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Simbolismo da ascensão

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 46-51)

É bastante provável que, pelo menos no caso das religiões centro- asiáticas e siberianas, este simbolismo do Centro seja influenciado por esquemas cosmológicos indo-iranianos e, em última análise, mesopotâmicos. A importância do número 7, entre outras coisas, parece prová-lo. Mas importa fazer bem a distinção entre o empréstimo de uma teoria cosmológica elaborada em torno do simbolismo do Centro — como seria, por exemplo, a concepção de 7 níveis celestes — e o simbolismo do centro em si. Já vimos que este simbolismo é extremamente arcaico, que é conhecido pelos Pigmeus da península de Malaca. E mesmo que se pudesse suspeitar de uma longínqua influência indiana nestes Pigmeus Semang, ficaria ainda por explicar o simbolismo do Centro encontrado nos monumentos pré-históricos (Montanhas Cósmicas, os quatro rios, a Árvore e a espiral, etc.). Melhor ainda: pôde demonstrar-se que o

12 Cf. E. Emsheimer, Schamanentrommel und Trommelbaum (Ethnos, vol. IV, 1946, pp. 166-181).

13 A ascensão iniciática de uma árvore cerimonial encontra-se também no xamanismo indonésio, sul-americano (Araucan) e norte-americano (Pomo), cf.

simbolismo de um eixo cósmico é já conhecido nas culturas arcaicas (as Urkulturen da escola Graebner-Schmidt) e, em primeiro lugar, pelas populações árticas e norte-americanas: a trave central da habitação destes povos é assimilada ao Eixo Cósmico. E é na base deste poste que se colocam as oferendas destinadas às divindades celestiais, pois é só ao longo deste eixo que as oferendas podem subir ao céu14. Quando a forma da habitação se altera a cabana é substituída pela yurta (como, por exemplo, entre os pastores-criadores da Ásia central), a função mítico- ritual do pilar central é assegurada pela abertura superior destinada esta ao escapamento do fumo. Na altura dos sacrifícios, introduz-se na yurta uma árvore cujo cimo sai por aquela abertura. Esta árvore sacrificial, pelos seus 7 ramos simboliza as 7 esferas celestes. Assim, por um lado, a casa está homologada ao Universo e por outro lado ela é vista como situada no Centro do Mundo, ficando a abertura destinada ao fumo na direcção da estrela polar.

Voltaremos em breve a esta assimilação simbólica da habitação no «Centro do Mundo», pois ela trai um dos comportamentos mais instrutivos do homem religioso arcaico. Para já fiquemos nos ritos de ascensão que se verificam num «centro». Vimos que o Xamã tártaro ou siberiano trepa a uma árvore e que o sacrificador védico sobe uma escada. Os dois ritos perseguem a mesma finalidade: a ascensão ao Céu. Um número considerável de mitos fala de uma árvore, de uma liana, de uma corda, de um fio de aranha ou de uma escada que liga a Terra ao Céu e por intermédio dos quais certos seres privilegiados sobem efetivamente ao céu. Estes mitos têm, bem entendido, correspondências rituais — como, por exemplo a árvore Xamânica ou o mastro do sacrifício védico. A escada cerimonial desempenha igualmente um papel importante. Contentemo-nos com alguns exemplos: Polyeno (Stratagematon, VII, 22) fala-nos de Kosingas, padre-rei de algumas populações da Trácia, que ameaçava deixar os súbditos subindo por uma escada de madeira até à deusa Hera; o que prova que a dita escada ritual existia e que se supunha que pudesse conduzir o padre-rei até ao Céu. A ascensão celeste pela

subida cerimonial de uma escada fazia provavelmente parte de uma iniciação órfica. Em todo o caso voltamos a encontrá-la na iniciação mitríaca. Nos mistérios de Mithra, a escada (clímax) cerimonial tinha 7 degraus, sendo cada degrau feito de um metal diferente. Segundo Celso (Origines, Contra Celsum, VI, 22), o primeiro degrau era de chumbo e correspondia ao «céu» do planeta Saturno, o segundo de estanho (Vénus), o terceiro de bronze (Júpiter), o quarto de ferro (Mercúrio), o quinto de «liga de moeda» (Marte), o sexto de prata (Lua), o sétimo de ouro (Sol). O oitavo degrau, diz-nos Celso, representa a esfera das estrelas fixas15. Subindo esta escada cerimonial, o iniciado percorria efetivamente os 7 céus elevando-se assim até ao Empíreo — tal como se subia ao último céu escalando os 7 andares da ziqqurat babilónica ou se atravessavam as diferentes regiões cósmicas pelos terraços do templo Barabudur que constituía em si próprio, como vimos, uma Montanha Cósmica e uma imago mundi.

Compreende-se facilmente que a escada da iniciação mitríaca era um Eixo do Mundo e que se encontrava no Centro do Universo; de outro modo a ruptura dos níveis não teria sido possível. «Iniciação» quer dizer, como se sabe, morte e ressurreição do neófito, ou, noutros contextos, descida aos Infernos seguida de ascensão ao Céu. A morte — iniciática ou não — é a ruptura de nível por excelência. E por isso que ela é simbolizada por uma escalada e frequentemente os rituais funerários utilizam escadas ou escadarias. A alma do morto sobe as veredas de uma montanha, ou trepa a uma árvore, ou liana até aos céus. Esta concepção encontra-se um pouco por todo o mundo, desde o Egipto antigo à Austrália. A expressão habitual em assiriano para o verbo «morrer» é: «agarrar-se à montanha». Igualmente em egípcio, myny, «agarrar-se», é um eufemismo para «morrer». Na tradição mítica indiana, Yama, o primeiro morto, trepou à

montanha e percorreu os «altos desfiladeiros» para mostrar «o caminho a

15 Cf. os materiais reunidos no nosso Chamanisme, pp. 248 sq. Para o simbolismo cristão da ascensão ver Louis Beirnaert, Le Symbolisme ascensionnel dans la liturgie et la mystique chrétiennes (Eranos-Jahrbuch, XIX, Zürich, 1951, pp. 41- 63).

muitos homens»; assim se exprime o Rig Veda (X, 14, 1). O caminho dos mortos na crença popular uralo-altaica é a escalada dos montes; Bolot, herói Kara-Kirghiz, tal como Kesar, rei lendário dos mongóis, entra no outro mundo, à maneira de prova iniciática, por uma gruta situada no topo das montanhas; a descida do xamã aos Infernos também se realiza por meio de uma gruta. Os Egípcios conservam nos seus textos funerários a expressão asket pet (asket = «degrau») para indicar que a escada de que dispõe Ré, é uma escada real que liga a Terra ao Céu. «Está instalada, para mim, a escada de ver os deuses», diz o Livro dos Mortos. «Os deuses fazem-lhe uma escada para que, ao servir-se dela, ele suba ao Céu», diz ainda aquele livro. Em muitos túmulos do tempo das dinastias arcaicas e medievais, encontraram-se amuletos em forma de escada (maqet) ou uma escalda. O uso da escada funerária sobreviveu algures até aos nossos dias: diversas populações asiáticas primitivas — como, por exemplo, os Lolos, os Karens, etc. — erguem sobre os túmulos escadas rituais que servem para os defuntos subirem aos Céus16.

Como acabamos de ver, a escada contém um simbolismo extremamente rico sem deixar de ser perfeitamente coerente: ela representa plasticamente a ruptura de nível que torna possível a passagem de um modo de ser a um outro; ou, colocando-nos no plano cosmológico, que torna possível a comunicação entre Céu, Terra e Inferno. E por isso que a escada e a escalada desempenham um papel considerável tanto nos ritos e mitos de iniciação como nos ritos funerários, para não falar dos ritos de entronização real ou sacerdotal, ou dos ritos de casamento. Ora, sabe-se que o simbolismo da escalada e dos degraus se encontra com muita frequência na literatura psicanalítica, o que define que estamos perante um comportamento arcaico da psiqué humana e não perante uma criação «histórica», uma inovação devida a um certo momento histórico (digamos: o Egipto arcaico ou a índia védica, etc.). Contentemo-nos com um único exemplo de redescoberta espontânea

16 Ver Traité d'Histoire des Religions, pp. 96 sq. Le Chamanisme et les techniques

deste simbolismo primordial17.

Julien Green nota no seu Diário de 4 de Abril de 1933: «Em todos os meus livros a ideia do medo ou de qualquer outra emoção um pouco forte parece ligada de maneira inexplicável a uma escada. Apercebi-me disso ontem, quando passava em revista todos os romances que escrevi... (Seguem-se as referências). Pergunto-me como pude eu repetir tantas vezes este efeito sem dar por isso. Em criança sonhava que me perseguiam numa escada. Minha Mãe sofreu dos mesmos temores na sua juventude; talvez tenha permanecido em mim um pouco disso...»

Sabemos hoje por que motivo a ideia de medo, no escritor francês, está ligada à imagem de uma escada e por que razão todos os acontecimentos dramáticos por ele descritos ao longo da sua obra — amor, morte, crime — tiveram lugar numa escada. A escalada ou a ascensão simboliza o caminho para a realidade absoluta; e, na consciência profana, a aproximação desta realidade provoca um sentimento ambivalente de medo e de alegria, de atracção e de repulsa, etc. As ideias de santificação, de morte, de amor e de libertação estão implicadas no simbolismo da escada. Com efeito, cada um destes modos de ser representa a abolição da condição humana profana, isto é, uma ruptura de nível ontológica: através do amor, da morte, da santidade, do conhecimento metafísico, o homem passa, como o diz a Brihadâranyaka Upanisad, do «irreal à realidade».

Mas, é preciso que não se esqueça, a escada simboliza todas as coisas porque se supõe erguer-se num «centro», porque torna possível a comunicação entre os diferentes níveis do ser, porque, enfim, não é mais do que uma fórmula concreta da escada mítica, da liana ou do fio de aranha, ,da Árvore Cósmica ou do Pilar universal que ligam as três zonas

cósmicas.

17 Ver nosso estudo Durohâna and the «waking dream» (Art and Thought, A volume in honour of the late Dr. Ananda K. Coomaraswamy, London, 1947, pp. 209 sq.).

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 46-51)