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A flor da Manufatora

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 90-96)

Luzimar ainda é pequeno, está na idade em que os meninos jogam bola. Hélia, a mais velha dos dois, ganha o pão na fábrica de tecelagem. Filha de Marlindo e Zulmira, a moça atrativa não vislumbra possibilidades de sucesso em Cataguases. Três instâncias narrativas transformarão a sua vida em vox populi: o narrador, o tom de sua voz e o de seu pensamento. Operário, operária, o gênero não faz diferença para Luiz Ruffato: se trabalha, cedo ou tarde sofrerá o impacto de algum tipo de alienação. O professor José de Souza Martins -que, por décadas, tem estudado as ligações entre a história circunstancial e a história de processos sociais mais amplos- considera que “muitas vezes a fala de camponeses simples ou de operários pobres já é diretamente uma fala explicativa. Ao sociólogo cabe apenas desvendar a circunstância historicamente precisa de falas e atos, para captar-lhes o verdadeiro sentido”346. No território ficcional, o trabalho do escritor consistirá em recriar estas falas e

atos, ultrapassando (por vezes ignorando) as próprias intenções e expectativas.

O universo fabril protagonizado por Hélia apresenta oito fragmentos separados por divisórias em branco. Considerando o desenvolvimento da indústria têxtil no estado de Minas Gerais (implantada na segunda metade do século XIX), não é de se estranhar o ofício nem o lugar da rotina347. A moça trabalha em uma seção específica da Manufatora. No começo, espera impaciente por Júlia. O pensamento é apresentado em itálico. Isolar e reunir todas as frases inclinadas da página 63 -a primeira do relato- traz como resultado a seguinte confluência:

“e a Júlia que não chega! que ódio! que ódio!” - “onde foi parar aquela vaca? vaca! piranha! ai vou acabar perdendo o ônibus!” - “desgraçada! Ah lá vem ela cara lambida como se o mundo fosse dela!” - “porcaria! vou acabar constipando de novo” - “droga!” - “manteiga-derretida” - “ah! o clube do remo deve de estar lotado ai meu deus quem me dera! mas quem sou eu? bem que podia me aparecer um moço louro bem forte olhos azuis montado numa vespa prateada ‘Oi, meu anjo, pra onde você está indo?, Ah, é meu caminho, Sobe aí, eu te levo, Segura bem para não cair, heim’ que besteira! vou ter é que gastar a sola do tamanco novinho nesse paralelepípedo pegando fogo ai meu deus como estou cheia disso tudo! como estou cheia!”348.

345 Corresponde à história “A solução”. 346 Cf. José de Souza Martins. Op. Cit., p. 155.

347 Cf. Fernando da Matta Machado, A companhia de Santa Bárbara. Um caso da indústria têxtil em Minas Gerais. 348 Ruffato. Op. Cit., p. 63-64. A maior parte das frases está na página 63. A reorganização da citação é nossa.

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Mais na frente se descobrirá qual parte deste discurso reproduz a crítica feita a Hélia. O pano de fundo, por enquanto, são os teares, o bafo quente e o barulho das máquinas em apogeu. O lenço na cabeça, o avental de pano cru e o cartão-de-ponto349 que

todas batem ao chegar. As blusas impregnadas com fibras de algodão350, o cata-níquel351

que as recolhe (ou as deixa) e a incessante vontade de chorar. Comentários sobre o clima ajudam a caracterizar Hélia: a cabeleira “noturna” à luz do dia revelam-na “ao sol das dez e vinte”352. Sobressai da citação em itálico o louro de olhos azuis no “corcel” folhado. Como

descrito pelo pai na história prévia (“O barco”), o devaneio é paragem recorrente da filha.

Cada trecho se dedica a uma situação concreta. No beco de Zé Pinto, três amigas se ajudam no cuidado das unhas. O laço entre Toninha, Márcia e Hélia vem da adolescência, mas só as últimas são companheiras na fábrica. O espaço, inicialmente confundido com um salão, é um quarto do beco. Em princípio banal, o diálogo ilumina os valores de cada uma. Toninha encarna a manicura, Hélia a cliente e Márcia a companhia conversadora. O embelezamento é guarnecido com detalhes à primeira vista triviais: a “baciinha verde” para as mãos, a banqueta, a espátula, o esmalte cor de beterraba e o pau-de-laranjeira. O tema amoroso rapidamente domina no cômodo: “E o Maripá, Hélia?, perguntou a Márcia”353.

Reforçado por passados com função declarativa, o narrador apelará ao discurso direto. Além de ser uma localidade mineira, Maripá é o apelido de Plínio, pretendente de Hélia. As inexistentes posses do candidato desestimulam a musa. “É, mas é gente-boa, disse a Márcia. Um tipão!, completou a Toninha. Além do quê, ele parece estar gamado por você, emendou”354

. Entre risos reconhecem em Plínio um bom partido, mas a filha de Marlindo e Zulmira quer mais do que um namorado que fale “jinela” por “janela”, “tribuzana” por “trovoadas” e “tuburço” por “conga”.

Faz parte da paisagem sonora a conversa de Zazá355 com Hilda356, a bilosca dos

meninos, a queimada das meninas e os chamados de Bibica (“Marquinho! Ô Marquinho!

349 O “cartão de ponto” é um registro escrito que atesta a quantidade de horas trabalhadas e os horários de

entrada e saída de cada operário. A marcação pode ser manual, mecânica ou eletrônica. Implementava-se antigamente em estabelecimentos que comportavam mais de dez trabalhadores.

350 A menção do tecido ajuda a pensar na importância do rubro no estado. Cf. as palavras do economista

Fernando da Matta Machado a respeito do tema: em “Na primeira metade da década de 1880, o algodão bruto existia em excessiva quantidade no norte e nordeste de Minas Gerais”, Op. Cit., p. 29. Apesar da referência, vale advertir que Matta Machado e Ruffato discutem o tema da indústria têxtil de pontos de vista praticamente opostos: o primeiro desde a instalação do capital, o segundo desde os efeitos da fábrica nos trabalhadores.

351De acordo com a utilização que faz o autor, “cata-níquel” tem devido ser o apelido de certo tipo de

transporte coletivo na Cataguases da época. O termo, porém, não está registrado na versão eletrônica do Dicionário Houaiss.

352 Ruffato. Op. Cit., p. 63. 353 Op. Cit., p. 64.

354 Idem ibidem.

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Ah, se eu pego esse safado”), moça que aparece no primeiro volume como amiga de Dusanjos357 e cujo filho é amigo de infância de Gilmar. Dona Olga, apenas mencionada em Mamma, son tanto felice358, reaparece tangencialmente. A música provém de sua casa. No

quarto prossegue a conversa sobre Plínio: “No fundo eu tenho pena dele. (...) Ele não tem um ofício... Sabe fazer nada... Os bicos que arruma, torra comprando roupa... perfume... dando presente pros outros... Ele é um bobo... um bobo alegre”359. No sonho, um

cavalheiro endinheirado far-lhe-á a graça de levá-la embora daquele buraco. As réplicas das interlocutoras são notáveis: “Ah, isso eu também quero, disse a Márcia. Quem não quer?, disse a Toninha, concluindo, O difícil é conseguir”360. Contundente e cansada da realidade

doméstica e profissional, a operária procura honrar seu sonho.

Uma noite de flashback, Hélia sai com Maripá. Ela tem quinze, ele vinte. A diferença de idade é o pretexto feminino para encerrar o namoro. Antes de explicitar a ruptura, o narrador reconstrói o que poderia ser o passeio de um par de pombinhos em Cataguases: “De mãos dadas, em silêncio, deram três voltas pela Praça Rui Barbosa, pararam para ver os cartazes dos filmes no Cine Edgard, compraram pipoca, sentaram-se num banco, de frente para o Bar Elite”361. Nesta altura, as referências são bem conhecidas. Plínio está

consciente do que se avizinha e intui que o desencanto dela tenha a ver com a falta de recursos dele: “Tem problema não. Não tem mesmo! Eu sinto é por você. Tenho pena. Só vou te falar uma coisa, Hélia: quem muito lambisca, acaba não comendo. Você pensa que é mais do que é. Mas não é não, Hélia. (...) Cuidado pra vida não te decepcionar, cuidado!”362

. Circulando pelas redondezas, as amigas observam e se solidarizam. Toninha, porém, respalda a opinião de Plínio: “Isso é verdade (...). Uai, esse negócio... todo mundo acha você metida (...). Ué, todo mundo. Lá no beco”363

.

Dias depois, sozinha, a jovem sente pena do ex: pensa que é um homem de bons sentimentos, um trabalhador que valoriza a completa dimensão dos “sogros” e aprecia a realidade da moça. Um conjunto de impossíveis toma forma no pensamento: “ah, se pudesse enterrar o passado! ‘Não, minha mãe morreu no parto, coitada, e meu pai quando eu tinha uns seis anos... Fui criada por uma parente distante muito rica”364. Fará o que for preciso para manter os posterior (“A decisão”) de O mundo inimigo.

356 Vizinha do beco, Hilda é a amiga que acompanha Dusanjos à casa de seu Antero.

357 Dusanjos e Donato são os protagonistas de “O alemão e a puria”, história de Mamma, son tanto felice. 358 É dona Olga quem avisa a Dusanjos, no final da história, que Donato ainda é vivo.

359 Ruffato. Op. Cit., p. 65. 360 Idem ibidem.

361 Idem ibidem. 362 Op. Cit., p. 66. 363 Idem ibidem. 364 Op. Cit., p. 67.

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admiradores pós-Maripá afastados do beco; inclusive encarnar uma severidade que nem o pai possui. Hélia mantém o “teatro” evitando falar do ofício dos pais e empregando subterfúgios diante dos pretendentes. A frustração subjaz às invencionices.

Zulmira descobre que o namoro de dois meses chega ao fim. De mãos do narrador, o nome de Plínio surge na conversa entre mãe e filha tal como descrito na praça: “Virou as costas, jogou a bolinha de papel na rua, com raiva, sumiu na multidão”365. A construção

textual, que deixa o nome fora, dá ao leitor a pista da personagem. De ter continuado com Maripá a Manufatora seria seu destino ineludível. O filósofo e jornalista austríaco André Gorz explica o sem-sentido das tarefas assalariadas associadas por Hélia, a personagem, à pobreza de seu contexto: “Tem-se’ um bom ou um mau trabalho antes de mais nada conforme o que se ganhe; só depois é que se pensa na natureza das tarefas e nas condições de sua realização”366. Na fábrica, o contramestre tem fortes altercados com a empregada.

Mas a briga é uma preferência encoberta: “Ele é casado, que resolvesse o problema em casa, ora! Mas não: olho-vivo nos teares, cuidado com a lançadeira, cuidado com a espula, cuidado para não arrebentar a auréola, cuidado, cuidado, cuidado”367

. O figurino de minissaia -comentado por Miriam, colega de seção- ressalta a vaidade da moça.

Duas camas de solteiro, coladas e enfeitadas por um manto de chenile rosa, são o cenário do encontro dominical das três amigas. O tema do namoro volta (é um assunto inspirador), mas o foco agora está em Márcia e Lalado, que terminaram o namoro. Curiosa pela razão da separação, Hélia obtém os detalhes:

Imagine que terça-feira o burrão foi me pegar depois do serão na porta da fábrica, vim na garupeira, pegada nas costas dele, aí, quando chegamos, parede da garagem do seu Zé Pinto, tentando me beijar na boca, à força, e eu deixando, aí ele pôs a mão no meu peito, eu falei, Tira a mão daí, ô Lalado, está pensando que sou dessas, é? E sabe o que o bestalhão fez? Pediu desculpa... foi embora!368

Para encobrir o cheiro do cigarro, Márcia borrifa Van Ess pelo quarto. Referências como esta emergem para ser presquisadas; é uma forma de datar os textos. O desodorante em aerossol (cujo slogan brasileiro foi “você pode tomar banho de hora em hora ...ou simplesmente pode usar Van Ess uma vez por dia”) é uma referência à década de 1960. Do mesmo produto e época, o fabordão argentino leva ao riso: “Dos de estos tres usan Van Ess, desodorante y antisudoral a la vez”. Estranho a olhos estrangeiros, outro objeto induz à datação dos acontecimentos. Toninha abre uma Grande Hotel, trata-se de uma fotonovela.

365 Idem ibidem.

366 André Gorz, Adeus ao proletariado. Para além do socialismo, p. 10. 367 Ruffato. Op. Cit., p. 68.

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Apesar de terem sido publicadas desde 1950 com o subtítulo “A mágica revista do amor”, dois exemplares da década de 1960 fazem pensar em Hélia. Antes de chegar a essa conclusão, sítios online de venda de antigüidades oferecem um sem-fim de relíquias com características precisas. Antes do número 1.000 predomina na Grande Hotel o gênero da fotonovela. Dali em diante, o formato de almanaque mundial dá nova consistência à publicação. Impressos pela Editora Vecchi, do Rio de Janeiro, os pequenos cadernos recebem títulos hoje graciosos: “Ricos somente de amor”, “Prisioneiros de uma lembrança”, “As suas lágrimas e os meus beijos”, “Amei uma faceira”, “Imprevista revelação”, “Trágico equívoco”, “A calúnia nos separou”, “Ele se acusou por mim”, “Alguém não nos quer felizes”, “Amar com falso nome”, “Esposa na aparência” e “Sublime renúncia”.

“Meu sonho é ser princesa” e “Flor oculta” figuram a imagem de Hélia. A primeira por razões já comentadas e a segunda pela fisionomia da protagonista (cabelo curto, “noturno”, o sorriso, o viço) e a “erosão” que a personagem manifesta na intempérie final da história. No segmento de Márcia e Lalado, a filha de Marlindo internaliza a desesperança. O ansiado futuro fora do beco está cada vez mais longe e o desânimo toma conta: “Toninha, você... você não pensa em um dia sair desse... buraco não? Toninha jogou a revista no chão, com violência, Merda, você gosta de ser chata, heim!”369

.

De volta ao início, o texto retorna a Hélia na parada de ônibus. A filha de Marlindo perde a carona por causa de Júlia. A consciência da pobreza faz estragos na trabalhadora. O suor das 11h, as vestes grudadas no corpo e a modorra projetada na paisagem aumentam o desespero: “E veio de novo aquele ameaço de choro, apertou o passo, queria chegar logo, mas... aonde?”370

. No caminho diário até o beco Hélia trilha tudo o que abomina. É o momento perfeito para que o narrador pormenorize o diário retorno à casa: almoço no prato esmaltado, mesa de compensado coberta por uma toalha de plástico, insetos que atrapalham o momento da comida, Zulmira na lavagem, rádio ligado, café requentado, fazer tempo na cama, voltar à Manufatora, o ônibus, o apito, “todos os dias, todos os meses, todos os anos, até o fim dos tempos... Não, não queria voltar para casa”371

. Fazendo uma clara distinção entre a camada de trabalhadores profissionais “orgulhosos de seu ofício” e a dos trabalhadores assalariados (para os que o ganha-pão jamais será fonte de realização pessoal), Gorz explica que a automatização é introjetada quase como um ataque.

369 Op. Cit., p. 69.

370 Idem ibidem. 371 Op. Cit., p. 70.

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Na solidão, depois de recusar um convite de Márcia, Hélia se enfeita para uma festa de quinze anos. O sonho é a sua melhor defesa. Imagina a celebração/libertação a partir do próprio quarto. O vestido que costurou nas aulas com dona Marta372, indecente de acordo

com os pais, passa no exame da revisão do armário: um “tubinho vermelho de popelina, laço na frente, quase um palmo acima do joelho”373. O preto da sandália e um “brinco-de-

pressão de florzinhas vermelhas”374 acompanham a obra. O anel da pérola foi presente de

um namorado e o crucifixo no cordão, um achado de Marlindo na rua. Pensar no Clube Social desperta nela uma auto-imagem de confiança: “Caminha devagar polinizando as mesas com sua graça e simpatia (...). Quem é essa moça? (...) Um rapaz alto, louro, olhos azuis levanta-se, puxa uma cadeira, convida-a para sentar-se (...). Meu deus, (...) de que reino você fugiu? Enlevada, ouve um berro”375. Em uma hospedagem vizinha, um casal

interrompe a evocação com uma intensa briga. São Zé Bundinha e Fátima, ele ameaçando-a de morte. No escândalo há gritos, quebra de vasilhas, crianças chorando e uma filha que intercede. O gesto ameaçador de Zé Pinto com o revolver acaba com a confusão. A contundência da realidade enfurece Hélia, e o narrador -que com tanto vagar descreveu a vestimenta- utiliza o zoom em retrocesso para despir o episódio de fantasia. Deitada, “um tremor abala seu peito, uma enchente, há muito contida, espalha-se selvagem, explodindo em uma convulsão em seu corpo macerado”376. Não será a primeira nem a ultima personagem do “Inferno” cujo pranto desaguará em uma afluência desproporcionada.

O último segmento apresenta Hélia na Ponte Nova. Dali observa o rio, a inscrição CASAS PERNAMBUCANAS ao fundo -em outro tipo de letra- e a Casa de Saúde na margem direita. Apesar de ter sido fundada na primeira década do século XX pelo comerciante sueco Herman Theodor Ludgren (que adquire em Pernambuco a Companhia de Tecidos Paulista), a rede só se consolida na década de 1960. Um vídeo disponível no YouTube recupera um comercial de tevê popular no Brasil: “Quem bate? É o frio... Não adianta bater, eu não deixo você entrar. As Casas Pernambucanas é que vão aquecer o meu lar. Vou comprar flanelas, lãs e cobertores eu vou comprar. Nas Casas Pernambucanas e nem vou sentir o inverno passar”377

. A ênfase histórica afasta as dúvidas sobre a datação. O ardil utilizado por Ruffato para falar de Plínio sem nomeá-lo é novamente empregado, agora para traçar uma linha entre histórias diferentes do mesmo livro. O fundo

372 Costureira, mãe de Gildo e Gilmar. 373 Idem ibidem.

374 Idem ibidem. 375 Op. Cit., p. 71. 376 Op. Cit., p. 72.

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de quintal da casa de Romualdo e Geralda (“imundo de pé-de-galinha, marmelada-de- cachorro, capim-gordura, assa-peixe, vassoura, capim-angola, que rastejam por entre mangueiras, abacateiros, abieiros, ingazeiros, goiabeiras, amoreiras e pés-de-carambola”378)

é reconhecido pelo leitor na hora em que Hélia observa os pátios da margem esquerda. A consciência da impossibilidade evita que olhe para trás, onde moças e rapazes curtem o sol no Clube do Remo. Na reflexão, a personagem separa aqueles que desfrutam da vida (de um lado da ponte) daqueles que não (do outro). Reorganizados para fins explicativos, nota- se na citação a seguir a iluminação natural que antecede os pensamentos:

“O sol quente torrando sua cabeça, não nunca vai aparecer um príncipe encantado,” - “O sol na cabeça, não nunca vou conseguir sair desse inferno,” - “O sol, melhor melhor tal vez quem sabe morrer acaba tudo acaba Vem, Hélia, vem... descansar o fim Vem, Hélia... Vem comigo... Vem... E ela então sentiu-se zonza, zonza, e uma mão grande e calejada pousou em seu ombro,”379

Os raios de luz banham a cabeça de Hélia, que não recebe nem a água nem a iluminação apropriadas para sobreviver. É uma donzela na flor da idade, mas em condições inadequadas para a sua expansão. A atmosfera imutável atrapalha qualquer chance de fotossíntese. A ilusão que lhe serve de alimento choca-se com a mureta da praticidade e no dia da Ponte Nova se vê impelida a escolher. Na ciência dos números, uma “solução” é o conjunto de operações possíveis que se executa para atingir a resposta de um problema. Embora longe da matemática (não assim do processo), é o que acontece com Hélia. O ex- namorado a resguarda e ela (a contrapelo do próprio desejo) se deixa resgatar. Não será a primeira nem a última vez que a parte mais fina, a flor do sonho, se desmanche no Pomba.

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 90-96)