Um ar aprazível dá início à oitava história. Além do início delicado, duas visões chamam a atenção. Por um lado, a de elementos que indicam resistência mínima: um vento morno, o final de uma tarde, “a solidão de uma frágil teia”470
de aranha. Por outro, a aproximação a estes elementos, muito similar à das lentes macros471 ao revelar os mistérios
da natureza. A observação não recai apenas sobre um quarto, mas sobre o espaço que alguém precariamente chama de “seu”. O narrador transita no texto da “Paisagem sem história” da perspectiva de Cidinha. No começo parece um olhar externo. Aos poucos se observa como a visão projeta o olhar da própria moça. Indícios da habitante são mostrados aos poucos. O cômodo está “escancarado”472
, as portas do guarda-roupa abertas de par em par e detalhes inusitados encontram-se a descoberto. Em “Paisagem sem história” o leitor tem entrada franca ao espaço íntimo de Cidinha: é o quarto de uma mulher-dama da Ilha. Familiar porque foi apresentada na história imediatamente anterior.
Nas portas do armário veem-se retratos de atores de cinema e cantores, extraídos de publicações brasileiras de final da década de 1960, começo de 1970. Como lembrança da última passagem do “furacão Zunga” pelo bordel -aliás, pelo quarto- as imagens estão rasgadas. A referência ao Gordini vermelho (veículo da Renault) sobre o qual aparece a modelo de uma das fotografias, sublinha a datação anunciada pelas revistas Amiga, Grande Hotel e Contigo! No ataque perpetrado por Zunga473, na confusão de roupas e na referência a
“vestidos ornamentais, encarcerados no silêncio”474
, há traços de agressão e de aprisionamento.
Uma caixa de papelão entesoura a certidão de nascimento, cosméticos, remédios, “espelho-de-mão com escudo do Flamengo”475
e quatro retratos que contextualizam a vida descrita, de forma significativa. São os objetos de valia da personagem. Na primeira foto: cinco crianças de roupas miseráveis sob uma árvore frondosa. Na segunda: uma menina
469 Corresponde à história “Paisagem sem história”. 470 Ruffato. Op. Cit., p. 127.
471 Em fotografia, a lente macro permite aproximações extraordinárias. É muito utilizada
em projetos científicos porque permite capturar detalhes invisíveis ao olho humano.
472 Idem ibidem.
473 O leitor termina de entender o acontecido em “Ciranda”. 474 Idem ibidem.
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uniformizada. Na terceira: ela moça, um pouco mais velha (“algumas desilusões após”476)
frente a uma venda. Por último: duas mulheres em um botequim, brindando na frente do fotógrafo. Uma frase estabelece a cronologia que começa nos retratos e atinge o presente da narrativa: “A menina depois moça agora jovem mulher tem os cabelos espichados a henê, esgar debochado de quem acostumou, lanterna na mão, a revolver, paciente, ruga por ruga, as horas intermináveis da Ilha”477.
A presença das imagens (e do que afetivamente representam para Cidinha) é marcante nesta história. Tanto as fotografias dos recortes como as pessoais (as que “narrativizam” as experiências da protagonista). Em um livro sobre o álbum familiar, o pesquisador colombiano Armando Silva Téllez explica que “não existe álbum sem família representada, sem foto revelada ou sem predisposição a algum tipo de arquivo; mas tampouco existiria sem contar ou pretender contar uma história”478. A citação é útil não
porque Cidinha guarde um álbum, senão porque as fotografias -enquanto objetos de valor zelosamente guardados- contam a sua própria história. Silva Téllez explica que a fotografia, per se, não é um acontecimento. Trata-se mais de uma construção que se “resignifica” com o tempo, com o olhar e com a lembrança. Relatar a foto -diz o pesquisador fundamentando a reflexão nas idéias de Roland Barthes- “é a maneira de atualizar o seu sentido”479.
“Deixando” que o narrador “relate” as fotos, Cidinha repassa e repensa (no curso do texto, com cada fato, recordação e gesto) o que é a sua vida.
O relato de como se inicia Luzimar nas lides do desejo pouco revela do menino; fala mais da moça e sublinha a consciência do que ela pode provocar. O filho de Marlindo ganha uns trocados limpando quartos na Ilha e veste “calça curta”480. Observando o filho
do pipoqueiro, a moça se pergunta: “com quantas punhetas não deve tê-la homenageado?”481. A pergunta é retórica pois aponta ao próprio poder de sedução. Repare-
se no “enquadre” do trecho a seguir:
(...) certa vez, de pena, a porta entreaberta, ouvia-o vizinho, ofegante, esfregando todo seriozinho o escovão, fingiu ressonar na manhã felina, até que, passando em frente, a mínima camisola semitransparente escoiceou o menino, a lata de cera Cristal quase escapuliu, vistainfiel, coração desesperado, um troço na boca-do-estômago, Viu?, na meia volta, sobrepasso, o rabo-de-olho buscou o oásis, pulmão oprimido, revirou-se, Viu?, e o carvão dos cabelos mais uma vez cresceu na
476 Ruffato. Op. Cit., p. 128.
477 Idem ibidem.
478 Armando Silva Téllez. Álbum de familia. La imagen de nosotros mismos. Bogotá:
Grupo Editorial Norma, 1998, pp. 19-20.
479 Idem ibidem, p. 27. 480 Ruffato. Op. Cit., p. 128. 481 Idem ibidem.
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miragem, cabeça baixa procurando uma perda no meio das pedras afloradas do terreiro, e ela, madalena, girou as pernas, Viu!, e, trêmulo, o menino prosseguiu, para o resto dos tempos inquieto482.
Quem conta? A experiência parece estar sendo narrada, mas o pensamento em itálico -que aparece em apenas três oportunidades: duas interrogações e uma exclamação (“Viu?”, “Viu?” e “Viu!”)- pertence a Cidinha. É ela (e não o narrador) quem tem interesse em saber, em constatar, que Luzimar “viu” e que -de agora em diante- ele saberá “algo” que o deixará intranqüilo.
Findo o episódio do menino, Cidinha se detém no teto. Passa tanto tempo atendendo clientes que conhece o telhado ao revés e ao direito. Falar dos homens e das múltiplas formas em que chegam ao lupanar é a maneira de introduzir (mais uma vez), de uma perspectiva diferente, o acesso de raiva que Zunga vive na Ilha. Se uma observação explica a presença da palavra “paisagem” no titulo desta história, talvez seja a descrição do interior da casa: cheia de sombras, luzes vermelhas obtidas de forma precária (com papel celofane), mesas de metal com toalhas plásticas desgastadas, uma vitrola velha ligada a toda hora, um segurança (o Murrudo, quase como elemento do quadro) com o pano no ombro e a imagem de uma santa (a que Zunga observa) em um nicho de luz azul (única iluminação diferente do “quadro”).
Um novo dado, entre aspas, complementa o quadro de Cidinha. Volta e meia, para escapar do calor que precede a chuva, ela se estende no chão, sob a cama. As palavras que resgatam o estranho hábito são de outra pessoa, presume-se que da mãe durante a infância mas nada é muito claro na memória da moça. No presente começa a pingar, chove dentro e fora. A goteira evidencia as condições em que vive Cidinha ao tempo que a transporta à época de menina. Nem na lembrança há tranqüilidade. A posição de seu corpo no instante em que lembra (acobertada, com os “braços enrodilhando as pernas fletidas”483), a leva ao
tempo do enterro da mãe. Novos elementos falam de seu ruinoso começo no mundo: o caixão da falecida doado pela prefeitura484, percevejos na cama, a moradia em um casebre
“cai-não-cai”485. Não lembra de seu próprio nome naquele tempo. A mesma goteira dentro
do quarto promove o retorno ao presente. As perguntas de ontem (de quando criança) se mantêm: “O que acontece quando a gente morre?, A gente vai para onde?, Nunca mais vou ver a minha mãe?, Nunca mais?”486. A “Paisagem sem história” chega ao fim com o
482 Op. Cit., pp. 128-129.
483 Op. Cit., p. 130.
484 Como o de Marquinho, filho de Bibica. 485 Idem ibidem.
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paradoxo da menina de outrora no corpo da mulher de hoje. Cem por cento perguntas, em ausência total de respostas, e segura apenas sob a chuva.
No início difícil de entender, o título encontra explicação nesse passado sem nome. De fato: o elemento que falta no texto (o nome) só pode ser associado ao componente que falta no título (a “história”). Veja-se como no começo as figuras são apresentadas de muito perto. Naturalmente associada à noção de panorama, paisagem e pormenor se chocam. O sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918), que desenvolve seu trabalho principalmente na segunda metade do século XIX, ressalta com uma bela metáfora o critério do que pode ser entendido como paisagem:
(…) o que porventura abrangemos com um olhar ou dentro do nosso horizonte momentâneo não é ainda a paisagem, mas, quando muito, o material para ela -tal como um montão de livros, postos uns ao lado dos outros, ainda não é uma “biblioteca” (…), eles só se tornam tal (…) quando um certo conceito unificador os abarca e lhes dá uma forma487.
Na história de Ruffato a idéia de paisagem é associada ao passado. E a associação, por sua vez, estendida ao projeto do romance (à criação de uma paisagem e à recriação de um passado). Contados pontualmente (só os tesouros, só os retratos ou só a briga com Zunga) os episódios são apenas livros dispersos. A visão do conjunto temporal (antes/agora) assemelha-se a uma biblioteca organizada, à extensão que se abrange no ato de olhar. Ao exprimir que o material da paisagem é mutável, Simmel se refere tanto ao recorte do observador como ao critério unificador dos volumes. Neste caso, o recorte equivale à escolha da personagem. Apesar da tragédia de deixar de lado o nome de batismo, a história de Cidinha não se resume à especificidade estanque de “um prado, (...) uma casa, (...), um riacho (ou) (...) um séquito de nuvens”488
. A sua vida, tal como contada, faz pensar em uma ampla cena que reata os fios importantes de um caos aparentemente irresgatável.