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A natureza de Cidinha

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 115-118)

Um ar aprazível dá início à oitava história. Além do início delicado, duas visões chamam a atenção. Por um lado, a de elementos que indicam resistência mínima: um vento morno, o final de uma tarde, “a solidão de uma frágil teia”470

de aranha. Por outro, a aproximação a estes elementos, muito similar à das lentes macros471 ao revelar os mistérios

da natureza. A observação não recai apenas sobre um quarto, mas sobre o espaço que alguém precariamente chama de “seu”. O narrador transita no texto da “Paisagem sem história” da perspectiva de Cidinha. No começo parece um olhar externo. Aos poucos se observa como a visão projeta o olhar da própria moça. Indícios da habitante são mostrados aos poucos. O cômodo está “escancarado”472

, as portas do guarda-roupa abertas de par em par e detalhes inusitados encontram-se a descoberto. Em “Paisagem sem história” o leitor tem entrada franca ao espaço íntimo de Cidinha: é o quarto de uma mulher-dama da Ilha. Familiar porque foi apresentada na história imediatamente anterior.

Nas portas do armário veem-se retratos de atores de cinema e cantores, extraídos de publicações brasileiras de final da década de 1960, começo de 1970. Como lembrança da última passagem do “furacão Zunga” pelo bordel -aliás, pelo quarto- as imagens estão rasgadas. A referência ao Gordini vermelho (veículo da Renault) sobre o qual aparece a modelo de uma das fotografias, sublinha a datação anunciada pelas revistas Amiga, Grande Hotel e Contigo! No ataque perpetrado por Zunga473, na confusão de roupas e na referência a

“vestidos ornamentais, encarcerados no silêncio”474

, há traços de agressão e de aprisionamento.

Uma caixa de papelão entesoura a certidão de nascimento, cosméticos, remédios, “espelho-de-mão com escudo do Flamengo”475

e quatro retratos que contextualizam a vida descrita, de forma significativa. São os objetos de valia da personagem. Na primeira foto: cinco crianças de roupas miseráveis sob uma árvore frondosa. Na segunda: uma menina

469 Corresponde à história “Paisagem sem história”. 470 Ruffato. Op. Cit., p. 127.

471 Em fotografia, a lente macro permite aproximações extraordinárias. É muito utilizada

em projetos científicos porque permite capturar detalhes invisíveis ao olho humano.

472 Idem ibidem.

473 O leitor termina de entender o acontecido em “Ciranda”. 474 Idem ibidem.

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uniformizada. Na terceira: ela moça, um pouco mais velha (“algumas desilusões após”476)

frente a uma venda. Por último: duas mulheres em um botequim, brindando na frente do fotógrafo. Uma frase estabelece a cronologia que começa nos retratos e atinge o presente da narrativa: “A menina depois moça agora jovem mulher tem os cabelos espichados a henê, esgar debochado de quem acostumou, lanterna na mão, a revolver, paciente, ruga por ruga, as horas intermináveis da Ilha”477.

A presença das imagens (e do que afetivamente representam para Cidinha) é marcante nesta história. Tanto as fotografias dos recortes como as pessoais (as que “narrativizam” as experiências da protagonista). Em um livro sobre o álbum familiar, o pesquisador colombiano Armando Silva Téllez explica que “não existe álbum sem família representada, sem foto revelada ou sem predisposição a algum tipo de arquivo; mas tampouco existiria sem contar ou pretender contar uma história”478. A citação é útil não

porque Cidinha guarde um álbum, senão porque as fotografias -enquanto objetos de valor zelosamente guardados- contam a sua própria história. Silva Téllez explica que a fotografia, per se, não é um acontecimento. Trata-se mais de uma construção que se “resignifica” com o tempo, com o olhar e com a lembrança. Relatar a foto -diz o pesquisador fundamentando a reflexão nas idéias de Roland Barthes- “é a maneira de atualizar o seu sentido”479.

“Deixando” que o narrador “relate” as fotos, Cidinha repassa e repensa (no curso do texto, com cada fato, recordação e gesto) o que é a sua vida.

O relato de como se inicia Luzimar nas lides do desejo pouco revela do menino; fala mais da moça e sublinha a consciência do que ela pode provocar. O filho de Marlindo ganha uns trocados limpando quartos na Ilha e veste “calça curta”480. Observando o filho

do pipoqueiro, a moça se pergunta: “com quantas punhetas não deve tê-la homenageado?”481. A pergunta é retórica pois aponta ao próprio poder de sedução. Repare-

se no “enquadre” do trecho a seguir:

(...) certa vez, de pena, a porta entreaberta, ouvia-o vizinho, ofegante, esfregando todo seriozinho o escovão, fingiu ressonar na manhã felina, até que, passando em frente, a mínima camisola semitransparente escoiceou o menino, a lata de cera Cristal quase escapuliu, vistainfiel, coração desesperado, um troço na boca-do-estômago, Viu?, na meia volta, sobrepasso, o rabo-de-olho buscou o oásis, pulmão oprimido, revirou-se, Viu?, e o carvão dos cabelos mais uma vez cresceu na

476 Ruffato. Op. Cit., p. 128.

477 Idem ibidem.

478 Armando Silva Téllez. Álbum de familia. La imagen de nosotros mismos. Bogotá:

Grupo Editorial Norma, 1998, pp. 19-20.

479 Idem ibidem, p. 27. 480 Ruffato. Op. Cit., p. 128. 481 Idem ibidem.

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miragem, cabeça baixa procurando uma perda no meio das pedras afloradas do terreiro, e ela, madalena, girou as pernas, Viu!, e, trêmulo, o menino prosseguiu, para o resto dos tempos inquieto482.

Quem conta? A experiência parece estar sendo narrada, mas o pensamento em itálico -que aparece em apenas três oportunidades: duas interrogações e uma exclamação (“Viu?”, “Viu?” e “Viu!”)- pertence a Cidinha. É ela (e não o narrador) quem tem interesse em saber, em constatar, que Luzimar “viu” e que -de agora em diante- ele saberá “algo” que o deixará intranqüilo.

Findo o episódio do menino, Cidinha se detém no teto. Passa tanto tempo atendendo clientes que conhece o telhado ao revés e ao direito. Falar dos homens e das múltiplas formas em que chegam ao lupanar é a maneira de introduzir (mais uma vez), de uma perspectiva diferente, o acesso de raiva que Zunga vive na Ilha. Se uma observação explica a presença da palavra “paisagem” no titulo desta história, talvez seja a descrição do interior da casa: cheia de sombras, luzes vermelhas obtidas de forma precária (com papel celofane), mesas de metal com toalhas plásticas desgastadas, uma vitrola velha ligada a toda hora, um segurança (o Murrudo, quase como elemento do quadro) com o pano no ombro e a imagem de uma santa (a que Zunga observa) em um nicho de luz azul (única iluminação diferente do “quadro”).

Um novo dado, entre aspas, complementa o quadro de Cidinha. Volta e meia, para escapar do calor que precede a chuva, ela se estende no chão, sob a cama. As palavras que resgatam o estranho hábito são de outra pessoa, presume-se que da mãe durante a infância mas nada é muito claro na memória da moça. No presente começa a pingar, chove dentro e fora. A goteira evidencia as condições em que vive Cidinha ao tempo que a transporta à época de menina. Nem na lembrança há tranqüilidade. A posição de seu corpo no instante em que lembra (acobertada, com os “braços enrodilhando as pernas fletidas”483), a leva ao

tempo do enterro da mãe. Novos elementos falam de seu ruinoso começo no mundo: o caixão da falecida doado pela prefeitura484, percevejos na cama, a moradia em um casebre

“cai-não-cai”485. Não lembra de seu próprio nome naquele tempo. A mesma goteira dentro

do quarto promove o retorno ao presente. As perguntas de ontem (de quando criança) se mantêm: “O que acontece quando a gente morre?, A gente vai para onde?, Nunca mais vou ver a minha mãe?, Nunca mais?”486. A “Paisagem sem história” chega ao fim com o

482 Op. Cit., pp. 128-129.

483 Op. Cit., p. 130.

484 Como o de Marquinho, filho de Bibica. 485 Idem ibidem.

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paradoxo da menina de outrora no corpo da mulher de hoje. Cem por cento perguntas, em ausência total de respostas, e segura apenas sob a chuva.

No início difícil de entender, o título encontra explicação nesse passado sem nome. De fato: o elemento que falta no texto (o nome) só pode ser associado ao componente que falta no título (a “história”). Veja-se como no começo as figuras são apresentadas de muito perto. Naturalmente associada à noção de panorama, paisagem e pormenor se chocam. O sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918), que desenvolve seu trabalho principalmente na segunda metade do século XIX, ressalta com uma bela metáfora o critério do que pode ser entendido como paisagem:

(…) o que porventura abrangemos com um olhar ou dentro do nosso horizonte momentâneo não é ainda a paisagem, mas, quando muito, o material para ela -tal como um montão de livros, postos uns ao lado dos outros, ainda não é uma “biblioteca” (…), eles só se tornam tal (…) quando um certo conceito unificador os abarca e lhes dá uma forma487.

Na história de Ruffato a idéia de paisagem é associada ao passado. E a associação, por sua vez, estendida ao projeto do romance (à criação de uma paisagem e à recriação de um passado). Contados pontualmente (só os tesouros, só os retratos ou só a briga com Zunga) os episódios são apenas livros dispersos. A visão do conjunto temporal (antes/agora) assemelha-se a uma biblioteca organizada, à extensão que se abrange no ato de olhar. Ao exprimir que o material da paisagem é mutável, Simmel se refere tanto ao recorte do observador como ao critério unificador dos volumes. Neste caso, o recorte equivale à escolha da personagem. Apesar da tragédia de deixar de lado o nome de batismo, a história de Cidinha não se resume à especificidade estanque de “um prado, (...) uma casa, (...), um riacho (ou) (...) um séquito de nuvens”488

. A sua vida, tal como contada, faz pensar em uma ampla cena que reata os fios importantes de um caos aparentemente irresgatável.

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 115-118)