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Simbolismo da fecundidade

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 125-129)

Mais ainda,do que a origem aquática e o simbolismo lunar das ostras

e das conchas marinhas, a sua semelhança com a vulva, contribuiu muito provavelmente para divulgar até este ponto as suas virtudes11. A analogia

está, aliás, por vezes inscrita nos próprios termos que designam certos moluscos bivalves como por exemplo o antigo nome dinamarquês da ostra kudefisk (kude = vulva; cf. Karlgren, p. 34, nota). A homologação da concha com o orgão genital feminino encontra-se também no Japão12. A

10 P. Saintyves, L'Astrologie populaire, étudiée spécialement dans les dotrines et les traditions relativas à l'influence de la lune (Paris, 1937), pp. 231 sq.

11 Ver Aigremont, Muschel und Schnecke als Symbol der Vulva einst und jetzt

(Anthropophyteia, 1909, VI, pp. 35-40); T. J. Meyer, Trilogie altindischer Mächte und Feste der Vegetation (Zürich, 1937), vol. I, p. 233. Cf. também a revista Man,

1939-1942.

12 Cf. Andersson, Children of the yellow earth. Studies in prehistoric China (London, 1934), p. 305. O ídolo feminino neolítico publicado pelo Dr. Kurt Singer (Cowrie

and Baubo in early Japan, p. 51) apresenta uma vulva monstruosa que não é

mais do que uma concha suspensa por uma corda. A concha bivalve desempenha um papel no mito do renascimento de O-Kuninushi. Segundo Kurt Singer, o ídolo poderia representar Ama-no-Uzume-no-Mikoto, «a Terrível

concha marinha e as ostras participam deste modo nas forças mágicas da matriz. Nelas se exercem e estão presentes as forças criadoras que jorram como que de uma fonte inesgotável, de todo o símbolo do princípio feminino. Assim, usadas sobre a pele como amuleto ou ornamento, ostras, conchas marinhas e pérolas impregnam a mulher de uma energia favorável à fecundação, ao mesmo tempo que as protegem de forças nocivas e da má sorte. As mulheres Akamba usam cintos ornamentados com conchas a que renunciam após o nascimento do primeiro filho13.

Noutros sítios, as ostras constituem o mais apropriado dos presentes de casamento. Na índia meridional as raparigas usam colares de conchas marinhas14 e a terapêutica hindu moderna utiliza o pó de pérola pelas suas qualidades revigorantes e afrodisíacas15: mais uma aplicação

«científica», no plano concreto, imediato, de um simbolismo arcaico de que só já se apreende metade.

A função cosmológica e o valor mágico da pérola eram conhecidos desde os tempos védicos. Um hino do Atharva Veda (IV, 10) exalta-os assim: «Nascida do vento, do ar, do raio, da luz, possa a concha nascida do ouro, a pérola, defender-nos do medo!

Com a concha nascida do oceano, a primeira de todas as coisas luminosas, nós matamos os demónios (raksas) e triunfamos dos

Mulher do Céu», que dança com o vestido levantado usque ad partes privatas (como se exprime Chamberlain) e que, pelo riso que provoca, força a Deusa-Sol, Amaterasu, a sair da caverna onde se escondera. Os naturalistas do século XVIII baseavam, aliás as suas classificações conquiliológicas nas semelhanças com a vulva. G. Elliot Smith, em The evolution of the Dragon (Manchester, 1919), cita as linhas seguintes da Histoire naturelle du Sénégal (séc. XVIII) de Adamson; «Concha Venerea sic dieta quia partem foemineam quodam modo repraesentat: externe quidem per labiorum fissuram, interno vero propter cavitatem uterum mentientem.»

13 Andersson, Children of the yellow earth, p. 304. Ver também C. K.: Meek, Man, 1940, No. 78.

14 Andersson ibid., p. 304. As jovens Tiagy usam a concha de um molusco como símbolo de virgindade; ao perdê-la devem renunciar ao uso da concha.

15 Kunz e Stevenson, The Book of the Pearl, p. 309, citando Sourindro Mohan Tagore, Mani-Mâlâ or a treatise on Gems (Calcutta, 1881).

(demónios) devoradores. Com a concha (triunfamos) da doença, da pobreza... A concha é o nosso remédio universal; a pérola preserva-nos do medo. Nascida do céu, nascida do mar, trazida por Sindhu, esta concha nascida do ouro é para nós a jóia (mani) que prolonga a vida. Jóia nascida do mar, sol nascido da nuvem, protege-nos de todos os lados das flechas dos Deuses e dos Asuras. Tu és um dos ouros ("pérola" é um dos nomes do ouro), nasceste da Lua (Sôma), enfeitas o carro, resplandeces na aljava das setas. Prolonga as nossas vidas! O osso dos deuses fez-se pérola; ele toma vida e move-se no seio das águas. Tomo-te para o resto da vida, e o vigor e a força, para a longa vida, a vida de cem outonos. Que a pérola te proteja!»

A medicina chinesa, por seu turno, considera a pérola como uma droga excelente pelas suas virtudes fertilizantes e ginecológicas16. De

acordo com uma crença japonesa, certos mexilhões ajudam no parto; daí a sua designação de «mexilhões-parto-fácil» (Andersson, Children of the yellow earth, p. 304). Na China, recomenda-se que não se dê às mulheres grávidas certa ostra que tem a propriedade de apressar o parto (Karlgren, p. 36). As ostras, contendo exclusivamente o princípio yin, são favoráveis ao parto e por vezes precipitam-no. A semelhança entre a pérola que se desenvolveu na ostra e o feto é aliás posta em relevo pelos autores chineses. Em Pei ya (século XI) diz-se ,da ostra pang que, «grávida da

pérola, ela é como (a mulher) transportanto o feto no seu ventre, eis porque pang se chama «o ventre da pérola» (Karlgren, p. 36).

Entre os gregos, a pérola era o símbolo do amor e do casamento17. As conchas estiveram, aliás, desde os tempos pré-helénicos em estreita relação com as Grandes Deusas18. Consagravam-se conchas a Afrodite, em Chipre, para onde a deusa tinha sido conduzida após ter nascido da espuma do mar (Plínio, Hist. Nat., IX, 30; XXXII, 5). O mito de Afrodite nascida de uma concha marinha estava provavelmente difundido no mundo mediterrânico. Plauto, que traduziu um verso de Dífilo — tem

16 Cf. J. W. Jackson, Shells as evidence of the migrations of early culture, p. 101; De Groot, The religious system of China, vol. I (Leiden, 1898), pp. 217, 277. 17 Kunz e Stevenson, op. cit., pp. 307 sq.

conhecimento dessa tradição: Te ex concha reatam esse autumnant19. Na

Síria, a deusa chamava-se a «Dama das pérolas»; em Antióquia, Margaritô20. O complexo Afrodite-conchas é confirmado, além do mais,

por numerosas gravuras sobre conchas (Déonna, op. cit., p. 402). A assimilação da concha marinha ao orgão genital feminino era também sem dúvida, do conhecimento dos Gregos. O nascimento de Afrodite dentro de uma concha ilustrava este laço místico entre a deusa e os seus princípios. Este simbolismo do nascimento é que inspirava a função ritual das conchas21. Graças ao seu poder criador — na sua qualidade de

emblemas da matriz universal — as conchas têm o seu lugar nos ritos funerários. Tal simbolismo de regeneração não se anula facilmente: as conchas que simbolizam a ressurreição em muitos monumentos funerários romanos passarão para a arte cristã (Déonna, p. 408). Aliás muitas vezes a morte é identificada com Vénus: esta é representada sobre o sarcófago, de tronco nu, tendo aos pés a pomba (ibid., p. 409); por esta identificação com o arquétipo da vida em perpétua renovação, a morte assegura a sua ressurreição.

Em toda a parte a concha marinha, as pérolas, o caracol, figuram entre os emblemas de amor e de casamento. A estátua de Kâmadeva é ornamentada com conchas22. Na índia anuncia-se a cerimónia nupcial

19 W. Déonna, Aphrodite à la coquille (Revue Archéologique, novembre-decembre 1917, pp. 312-416), p. 399.

20 Déonna, p. 400. Hugo Winckler defende a origem babilónica da palavra grega

margarites que diz derivar de mâr-gallittu, por transformação do 1 em r (como

em Diglat-Tigris); cf. Winckler, Himmels-und Weltenbild der Babylonier, II ed., Leipzig, 1903, p. 58, n. 1. Ver enunciação das hipóteses sobre a origem da palavra margarites em Theologisches Wõrterbuch zum Neuen Testament (G. Kittel), t. IV, p. 476.

21 Cf. Ditionnaire des antiquités, s. v. Bucina; Forrer in Realle-xicon, s. v. Muschelsehmuck; Pauly-Wissowa, s. v. Margaritai; Déonna, p. 406; G. Belluci,

Parallèles ethnographiques (Pérouse, 1915), pp. 25-27; U. Pestallozza, Sulla

rappresentazione di un pithos arcaico-beotico (Studi e Materiali di Storia deite

Religioni, vol. XIV, 1938, pp. 12-32), pp. 14 sq.; Hoernes-Menghin, Urgeschichte der bildenden Kunst in Europa (Wien, 1925), p. 319, fig. 1-4 (figurinhas em forma

de concha provenientes da Trácia).

soprando num grande búzio marinho23. Esta mesma concha (Turbinella

pyrum) é, aliás, um dos dois principais símbolos de Visnu. Uma oração ilustra estas valências religiosas: «Na boca desta concha está o deus da Lua, nos seus lados mora Varuna, no seu dorso Prajapati, no seu cimo o Ganges, o Saravasti e todos os outros rios sagrados dos três mundos, onde segundo o mandamento de Vâsudeva, se fazem abluções. Dentro desta concha está o chefe dos brâmanes. Por isso adoremos esta concha sagrada. Glória a ti, concha sagrada, bendita sejas tu por todos os deuses, ó tu nascida do mar e que Visnu segura na mão. Adoramos a concha sagrada, meditamos sobre ela. Exaltemo-nos na alegria!»24

Entre os Aztecas, o caracol simbolizava correntemente a concepção, a gravidez, o parto25. A propósito da gravura XXVI do Codex Vaticanus

Kingsborough transcreve a explicação dada pelos indígenas, acerca da associação do molusco (sea snail) e do parto: «...tal como este animal marinho sai da concha, assim o homem nasce do ventre da sua mãe»26. A mesma interpretação autótone se encontra, a propósito da gravura XI do Codex Tetteriano Remensis (ibid., VI, p. 122).

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