• Nenhum resultado encontrado

Símbolos e culturas

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 167-170)

A história de um simbolismo é um estudo apaixonaste e aliás completamente justificado, pois é a melhor introdução ao que se designa por filosofia da cultura. As Imagens, os arquétipos, os símbolos são diversamente vividos e valorizados: o produto destas atualizações múltiplas constitui, em grande parte, os «estilos culturais». Em Ceram, nas ilhas Molucas, e em Eleusis reencontram-se as aventuras míticas de uma jovem primordial: Hainuwele e Kore Persefona11. Do ponto de vista da

estrutura, os seus mitos assemelham-se: e todavia que diferença entre as culturas grega e ceramiana! A morfologia da cultura, a filosofia dos estilos

11 Ver Ad. E. Jensen, Hainuwele, Volkserzühlungen von der Molukken-Insel Ceram

(Frankfurt-a-Mein, 1939);id., Die Drei StrömeLeipzig, 1948), pp. 277sq.;C. C. Juno e Karl Kerényi,Das götlichen Mädchen (Albae Vigilae,Heft, 8-9, Amsterdam, 1941).

interessar-se-ão sobretudo pelas formas particulares tomadas pela Imagem da Jovem na Grécia e nas ilhas Molucas. Mas se, na qualidade de formações históricas, estas culturas deixaram de ser intercambiáveis, estando já constituídas nos seus próprios estilos, são no entanto comparáveis ao nível das Imagens e dos símbolos. É justamente esta perenidade e esta universalidade dos arquétipos que «salvam» em última instância as culturas, tornando ao mesmo tempo possível uma filosofia da cultura que seja mais do que uma morfologia ou uma história dos estilos. Toda a cultura é uma «queda na história»; e é, simultaneamente, limitada. Não nos 'deixemos iludir pela incomparável beleza, pela nobreza e perfeição da cultura grega; também ela não é universalmente válida como fenómeno histórico: tente-se, por exemplo, revelar a cultura grega a um Africano ou a um Indonésio: não será decerto o admirável «estilo» grego que lhes transmitirá a mensagem, mas as Imagens que o Africano ou o Indonésio redes-cobrirão nas estátuas ou nas obras-primas da literatura clássica. O que, para um Ocidental, é belo e verdadeiro nas manifestações históricas da cultura antiga, não tem valor para um habitante da Oceania; porque, manifestando-se em estruturas e estilos condicionados pela história, as culturas limitaram-se. Mas as Imagens que as precedem e a informam permanecem eternamente vivas e universalmente acessíveis. Um Europeu dificilmente admitirá que o valor espiritual geralmente humano e a mensagem profunda de uma obra- prima grega, a Vénus de Milo, por exemplo, não reside, para três quartas partes da humanidade, na perfeição formal da estátua, mas na Imagem da Mulher que ela revela. E, portanto, se não conseguirmos ter em conta esta simples verdade de fato, não há esperança nenhuma de podermos esboçar um diálogo útil com um não-Europeu.

Em suma, é a presença das Imagens e dos símbolos que conserva as culturas «abertas»: a partir de qualquer cultura, tanto australiana como ateniense, as situações-limite do homem são 'perfeitamente reveladas graças aos símbolos que sustentam estas culturas. Se se negligenciar este fundamento espiritual único dos diversos estilos culturais, a filosofia ,da

sem nenhuma validade para a condição humana em si. Se as Imagens não fossem ao mesmo tempo uma «abertura» para o transcendente, acabar- se-ia por asfixiar em qualquer cultura por maior e mais admirável que a possamos supor. A partir de toda a criação espiritual estilisticamente e historicamente condicionada, pode atingir-se o arquétipo: Kore Persefone tanto como Hainuwele, revela-nos o mesmo patético mas fecundo destino da Jovem.

As Imagens constituem «aberturas» para um mundo trans-histórico. Mas não é esse o seu menor mérito: graças a elas, as diversas «histórias» podem comunicar. Falou-se muito da unificação da Europa medieval pelo cristianismo. Isto é sobretudo verdadeiro se se pensar na homologação das tradições religiosas populares. Foi através da hagiografia cristã que os cultos locais — desde a Trácia à Escandinávia e do Tejo ao Dnieper — foram reduzidos a um «denominador comum». Devido à sua cristianização, os deuses e os lugares de culto da Europa inteira receberam não só nomes comuns como encontraram de certo modo os seus próprios arquétipos e, por conseguinte, as suas valências universais: uma fonte da Gália, considerada como sagrada desde a pré-história, mas sagrada pela presença de uma figura divina local ou regional, tornava-se santa para toda a cristandade, após a sua consagração à Virgem Maria. Todos os exterminadores de dragões eram assimilados a S. Jorge ou a um outro herói cristão, todos os deuses da tempestade a S. Elias. De regional e provinciana, a mitologia popular torna-se ecuménica. É principalmente pela criação de uma nova linguagem mitológica comum às populações que permaneciam agarradas às terras, e por isso correndo maior risco de se isolarem nas suas próprias tradições ancestrais, que o papel civilizador do cristianismo é considerável; porque, cristianizando a antiga herança religiosa europeia, ele não só purificou, mas fez passar para nova etapa espiritual da humanidade tudo o que merecia ser «salvo» dentre as velhas práticas, crenças e esperanças do homem pré-cristão. Sobrevivem hoje no cristianismo popular, ritos e crenças do neolítico: as papas de sementes em honra ,dos mortos, por exemplo (a coliva da Europa Ocidentel e egeia). A cristianização das camadas populares da Europa fez-se

sobretudo graças às Imagens: encontravam-se por todo o lado; havia apenas que revalorizá-las, reintegrá-las e dar-lhes novos nomes.

Que não se espere para amanhã um fenómeno análogo, susceptível de repetir-se à escala do planeta. Pelo contrário, a entrada idos povos exóticos na história terá em toda a parte como consequência um aumento do prestígio das religiões autótones. Tal como dissemos, o Ocidente está atualmente perante um inevitável diálogo com as outras culturas «exóticas» e «primitivas». Seria lamentável que ele o iniciasse sem ter tirado alguma lição de todas as revelações fornecidas pelo estudo dos simbolismos.

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 167-170)