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Considerações sobre o método

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 170-173)

Após o que acabamos ide dizer, vê-se em que sentido foi ultrapassada a posição «confusionista» de um Tylor ou de um Frazer, que, nas suas investigações antropológicas e etnográficas, acumulavam exemplos desprovidos de qualquer continuidade geográfica ou histórica, citando um mito australiano ao lado de um mito siberiano, africano 934'

norte-americano, persuadidos que se tratava sempre e em todo o lado da mesma «reacção uniforme do espírito humano perante os fenómenos da Natureza». Em relação a esta posição tão semelhante à de um naturalista da época darwiniana, a escola histórico-cultural de Graebner-Schmidt e as outras escolas historicistas registaram um incontestável progresso. Importava, porém, não se deixar imobilizar na perspetiva histórico-ultural e perguntar-se se, além da sua própria história, um símbolo, um mito, um ritual, podem revelar-nos a condição humana na qualidade de modo de existência própria no Universo. Foi o que tentámos fazer aqui e em diversas publicações nossas recentes12.

12 Este problema será amplamente discutido no segundo tomo do nosso Traité

Como bons positivistas, Tylor ou Frazer consideravam a vida mágico- religiosa da humanidade arcaica como um amontoado de «superstições pueris: fruto dos medos ancestrais ou da estupidez «primitiva». Mas este julgamento de valor contradiz os fatos. O comportamento mágico- religioso da humanidade arcaica revela uma tomada de consciência existencial do homem em relação ao Cosmos e a si próprio. Onde um Frazer não via senão uma «superstição», estava já implícita uma metafísica, mesmo que ela se exprimisse através de símbolos em vez de ser através da confusão de conceitos: uma metafísica, quer dizer, uma concepção global e coerente da Realidade — e não uma série de gestos instintivos regidos pela mesma e fundamental «reacção do animal humano perante a Natureza»: Assim, quando, abstraindo da «história» que os separa, comparamos um símbolo oceaniano com um símbolo da Asia setentrional, achamos ter fundamento para o fazer, não porque tanto um como outro possam ser produtos de uma «mentalidade infantil» mas porque o símbolo em si próprio exprime a tomada de conhecimento de uma situação-limite.

Tentou-se explicar a «origem» dos símbolos pela impressão sensível, exercida diretamente sobre o córtex cerebral, pelos grandes ritmos cósmicos (o curso do sol, por exemplo). Não nos cabe discutir esta hipótese. Mas o problema da «origem» em si parece-nos ser um problema mal posto (ver mais acima, p. 157). O símbolo não pode ser o reflexo dos ritmos cósmicos na qualidade de fenómenos naturais, porque um símbolo revela sempre qualquer coisa mais do que o aspeto da vida cósmica que se supõe representar. Os simbolismos e os mitos solares, por exemplo, revelam-nos também um lado «noturno», «mau» e «funerário» do Sol que não é evidente à primeira vista no fenómeno solar em si. Este aspeto de certo modo negativo, despercebido no Sol enquanto fenómeno cósmico, é constitutivo, do simbolismo solar; o que prova que, desde o início, o símbolo aparece como uma criação da psiqué. Isto torna-se ainda mais evidente quando se recorda que a função de um símbolo é justamente a de revelar uma realidade total, inacessível aos outros meios de conhecimento: a coincidência dos opostos, por exemplo, tão

abundantemente e tão simplesmente expressa pelos símbolos, não é dada em parte alguma do Cosmos, e não é acessível à experiência imediata do homem nem ao pensamento discursivo.

Abstenhamo-nos no entanto de crer que o simbolismo se refere unicamente às realidades «espirituais». Para o pensamento arcaico tal separação entre o «espiritual» e o «material» não tem sentido: os dois planos são complementares. Pelo fato de se supor que está colocada no «Centro do Mundo» uma casa nem por isso deixa de ser um instrumento que responde a necessidades concretas e que é condicionado pelo clima, pela estrutura económica da sociedade e pela tradição arquitetónica. Recentemente ainda, a velha querela entre «simbolistas» e «realistas» estourou de novo a propósito da arquitetura religiosa do antigo Egipto. As duas posições só aparentemente são irreconciliáveis: no horizonte da mentalidade arcaica, levar em conta as «realidades imediatas» não significa de modo algum que se ignore ou despreze as suas implicações simbólicas, e vice-versa. Não se deve acreditar que a implicação simbólica anula o valor concreto e específico ide um objeto ou de uma operação: quando a enxada é denominada falo (como acontece em certas línguas austro-asiáticas) e a sementeira é assimilada ao ato sexual (como se fez em quase todo o mundo), não se segue que o agricultor «primitivo» ignore a função específica do seu trabalho e o valor concreto, imediato, do instrumento. O simbolismo acrescenta um novo valor a um objeto ou a uma acção, sem portanto danificar os seus valores próprios e imediatos. Aplicando-se a um objeto ou a uma acção, o simbolismo torna-os «abertos». O pensamento simbólico faz «explodir» a realidade imediata, mas sem a diminuir nem a desvalorizar; na sua perspetiva o Universo não é fechado, nenhum objeto é isolado na sua própria existencialidade: tudo se mantém coeso, por um sistema cerrado de correspondências o da assimilações13. O homem das sociedades arcaicas tomou consciência de si próprio num «mundo aberto» e rico de significa resta saber se estas

13 Para bem compreender a transformação do mundo pelo símbolo basta recordar a dialética da hierofania: um objeto torna-se sagrado e continua a ser ele próprio (ver mais atrás, p. 110).

«aberturas» são outros tantos meios de evasão, ou se, pelo contrário, constituem a única possibilidade de acesso à verdadeira realidade do mundo.

No documento Mircea Eliade Imagens e Simbolos (páginas 170-173)