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A imagem do mundo

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 37-41)

As sociedades arcaicas e tradicionais concebem o mundo em seu redor com um microcosmos. Nos limites deste mundo fechado, começa o domínio do desconhecido, do não-formado. De um lado existe o espaço cosmisado, portanto habitado e organizado — de outro lado, no exterior deste espaço familiar, existe a região desconhecida e terrível dos demónios, das larvas, dos mortos, dos estrangeiros; numa palavra: o caos, a morte, a noite. Esta imagem de um microcosmomundo habitado, rodeado de regiões desérticas assimiladas ao caos ou ao reino dos

mortos, sobreviveu mesmo nas civilizações muito evoluídas, com as da China, da Mesopotâmia ou do Egipto. De fato, um grande número de textos assimila os adversários, prontos a atacar o território nacional, às larvas, aos demónios ou às forças do caos. Assim, os adversários do Faraó eram considerados como «filhos da ruína, dos lobos, dos cães», etc. O Faraó era assimilado ao deus Ré, vencedor do dragão Apófis enquanto os seus inimigos eram identificados com este dragão mítico2. Pelo fato de atacarem e porem em perigo o equilíbrio e a própria vida da cidade (ou ide qualquer outro território habitado e organizado), os inimigos são assimilados às forças demoníacas, pois eles esforçam-se por reintegrar este microcosmos no estado caótico, ou seja suprimi-lo. A destruição de uma ordem estabelecida, a abolição de uma imagem arquetípica, equivalia a uma regressão para o caos, para o pré-formal, para o estado não diferenciado que precedia a cosmogonia. Notemos que as mesmas imagens são ainda utilizadas nos nossos dias quando se trata de formular os perigos que ameaçam um certo tipo de civilização: fala-se nomeadamente de «caos», de «desordem», das «trevas» em que mergulhará o «nosso mundo». Todas estas expressões, como bem se vê, significam a abolição de uma ordem, de um Cosmos, de uma estrutura, e a re-imersão num estado fluido, amorfo, caótico enfim.

A concepção do adversário sob a forma de um ser demoníaco, verdadeira encarnação idas forças do mal, sobreviveu igualmente até aos nossos dias. A psicanálise destas imagens míticas que ainda hoje animam o mundo moderno, mostrar-nos-á talvez em que medida projetamos nos «inimigos» os nossos próprios desejos de destruição. Mas este problema ultrapassa a nossa competência. O que queremos trazer à luz é o fato de, para o mundo arcaico em geral, os inimigos que ameaçavam o microcosmos serem perigosos não tanto como seres humanos (em si) mas porque encarnavam as forças hostis e destruidoras. É muito provável que as defesas dos lugares habitados e das cidades tenham começado por ser defesas mágicas; pois estas defesas — fossos, labirintos, muralhas, etc. —

2 Ver o nosso livro Le Mythe de l'Éternel Retour: Archétypes et Répétition (Gallimard, Paris, 1949), pp. 68 sq.

eram dispostas mais para impedir a invasão dos espíritos maus do que o ataque dos humanos3. Mesmo muito mais tarde na história, na Idade

Média, por exemplo, os muros das cidades eram consagrados ritualmente como uma defesa contra o Demónio, a doença e a morte. Além do mais, o simbolismo arcaico não encontra qualquer dificuldade em assimilar o inimigo humano ao Demónio ou à Morte. Afinal o resultado dos seus ataques, quer sejam demoníacos, quer militares, é sempre o mesmo: a ruína, a desintegração, a morte.

Todo o microcosmos, toda a região habitada, tem aquilo a que poderia chamar-se um «Centro», isto é um lugar sagrado por excelência. É aí, nesse Centro, que o sagrado se manifesta de uma maneira total, quer sob a forma de hierofanias elementares — como entre os «primitivos» (os centros totémicos, por exemplo, as cavernas onde se enterram os tchuringas, etc.) — quer sob a forma mais evoluída das epifanias diretas dos deuses, como nas civilizações tradicionais. Mas não se deve encarar este simbolismo do Centro com as suas implicações geométricas do espírito científico ocidental. Para cada um destes microcosmos podem existir vários «centros». Como não tardaremos a ver, todas as civilizações orientais — Mesopotâmia, índia, China, etc. — conhecem um número ilimitado de «Centros». Melhor ainda: cada um destes «Centros» é considerado e mesmo designado literalmente por «Centro do Mundo». Como se trata de um espaço sagrado, que é dado por uma hierofania ou construído ritualmente, e não de um espaço profano, homogéneo, geométrico, a pluralidade dos «Centros da Terra» no interior de uma só região habitada não oferece qualquer dificuldade4. Estamos em presença

de uma geografia sagrada e mítica, a única efetivamente real e não de uma geografia profana, «objetiva», de certo modo abstrata e não essencial, construção teórica de um espaço e de um mundo que não se habita e que portanto, não se conhece.

Na geografia mítica, o espaço sagrado é o espaço real por excelência,

3 Cf. W. J. Knight, Cumaean Gates (Oxford, 1936); Karl Kerényi, Labyrinth-Studien (Amsterdam-Leipzig, 1941, Albae Vigilae, Heft XV).

pois, tal como se provou recentemente5, para o mundo arcaico o mito é real porque ele relata as manifestações da verdadeira realidade: o sagrado. É em tal espaço que se está diretamente em contato com o sagrado — seja este materializado em certos objetos (tchuringas, representações da divindade, etc.) ou manifestado nos símbolos hiero- cósmicos (Pilar do Mundo, Árvore Cósmica, etc.). Nas culturas que conhecem a concepção das três regiões cósmicas — Céu, Terra, Inferno — o «centro» constitui o ponto de intersecção destas regiões. É aqui que se torna possível uma ruptura de nível e, ao mesmo tempo, uma comunicação entre estas três regiões. Temos motivos para crer que a imagem de três níveis cósmicos é bastante arcaica; ela encontra-se, por exemplo, nos pigmeus Semang da península de Malaca: no centro do Mundo ergue-se um enorme rochedo, Batu-Ribn; debaixo dele encontra- se o Inferno. Outrora de Batu-Ribn elevava-se um trono em direcção ao Céu6. O inferno, no centro da terra e a «porta» do Céu encontram-se pois no mesmo eixo, e por este eixo se efetuava a passagem de uma região cósmica para outra. Hesitar-se-ia em crer na autenticidade desta teoria cosmológica entre os pigmeus Semang se não tivessemos bases para admitir que a mesma teoria tinha sido já esboçada na época pré- histórica7. Os Semang dizem que antigamente um tronco de árvore ligava o cume da Montanha Cósmica, o Centro do Mundo, com o Céu. É uma alusão a um tema mítico extremamente difundido: outrora, as comunicações com o Céu e as relações com a divindade eram fáceis e «naturais»; em consequência de uma falta ritual, estas comunicações foram interrompidas e os deuses retiraram-se mais para o alto nos céus.

5 Cf. . R. Pettazzoni, Miti e Leggende, I (Torino, 1948), p. v; id., Veritá del Mito

(Studi e Materiali di Storia delle Religioni, vol. XXI, 1947-1948, pp. 104-116); G.

van der Leeuw, Die Bedeutung der Mythen (Festschrift für Alfred Bertholet, Tübingen, 1949, pp. 287-293); M. Elíade, Traité d'Histoire des Religions, pp. 350

sq.

6 P. Schebesta, Les Pygmées (trad. fr., Paris, 1940), pp. 156 sq.

7 Cf. por exemplo, W. Gaerte, Kosmische Vorstellungen im Bilde prähistorisher Zeit: Erdberg, Himmelsberg, Erdnabel und Welttenströme (Anthropos, IX, 1914, pp. 956-979).

Só os curandeiros, os Xamãs, os padres e os heróis ou os soberanos conseguem restabelecer, de modo passageiro e unicamente para seu próprio uso, as comunicações com o Céu8. O mito de um paraíso

primordial perdido por causa de uma determinada falta é extremamente importante — mas, se bem que de certo modo se relacione com o nosso assunto, não o podemos discutir agora.

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 37-41)