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História e arquétipos

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 33-37)

Mas deixemos de parte as objecções que poderiam opor-se ao historicismo e ao existencialismo historicista e voltemos ao nosso problema, isto é, aos dilemas do historiador das religiões. Este, dizíamos, esquece muitas vezes que está a lidar com um comportamento humano arcaico e integral e que, por conseguinte, o seu papel não deveria reduzir- se ao registo das manifestações históricas deste comportamento, ele deveria aplicar-se também a penetrar mais profundamente os seus significados e as suas articulações. Tomemos um só exemplo; sabe-se hoje que certos mitos e símbolos circularam através do mundo divulgados por determinados tipos de cultura; quer dizer que estes mitos e estes símbolos nem por isso são descobertas espontâneas do homem arcaico mas criações de um complexo cultural bem delimitado, elaborado e

veiculado por certas sociedades humanas; tais criações foram difundidas muito longe do Seu lugar de origem e foram assimiladas por povos e sociedades que doutro modo as não teriam conhecido.

Creio que estudando tão rigorosamente quanto possível as relações entre certos complexos religiosos e certas formas de cultura, e precisando as etapas da difusão destes complexos o etnólogo tem o direito de se declarar satisfeito com os resultados das suas pesquisas. Mas este não seria o caso do historiador das religiões: uma vez aceites e integrados os resultados da etnologia, aquele deve ainda pôr-se outros problemas: porquê tal mito ou tal símbolo puderam ser difundidos? Que revelavam eles? Por que motivo certos pormenores — mesmo muito importantes — se perdem durante a difusão, enquanto outros continuam a sobreviver? Em suma: a que respondem estes mitos e estes símbolos para terem tido uma tal difusão? É preciso não abandonar estas questões aos psicólogos, aos sociólogos e aos filósofos porque ninguém está mais bem preparado para as resolver do que o historiador das religiões.

Basta que nos demos ao trabalho de estudar o problema para verificar que, difundidos ou descobertos espontaneamente, os símbolos, os mitos e os ritos revelam sempre uma situação--histórica: situação limite quer dizer: aquela que o homem descobre ao tomar consciência do seu lugar no Universo. É principalmente ao esclarecer estas situações- limite que o historiador das religiões cumpre a sua tarefa e vai ao encontro das investigações da psicologia de profundidade e até mesmo da filosofia. Este estudo é possível e, aliás, já foi iniciado. Chamando a atenção para a sobrevivência dos símbolos e temas míticos na psiqué do homem moderno, mostrando que a redescoberta espontânea dos arquétipos do simbolismo arcaico é coisa vulgar entre nós, seres humanos, sem diferença de raça e de meio histórico, a psicologia de profundidade libertou o historiador das religiões das suas últimas hesitações. Dentro em pouco daremos alguns exemplos de redescoberta espontânea de um simbolismo arcaico e veremos o que eles podem ensinar a um historiador das religiões.

das religiões se ela soubesse tirar partido de todas as suas próprias descobertas e das da etnologia, da sociologia e da psicologia de profundidade. A encarar o estudo do homem não apenas como ser histórico, mas também como símbolo vivo, a história das religiões poderia transformar-se, perdoem-nos o termo, numa metapsicanálise. Porque ela conduziria a um despertar e a uma retomada de consciência dos símbolos e dos arquétipos arcaicos, vivos ou fossilizados nas tradições religiosas da humanidade inteira. Arriscámos o termo: metapsicanálise pois se trata de uma técnica mais espiritual, aplicando-se antes de mais a esclarecer o conteúdo teórico dos símbolos e dos arquétipos, a tornar transparente o que é «alusivo», críptico ou fragmentário. Falar-se-ia assim também de uma nova maiêutica: tal como Sócrates no Tuteto (149 a sq., 161 e) fazia com que o espírito desse à luz os pensamentos que aquele continha sem o saber, a história das religiões poderia dar à luz um homem novo, mais autêntico e mais completo; pois, através do estudo das tradições religiosas, o homem moderno não reencontraria apenas um comportamento arcaico; tomaria, além disso, consciência da riqueza espiritual que implica um tal comportamento.

Esta maiêutica realizada com a colaboração do simbolismo religioso contribuiria assim para libertar o homem moderno do seu provincianismo cultural e, sobretudo, do relativismo historicista e existencialista. Porque, como se verá, o homem opõe-se à própria história mesmo quando se dedica a fazê-la, mesmo quando pretende nada mais ser do que «história». E, na medida em que o homem ultrapassa o seu momento histórico e dá livre curso ao seu desejo de reviver os arquétipos, ele realiza-se como um ser integral, universal. Na medida em que se opõe à história, o homem moderno encontra as posições arquetípicas. Até o seu sono, as suas tendências orgíacas estão carregadas de significado espiritual. Pelo simples fato de encontrar no mais fundo do seu ser os ritmos cósmicos — a alternância dos dias e das noites, por exemplo, ou Inverno-Verão — ele alcança um conhecimento mais total do seu destino e do seu significado.

poderia reencontrar o simbolismo do seu corpo, que é um antropo- cosmos. Aquilo que as diversas técnicas da imaginação, e especialmente as técnicas poéticas, realizaram a este respeito, não é quase nada ao pé das promessas da história das religiões. Todos estes dados subsistem ainda, mesmo no homem moderno; é necessário apenas reanimá-los e trazê-los ao limiar da consciência. Ao retomar consciência do seu próprio simbolismo antropo-cósmico — que não passa de uma variante do simbolismo arcaico — o homem moderno obterá uma nova dimensão existencial, totalmente ignorada pelo existencialismo e pelo historicismo atual: é um modo de ser autêntico e maior, que o defende do nihilismo e do relativismo historicista sem todavia o subtrair da história. Porque a própria história poderia um dia encontrar o seu verdadeiro sentido: o da epifania de uma condição humana gloriosa e absoluta. Basta que nos recordemos da valorização que o judaico-cristianismo deu à existência histórica, para nos apercebermos de como e em que sentido histórico aquela poderia tornar-se «gloriosa» e mesmo «absoluta».

Não é pretender-se, evidentemente, que o estudo racional da história das religiões deva ou possa ser substituído pela experiência religiosa, e menos ainda pela experiência da fé. Mas, mesmo para uma consciência cristã, a maiêutica pela interpretação do simbolismo arcaico dará os seus frutos. O cristianismo herdou uma antiquíssima e muito complexa tradição religiosa, cujas estruturas sobreviveram dentro da Igreja, mesmo que os valores espirituais e a orientação teológica tenham mudado. De qualquer modo, nada do que, através do Cosmos, manifesta a Glória — para falar em termos cristãos — pode deiXar indiferente um crente.

Enfim, o estudo racional das religiões trará à luz um fato insuficientemente notado até agora: é que existe uma lógica do símbolo, que certos grupos de símbolos, pelo menos, se mostram coerentes, logicamente encadeados entre si1; que se pode, numa palavra, formulá-

los sistematicamente, traduzi-los em termos racionais. Esta lógica interna

dos símbolos põe um problema de pesadas consequências; certas zonas do inconsciente individual ou coletivo serão ou não dominadas também

pelo logos, ou estaremos perante manifestações de um transconsciente?

Este problema não poderia ser resolvido unicamente pela psicologia de profundidade, pois os simbolismos que decifram esta última são constituídos na maior parte do tempo, por fragmentos dispersos e por manifestações de uma psiqué em crise, se não em regressão patológica. Para surpreender as verdadeiras estruturas e funções dos símbolos, é preciso que nos dirijamos ao inesgotável repertório da história das religiões. Mas, ainda aqui é preciso saber escolher pois os nossos documentos apresentam frequentemente formas decadentes, aberrantes ou francamente medíocres. Se se quiser chegar a uma compreensão adequada do simbolismo religioso arcaico é-se obrigado a fazer uma selecção, do mesmo modo que, para se ter ideia de uma literatura estrangeira, não se consideram ao acaso os primeiros dez ou cem livros que se encontram na primeira biblioteca pública. Deve esperar-se que os historiadores das religiões façam um dia o trabalho de hierarquização dos seus documentos, tendo em conta o seu valor e o seu estado, tal como os seus colegas, os historiadores das literaturas. Mas, mesmo assim, estamos apenas no princípio.

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 33-37)