» como uma criação exclusiva da mentalidade mágica? Não pensamos assim. Mesmo quando os ritos e símbolos da «ligação» nos Indo--Europeus comportam elementos tónico- lunares e, por conseguinte, revelam fortes influências mágicas — o que não é certo — ficam por explicar outros documentos que exprimem não somente uma experiência religiosa autêntica mas também uma concepção geral do homem e do mundo que, essa sim, é verdadeiramente religiosa e não mágica. Os dados mesopotâmicos que passámos em revista, por exemplo, não se deixam reduzir em totalidade a uma interpretação mágica. Entre os Hebreus as coisas são ainda mais claras: é verdade que a Bíblia fala das «redes da morte» (por ex.: «os laços da Mansão dos Mortos tinham-me envolvido, os laços da morte tinham- me surpreendido», IISamuel, 22, 6; cf. Salmo, 18, 6; «os laços da morte

tinham-me envolvido, as angústias da Mansão dos Mortos tinham tomado conta de mim, estava oprimido pelo sofrimento e pela dor; então invoquei o nome do Eterno. Oh Eterno, liberta a minha alma! »;Salmo,

116, 3-4). Mas o senhor terrível destes laços, é o próprio Yahvé e os Profetas representam-no com redes na mão, para punir os culpados: «Enquanto eles para lá se dirigirem, estenderei a minha rede sobre eles e fá-los-ei cair numa armadilha como aves do céu» (Oseias, 7, 12); «Estenderei a minha rede sobre ele; ele ficará preso nos meus laços e levá-lo-ei à Babilónia» (Ezequiel, 12, 13; cf. 17, 20); «Sobre ti estenderei a minha rede» (ibid., 32, 3). E a experiência religiosa, tão profunda e tão

autêntica de Job encontra a mesma imagem para exprimir o poder de Deus: «Sabei portanto que foi Deus que me confundiu e que estendeu seus laços em meu redor!» (Job, 19, 6). Os judeo-cristãos que sabiam que é o demónio que «liga» os doentes (por ex. Lucas, 13, 16), falavam todavia também do Deus Supremo como do «senhor dos laços». Encontramos assim, no mesmo povo, uma multivalência mágico-religiosa dos «laços»: laços da morte, da doença, da feitiçaria — e também laços de Deus64. «Uma rede se encontra estendida sobre todos os seres vivos»,

escrevia Rabbi Aquipa (Pirqê Abôt, 3, 20; Scheftelowitz, p. 11). A fórmula é feliz, porque não exprime uma visão exclusivamente «mágica» ou «religiosa» da vida — mas, em toda a sua complexidade, a própria situação do homem no mundo; para usar uma terminologia em voga, ela exprime a condição do próprio ser existente.

De fato, o «fio da vida» simboliza em bastantes países o destino humano. «O fio da sua vida» (lit.: a corda da sua tenda) quebrou-se! exclama Job (4, 21; cf. 7, 6). Aquiles, como todos os mortais, «sofrirá o que o destino, quando do seu nascimento, teceu para ele com o linho, quando a mãe o deu à luz» (Ilíada, 20, 128; cf. 24, 210). As deusas do destino tecem o fio da vida humana: «Aí nós o deixaremos sofrer o destino que nos seus fusos puseram as tristes Fiandeiras, na hora em que, de sua mãe, recebeu a vida...» (Odisseia, 7, 198, trad. V. Bérard)65. Mas há mais ainda: o próprio Cosmos foi concebido como um tecido, como uma enorme «rede». Na especulação indiana, por exemplo, o ar (vâyu) «teceu» o Universo, ligando, como que por um fio, este mundo e o outro mundo e todos os seres em conjunto (Brhadâranyaka Up., III, 7, 2), tal como o sopro (prava) «teceu» a vida humana. («Quem teceu nele o sopro?», Atharva Veda, X, 2, 13). Daí resulta que um simbolismo bastante ramalhudo exprima duas coisas essenciais: por um lado que no Cosmos, como na vida humana, tudo está ligado a tudo por uma textura invisível e,

64 Por conseguinte estamos no direito de supor que certas alusões védicas aos laços de Varuna também exprimem uma experiência religiosa comparável à de Job.

65 Cf. vitae fila, Ovídio, Héroides, 15, 82. Ver o capítulo sobre os rituais e as mitologias lunares no nosso Traité d'Histoire des Religions, pp. 142 sq.

por outro lado, que certas divindades66 são senhoras destes «fios» que,

em última instância, constituem uma vasta «ligação» cósmica.

É raro que a etimologia forneça um argumento decisivo em problemas tão delicados como os que dizem respeito à «origem» da religião e da magia; mas ela é frequentemente instrutiva. Schftelowitz e Güntert lembraram que, em várias famílias linguísticas, as palavras que designam a acção de «ligar» servem igualmente para exprimir o encantamento: por exemplo em turco-tártaro, bag, baj, boj significa simultaneamente «feitiçaria» e «laço, corda»67; em grego xcerccaáco

significa «ligar solidamente» e também «ligar por encanto de magia, fazendo um nó» (donde zorrckasvp.o.; «corda, enfeitiçar», Inscr. Graec., III, 3, p. v.; Scheftelowitz, p. 17); o latim fascinum, «encanto, malefício» é aparentado com fascia, «faixa, ligadura», com fascis, «feixe»; ligâre, «ligar», ligâtura, «acção de ligar» são também «encantar» e «encanto» (cf. o romeno legatura, «acção de ligar» e «enfeitiçar»); o sk. yukti, propriamente «atrelar, ligar», toma o sentido de «processos mágicos», e os poderes do yoga são por vezes compreendidos como um encantamento por «ligação»68. Todas estas etimologias confirmam que a acção de ligar é essencialmente mágica. Estamos aqui perante uma «especialização» extrema: enfeitiçar, ligar por magia, fascinar, etc. Etimologicamente, religio nota também uma forma de «ligação» à divindade, mas seria imprudente (como o faz Güntert, p. 130) compreender religio no sentido de «feitiçaria». Pois, como dissemos,

66 Na maior parte do tempo — mas não sempre — divindades lunares, por vezes tónico-lunares.

67 H. Vambéry, Die primitive Kultur des turko-tatarischen Volkes (Leipzig, 1879), p. 246. A noção de «quebrar o feitiço» exprime-se pela frase «libertar dos laços»; entre os Yoruba, a palavra edi, «ligação», tem também o sentido de «magia» e a palavra Ewe vôsesa, «amuleto», significa «desligar» (A. B. Ellis, Yoruba-speaking

peoples, London, 1894, p. 118).

68 Por ex., Mahabhârata, XIII, 41, 3 sq., onde Vipula «tinha subjugado os sentidos [de Rucí] por meio dos laços do Yoga» (babandha yogabandhâiç ca tasyâh

sarvendriyâni sah cf. mon Yoga. Essai sur les origines de la mystique indienne,

Paris-Bucarest, 1936, p. 151). Ver também Ananda K. Coomaraswamy, «Spiritual Paternity» and the «Puppet-Complex» (in Psychiatry, VIII, Nr. 3, August 1945, pp. 25-35), especialmente pp. 29 sq.

tanto a religião como a magia contêm na sua essência o elemento «ligação», se bem que, evidentemente, com uma outra intensidade e sobretudo com orientação contrária.

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 110-113)