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Construção de um centro

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 51-56)

Vimos que não só se partia da ideia de os templos se encontrarem no Centro do Mundo mas que todo o lugar sagrado, todo o lugar que manifestasse uma inserção do sagrado no espaço profano, era também considerado como um «centro». Estes espaços sagrados também podiam ser construídos. Mas a sua construção era, de certo modo, uma cosmogonia, uma criação do mundo; absolutamente natural pois, como vimos, o mundo foi criado a partir de um embrião, de um «centro». Assim, por exemplo, a construção do altar védico do fogo reproduzia a criação do mundo e o altar era ele próprio um microcosmos, uma imago mundi. A água com que se amassa a argila, diz-nos Çatapatha Brâhmana, (I, 9, 2, 29; VI, 5, 1 sq., etc.), é a Água primordial; a argila que serve de base ao altar é a Terra; as paredes laterais representam a Atmosfera, etc. (Seria necessário talvez acrescentar que esta construção implica igualmente uma construção do Tempo cósmico, mas não temos ocasião de abordar este problema aqui; cf. Le Mythe de l'Éternel Retour, pp. 122 sq.).

É pois inútil insistir: a história das religiões conhece um número considerável de construções rituais de um «Centro». Notemos apenas uma coisa, importante a nosso ver: na medida em que os antigos lugares sagrados, templos ou altares perdem a sua eficácia religiosa, descobrem- se e aplicam-se outras fórmulas geomânticas, arquiteturais ou iconográficas que, ao fim e ao cabo, representam por vezes de maneira bastante estranha, o mesmo simbolismo do «Centro». Demos um único exemplo: a construção e a função do mandala18. Este termo quer dizer «círculo»; as traduções tibetanas dão-no-lo quer por «centro» quer por «o que envolve». De fato um mandala representa toda uma série de

18 Ver nosso livro Techniques du Yoga (Gallimard„ 1948), pp. 185 sq.; Giuseppe Tucci, Teoria e pratica del mandala (Roma, 1949); sobre o simbolismo •do mandala, ver C. G. Jung, Psychologie und Alchemie (Zürich, 1944), pp. 139 sq.;

círculos, concêntricos ou não, inscritos num quadrado; neste diagrama, desenhado na terra com fios de cores ou pó de arroz colorido, vêm ocupar o seu lugar as diferentes divindades do panteão tântrico. O mandala representa assim uma imago mundi e, ao mesmo tempo, um panteão simbólico. A iniciação consiste, entre outras coisas, para o neófito, em penetrar nas diferentes zonas e em chegar aos diferentes níveis do mandala. Este rito de penetração pode ser considerado como equivalente do rito bem conhecido da marcha em redor de um templo (pradakshina), ou da elevação progressiva, 'de terraço em terraço, até às «terras puras» do plano superior do templo. Por outro lado, a inserção do neófito num mandala pode ser homologada à iniciação por penetração num labirinto; certos mandalas têm, ide resto, um caráter nitidamente labiríntico. A função do mandala pode ser considerada como sendo, pelo menos, dupla, tal como a do labirinto. Por um lado a inserção num mandala desenhado no chão equivale a um ritual de iniciação; por outro lado, o mandala «defende» o neófito de todas as forças exteriores nocivas e ajuda-o ao mesmo tempo a concentrar-se, a encontrar o seu próprio «centro».

Mas qualquer templo indiano visto de cima ou em projecção sobre um plano é um mandala, simultaneamente microcosmo e panteão. Porquê construir então um mandala? Porquê a necessidade de um novo «Centro do Mundo»? Simplesmente porque para certos devotos, que sentiam necessidade de uma experiência religiosa mais autêntica, mais profunda, o ritual tradicional revelava-se fossilizado: a construção de um altar do fogo ou a ascensão dos terraços de um templo, não lhes permitia reencontrar o seu «Centro». Diferentemente do homem arcaico ou do homem védico, o homem tântrico tinha necessidade ide uma experiência pessoal para reanimar na sua consciência certos símbolos primordiais. Aliás é esta razão porque certas escolas tântricas renunciaram ao mandala exterior, recorrendo a mandalas interiorizados. Estes podem ser de dois tipos: 1º uma construção puramente mental, que desempenha o papel de «suporte» da meditação ou, 2º uma identificação do mandala no seu próprio corpo. No primeiro caso, o yogin introduz-se mentalmente no interior do mandala realizando assim um ato de concentração e ao

mesmo tempo de «defesa» contra as distracções e as tentações. O mandala «concentra»: preserva da distracção, da dispersão. A identificação ido mandala com o seu próprio corpo revela o desejo de identificar a sua fisiologia mística com um microcosmos. Um relato mais pormenorizado da penetração, por técnicas yogicas no interior do que poderia chamar-se o seu «corpo místico» levar-nos-ia longe de mais. Basta-nos dizer que a reanimação sucessiva dos cakras, (dessas «rodas» (círculos) que são consideradas como outros tantos pontos de intersecção da vida cósmica e da vida mental, a reanimação dos cakras é homologada com a penetração iniciática no interior de um mandala. O despertar da Kundalini equivale à ruptura de nível ontológico; isto é, à realização plena e consciente do simbolismo do «Centro».

Como se acaba de ver, o mandala pode ser ao mesmo tempo ou sucessivamente o suporte de um ritual concreto, ou de uma concentração espiritual, ou ainda de uma técnica de fisiologia mística. Esta multivalência, esta capacidade de se manifestar em planos múltiplos, se bem que homologáveis, é uma caraterística do simbolismo do «Centro» em geral. O que é fácil de entender: pois todo o ser humano tende, mesmo inconscientemente, para o Centro e para o seu próprio Centro, o que lhe confere a realidade integral, a «sacralidade». Este desejo profundamente enraizado no homem, de se encontrar no cerne mesmo do real, no Centro do Mundo, aí onde se faz a comunicação com -o Céu — explica a utilização imoderada dos «Centros do Mundo». Vimos mais acima que a habitação humana era assimilada ao Universo, o lar ou a abertura praticada para a saída de fumo correspondiam ao Centro do Mundo. De modo que todas as casas — bem como os templos, palácios, cidades — estão situados num só e mesmo ponto comum, o Centro do Universo.

Mas não haverá aqui uma certa contradição? Todo um conjunto de mitos, de símbolos e de rituais concorrem para sublinhar a dificuldade que existe em penetrar num centro; e por outro lado, convergentemente, uma série de mitos e de ritos estabelecem que este Centro é acessível. Por exemplo, a peregrinação aos lugares sagrados é difícil, mas toda a visita a

uma igreja é uma peregrinação. A Árvore Cósmica é, por um lado, inacessível mas por outro pode encontrar-se em cada yurta. O itinerário que conduz ao «Centro» está semeado de obstáculos e, todavia, cada cidade, cada templo, cada morada, se encontra no Centro do Universo. Os sofrimentos e as «provações» atravessados por Ulisses são fabulosos e, no entanto, todo o regresso ao lar «vale» o regresso de Ulisses a Ítaca.

Tudo isto parece provar que o homem não pode viver senão num espaço sagrado, no «Centro». Observa-se que um grupo de tradições atesta o desejo que o homem sente de se encontrar sem esforço no «Centro do Mundo», enquanto um outro grupo insiste na dificuldade e por consequência no mérito que há em poder lá penetrar. Não nos interessa aqui estabelecer a história de cada uma destas tradições. O fato de, a primeira dentre elas, — a que permite a construção do «Centro» na própria casa do homem, e da «facilidade» — se encontrar em quase toda a parte, convida-nos a considerá-la como a mais significativa. Ela põe em relevo uma certa situação humana a que poderíamos chamar nostalgia do paraíso. Por isto entendemos o desejo de se encontrar sempre e sem esforço, no Centro do Mundo, no seio da realidade e, em resumo, ide ultrapassar de maneira natural a condição humana e de recuperar a condição divina — um cristão diria: a condição anterior à queda19.

Não queríamos terminar esta exposição sem ter lembrado um mito europeu que, ainda que não se relacione senão de maneira indireta com o simbolismo e os ritos do Centro, concorre para os integrar num simbolismo ainda mais vasto. Trata-se de um pormenor da lenda de Parcifal e do Rei Pescador20. Recorda-se a misteriosa doença que

paralisava o velho Rei, detentor do segredo do Graal. Aliás não era ele apenas a sofrer; tudo em seu redor caía em ruínas, esboroava-se: palácios, torres, jardins; os animais deiXaram de se multiplicar, as árvores não davam fruto, as fontes secavam. Muitos médicos tinham tentado

19 Cf. Traité d'Histoire des Religions, pp. 326 sq.; Le Chamanisme, pp. 417, 428 sq. 20 Perceval, ed. Hucher, p. 466; Jessie L. Weston, From Ritual to Romance

(Cambridge, 1920), p. 12 sq. O mesmo motivo mítico se encontra no ciclo de Sir Gawain (Weston, ibid.)

curar o Rei Pescador sem o menor resultado. Dia e noite chegavam cavaleiros e todos começavam por perguntar novas sobre a saúde do Rei. Um único cavaleiro — pobre, desconhecido e até um pouco ridículo — permitiu-se ignorar o ritual da boa educação. O seu nome era Parcifal. Sem ligar ao cerimonial de cortesia, dirigiu-se diretamente ao Rei e, aproXimando-se dele sem preâmbulos perguntou-lhe: — «Onde está o Graal?» Nesse mesmo instante tudo se transforma: o Rei levanta-se do leito de dor, os rios e as fontes recomeçam a correr, a vegetação renasce, o castelo é miraculosamente restaurado. As poucas palavras de Parcifal bastaram para regenerar a Natureza inteira. Mas essas poucas palavras constituiam a questão central, o único problema que podia interessar não apenas ao Rei Pescador, mas ao Cosmos inteiro: onde se encontrava o real por excelência, o sagrado, o Centro da vida e a fonte da imortalidade? Onde se encontrava o Santo Graal? Ninguém, antes de Parcifal, tinha pensado em levantar esta questão central — e o mundo morria por causa dessa indiferença metafísica e religiosa, por causa dessa falta de imaginação e de ausência do desejo do real.

Este pequeno pormenor de um grandioso mito europeu revela-nos, pelo menos, um aspeto desconhecido do simbolismo do Centro: não só existe uma solidariedade íntima entre a vida universal e a salvação — mas basta pôr-se o problema da salvação, basta pôr o problema central, ou seja o problema — para que a vida cósmica se regenere perpetuamente. Pois muitas vezes a morte — como parece mostrá-lo este fragmento mítico não é mais do que o resultado da nossa indiferença perante a imortalidade.

II - Simbolismos indianos do tempo e da

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 51-56)