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Deuses ligadores» na Índia Antiga

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 97-100)

Na Índia védica, Varuna não é o único deus «ligador». Dentre os que utilizam esta arma mágica salientam-se Indra, Yama, Nirrti. De Indra, por exemplo, diz-se que trouxe um laço (sina) para Vrtra (RV, II, 30, 2) e que o amarrou sem se servir de cordas (II, 13, 9). Mas Bergaigne, que põe em relevo estes textos (op. cit., III, p. 115, n. 1), observa que «não se trata evidentemente senão de um desenvolvimento secundário do mito, cujo sentido é o seguinte: Indra volta contra o demónio as suas próprias manhas.» Porque não são só Varuna e Vrtra que possuem o seu mâyâ, mas outros seres divinos também: assim os Maruts (RV, V, 53, 6), Tvashtr (X, 53, 9), Agni (I, 144, 1; etc.), Soma (IX, 73, 5; etc.) e até os Açvins (V, 78, 6; etc.; cf. Bergaigne, III, pp. 80 sq.). Mas, por um lado estamos muitas vezes aqui perante seres religiosos ambivalentes, no sentido de que um elemento demoníaco coexiste neles com elementos divinos (Tvashtr, Maruts); por outro lado, o atributo de «mágico» não é específico e só é dado às personalidades divinas como um acréscimo de homenagem: o prestígio do mâyin é tal que se sente a necessidade de o atribuir a toda a

19 Seríamos mesmo tentados a ver neste mundo de castigo uma extensão, um aprofundamento do tipo mesmo deVaruna,no sentido de ele forçar o culpado a uma «regressão ao virtual, na imobilidade», estado que ele próprio representa de certo modo.

divindade que se quer honrar. É um fenómeno bem conhecido na história das religiões, e especialmente das religiões indianas, o fato da tendência «imperialista» que leva uma forma religiosa vitoriosa a assimilar toda a espécie de outros atributos divinos e a estender o seu domínio às diversas zonas do sagrado. No caso de que nos ocupamos, esta tendência para a anexação de prestígios e de poderes estrangeiros à esfera própria do deus é tanto mais interessante quanto se trata de uma estrutura religiosa arcaica, a saber: o prestígio do «mágico». E aquele que maior proveito tirou disso foi Indra. «Ele triunfou dos mâyin por meio dos mâyâ»: tal é o leitmotiv de numerosos textos (Bergaigne, III, p. 82). Entre as «magias» de Indra coloca-se em primeiro lugar o seu poder de transformação20; mas talvez seja oportuno distinguir entre as suas múltiplas epifanias particulares, homologadas (touro, etc.) e o poder mágico indefinido que permite a um ser qualquer (divino, demoníaco, humano) revestir uma forma animal. Bem entendido, entre a esfera da epifania mítico-religiosa e a da metamorfose, há interferências, empréstimos, confusões, e, num domínio tão instável como a mitologia védica, nem sempre é fácil distinguir o que pertence a uma e a outra. Mas é justamente esta imprecisão e esta instabilidade que são instrutivas do ponto de vista fenomenológico, pois elas revelam bem a tendência das «formas» religiosas para se interpenetrar e se absorverem umas às outras e esta perspetiva dialética não pode deixar de ajudar a compreender os fenómenos religiosos arcaicos.

Voltemos a Indra. Este não é somente em alguns casos um «mágico»: ele «liga também tal como Varuna e como Vrtra. A atmosfera é o seu laço, e é com este laço que ele envolve os seus adversários (AV, VIII, 8, 5-8, etc.). O seu correspondente iraniano, Verethragna, liga as mãos do adversário (Yasht, 14, 63). Mas esses são traços secundários e que se explicam talvez pela autêntica utilização pré-histórica do laço à maneira de arma21. É verdade que, na perspetiva do pensamento arcaico, uma

20 Ver Jarl Charpentier, Kleine Beitrãge zur indo-iranischen Mythologie (Uppsala, 1911), pp. 34 sq.; id., Brahman (Uppsala, 1932), p. 49, n. 1; T. Renou, op. cit., p. 141.

arma é sempre um meio mágico; mas isto não impede que um deus propriamente guerreiro como Indra utilize este meio mágico em verdadeiros combates, enquanto Varuna se serve dos seus «laços» sem combater, sem agir, magicamente22.

Mais instrutivo é o exemplo dos outros deuses ligadores. Nirrti e Yama, ambos divindades da morte. Os laços de Yama (yamasya padbiça, AV, VI, 96, 2; VIII, 7, 28) são geralmente chamados «laços da morte» (mrtyupâçâh, AV, VII, 112, 2; VIII, 2, etc.; cf. Scheftelowitz, p. 6). Nirrti, por sua vez, prende com correntes aqueles que quer perder (AV, VI, 63, 1-2;

Taitt. Sam., V, 2, 4, 3; Çatapatha Brâhmana, VII, 2, 1, 15), e pede-se aos deuses que afastem «os laços de Nirrti» (AV, I, 31, 2), do mesmo modo que o homem implora a Varuna que o salve dos seus «laços». Tal como, em certos casos, Agni, Soma ou Rudra (Güntert, p. 122) são invocados para libertar dos «laços» de Varuna, «supõe-se que Indra pode livrar não só dos «laços» de Varuna», mas também da «amarração» dos demónios da morte (por eXemplo, AV, IX, 3, 2-3, onde se trata de cortar os laços da demónia Viçvavâra com a ajuda de Indra, etc.). As doenças são «laços» e a morte o «laço» supremo. O que explica que, em Yama e em Nirrti, estes atributos são, não só importantes, mas verdadeiramente constitutivos.

Doença e morte: estes dois elementos do complexo mágico-- religioso da «ligação» tiveram em quase todo o mundo a maior popularidade e seria oportuno investigar se a sua difusão não é de molde a esclarecer certos aspetos do problema que nos ocupa. Mas, antes de deixar o domínio indiano, tentemos esquematizar os conjuntos mais importantes que aí observámos: 1º Varuna, o Grande Asura, liga magicamente os culpados e é-lhe pedido quer que não ligue, quer que não desligue; 2º Vrtra prende com correntes as Águas e certos aspetos do seu mito estão de acordo com o lado noturno, lunar, aquático de Varuna, na medida em que estas modalidades do grande Deus exprimem o «não- manifestado» e o «bloqueado»; 3º Indra, tal como Agni e Soma, liberta os

sq.e passim.

22 Sobre o râjanya ligado pelos deuses desde o ventre de sua mãe (o râjanya nasceu ligado», Tratt Samhita, II, 4, 13, 1), cf. Dumézil, Flamen-Brahman, pp. 27

homens dos laços de Varuna e das correntes das divindades funerárias: ele «corta» ou «quebra» estes «laços», exatamente como, no mito, ele corta e retalha, etc., o corpo de Vrtra; a par dos processos guerreiros, que lhe são próprios e mesmo exclusivos, ele também emprega portanto, para triunfar do mágico Vrtra, «processos mágicos»: os «laços», em todo o caso, não constituem nele um traço fundamental, mesmo que o laço deva ser considerado como uma das suas armas; 4º pelo contrário, os laços, as cordas, os nós, caraterizam as divindades da morte (Yama, Nirrti) e os demónios das diversas doenças; 5º, enfim, nas versões populares dos livros védicos, os encantos dirigidos contra os laços destes demónios não são menos numerosos do que os sortilégios «ligadores» voltados contra os inimigos humanos.

Vê-se que, mesmo assim resumidas, as coisas não são simples. No entanto, desenham-se certas linhas de força: no plano mítico façanhas divinas, por um lado o não-agir mágico de Varuna e de Vrtra, por outro a acção de Indra; no plano humano das doenças e da morte, a importância dos laços e dos nós nas divindades funerárias ou nos demónios, e a utilização mágica da «ligação» tanto na medicina popular como nos sortilégios. Assim, desde os tempos védicos, o complexo da «ligação», permanecendo caraterístico, constitutivo da zona de soberania mágica, ultrapassa-a no entanto a nível superior (nível cosmológico: Vrtra e inferior (nível funerário: Yuma, Nirrti; nível de «feitiçaria»).

Experimentemos ver que novos contatos uma comparação com os outros domínios indo-europeus pode trazer a este quadro.

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 97-100)