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ferrolhos no teto

VI. Fio sagrado

Por vezes, é estando fora de si que o ser experimenta consistências.

Gaston Bachelard Nesse ponto -exatamente na metade da Vista parcial da noite- o céu do Inferno provisório anuncia uma tempestade. A matéria textual se mostra escura, fechada. Se bem inegável que alguns trechos do romance transitem os efeitos do golpe de 1964 (as implicações da ruptura do jogo democrático no cotidiano das pessoas), não é o que acontece explicitamente com “O profundo silêncio das manhãs de domingo”. Do ponto de vista argumental, uma tragédia se configura no “tempo” dedicado ao faz-tudo Baiano e a seu único filho homem, Cláudio. Do ponto de vista formal, o recurso da “lista” é implementado com agudeza. Um incontestável clima de ruína se apresenta no primeiro parágrafo, materializado em pés escarafunchados e cabeça oca, estômago em fogo e pensamentos em cacos, chinelos estropiados e dedos caracachentos, nervos esfarrapados e faltas de sono grave781 cujo sentido só se tornará apreensível após quatorze páginas de leitura. O aparente marco temporal será um julho taciturno e de efeitos sombrios782.

Antes de entender o que acontece essa manhã, vale a pena retomar as descrições de Baiano que aparecem nos dois volumes iniciais do Inferno provisório. Primeiro em Mamma, son tanto felice, na tentativa de resgate de Donato (“O alemão e a púria”783) e depois em dois

momentos de O mundo inimigo. Uma vez em “A mancha”, para comentar que salvou

780 Corresponde a “O profundo silêncio das manhãs de domingo”. 781 Ruffato, Op. Cit., p. 79.

782 Idem ibidem. Uma metonímia belíssima ajuda a imaginar a situação: “Julho, tocaiado na escuridão, arrupiou

seu corpo”. Fala-se de “marco temporal aparente” porque o verdadeiro movimento do texto é, mais uma vez, o vaivém.

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Marquinho (filho de Bibica) das águas do Rio Pomba784. E novamente em “Vertigem”, na

conversação de Amaro com a esposa de Laércio (irmão de Baiano), no momento em que o protagonista dá com a casa de Margarida de Souza Zoccoli785 (ali a moça comenta, de

passagem, que o cunhado morreu786). Das menções prévias, o leitor conclui que o pai de

Cláudio é uma figura temerária, que inspira confiança (costuma ser chamado para socorrer os vizinhos) e que “deixou o mundo” antes do esperado. O episódio do resgate de Donato é importante, aliás, porque aparece quase com as mesmas palavras na sexta história de Vista parcial da noite.

No primeiro parágrafo do segmento dedicado a Baiano, uma paisagem íntima se distende pelo corpo e pela psique do protagonista, no exterior e no interior do próprio lar, no clima de fora e na aproximação solícita de um cachorro. Uma metonímia delineia o deslocamento do pai pela casa: “Tateando, seus olhos caminharam até a porta da cozinha, escancarando-a”787. As “costelas magras do Rex”788

, em movimento, serão o primeiro indício de luz no negrume da madrugada. Enquanto o cachorro refugia-se no terreiro, a memória do leitor retorna (histórias atrás) a mais uma cena em casa de dona Nica: “Mas, Carlinho, meu filho, quem... quem vai tomar conta do Rex (...)?”789. A pergunta é parte de

uma conversa que acontece em “Aquário” (Mamma, son tanto felice), antes de que mãe e filho partam para Guarapari. A ausência de Baiano e a nova moradia do cachorro corroboram duas suspeitas: 1) a família do “Aquário” é a família de Baiano e 2) sobre a ausência da personagem flutua um tabu. A dúvida intratextual (disseminada em quatro das histórias precedentes), esse material implícito que precisa ser atualizado pela contraparte790, é a força motora de “O profundo silêncio...”.

Além de convidado diligente, o leitor de Ruffato é praticamente o parceiro de uma sociedade onde o autor coloca o tema da discussão e o leitor, os “movimentos cooperativos, conscientes e ativos”791, como aponta Umberto Eco em Lector in fabula. Sem a

menor noção do motivo do título quando tudo começa (e para aqueles que demoram a reparar na temporalidade que a frase já traz), a menção ao programa que Baiano escuta enquanto amanhece é uma pista clara: “Enxugou as mãos nas pernas-da-calça, ligou o radinho-de-pilha, o compadre Edegar, ico e Zeca cantando “Saudades da minha terra”, de Goiá e

784 Ruffato. Vol. 2 de Inferno provisório, p. 83. 785 Ruffato, Op. Cit., p. 200.

786 Idem ibidem. “Já o Baiano... que Deus o tenha... esse...”, diz a

moça. Baiano é o cunhado da moça-falante, cujo nome não é colocado.

787 Ruffato. Vol. 3 de Inferno provisório, p. 79. 788 Idem ibidem.

789 Ruffato. Vol. 1 de Inferno provisório, p. 47.

790 Umberto Eco, Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 36. 791 Eco, Op. Cit., p. 36.

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Belmon, a música chiou esticada no primeiro degrau da escada esculpida no barranco que subia para a rua”792

. Se a opção de leitura for o exame linear do romance, quem chegou à história do Baiano já passou pela de Vanim793, cuja vida se desenvolve em torno de “Meu

coração sertanejo”, espaço que a Rádio Cataguases transmite semanalmente aos domingos de manhã. Apesar de terem agora uma função referencial, nem Edegar de Souza (compadre de Baiano) nem a dupla sertaneja (Zico e Zeca) são estranhos.

Na escuridão do amanhecer o pai destemido acorda o filho. Paradoxalmente, o rigor da descrição encontra no leitor uma réplica de grande afetividade:

Tateando, seus olhos conduziram-no ao cômodo onde, embolados, ninho de colchões e cobertas espalhados pelo chão de cimento-grosso, ressonavam os quatro filhos e dois gatos enxeridos enrolados no quentume. “Cláudio!”, sussurrou, “Cláudio!” Um montinho se mexeu, apalpou o que imaginou tratar-se de uma perna, “Cláudio!, acorda! “Ahm?” “Acorda, Cláudio!” O menino livrou-se dos panos e zumbizou, esfregando o rosto, até o quintal. Abobado, acocorou-se junto à cisterna, as pálpebras enchumbadas, parecia ouvir alguém cantando... longe... longe”794.

O pai acorda disposto a levar adiante um plano. Guiado por essa espécie de premeditação, prepara a bicicleta enquanto o menino se ajeita. Com oito anos recém- cumpridos, o segundo de quatro filhos (meninas as restantes) é o orgulho do pai. Uma frase entre obscura e altiva explica o momento que vive Cláudio: “Dava até vergonha nele, que cumprimentava as letras respeitosamente, um á, um é, um í, mas na ajuntação das vogais com as consoantes soletrava asmático, ca... ca-dê... dei... rra: ca-dêi... Ah, cadeira! ‘É a vista’, desculpava-se”795. O único filho homem de Baiano é um auxiliar de exceção nos cuidados da casa e das meninas.

A educação do mocinho revela a situação da localidade. Às tardes, uma professora toma conta de seu curso em um espaço improvisado do salão paroquial. A informalidade da escola em nada afeta o compromisso do aluno, que assiste uniformizado e faz lições de casa com caderno, lápis e borracha. Graças a um comentário da professora (impressionada com a rapidez do aprendizado), o leitor descobre que o verdadeiro nome de Baiano é Marcos. Enquanto o mundo se apresenta ante o filho como um imenso chafariz, o pai preenche o tempo livre com águas mais espirituosas.

A reação do Rex à recusa de Baiano delineia o retorno ao presente. Cláudio insiste em levar o cachorro, mas o pai desgosta da idéia e começa a pedalar. Pouco depois o

792 Ruffato. Vol. 3 de Inferno provisório, p. 79.

793 Ruffato. Vol. 2 de Inferno provisório, p. 145 (“A decisão”). 794 Ruffato. Vol. 3 de Inferno provisório, p. 80.

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menino corre até a bicicleta em marcha, sem deixar de se perguntar “aonde iam indo?”796. A

expressão entre aspas é um indicador da importância que o tom oral797 tem para Luiz Ruffato. Até esse momento, o leitor já se deparou com imagens como a do menino “zoímbrilhando”798 que entrega ao pai o dinheiro das vendas e a do cachorro de rabo

“encedilhado”799 que se esconde “no por-detrás” da casinha. Em diante, o recurso da

oralidade tenderá a intensificar-se. No livro Escritura e nomadismo, Paul Zumthor explica que, nas sociedades humanas, a voz “representa um conjunto de valores que não são comparáveis (...) a nenhum outro, valores fundadores de uma cultura”800. Quando emprega

termos extraídos da oralidade, Ruffato lança mão de valores próprios da cultura mineira (da prosódia, por exemplo). Em segundo lugar, ao misturar vocábulos da fala comum com expressões mais estilizadas (caso do “rabo encedilhado”), o autor do Inferno provisório consolida a própria voz. E nela, presente em todas as histórias, cristaliza a idéia da personagem-painel com um laço social801.

As rememorações que entrecortam o discurso presente nada tem de gratuitas. Tal como apresentadas são comparáveis às rachaduras do teto pelas quais se filtra (também) o devir. Mais do que (apenas) excertos de passado, o discurso intervalar pode ser entendido como uma preocupação pela idéia de processo: “Baiano negaceava de emprego decente –o que, talvez, tenha inflamado sua ruína, imagina agora, que não adianta mais”802. Esse “não

adiantar mais” e a menção da palavra “ruína” pressagiam a conclusão. “Algo” na vida desta personagem precisa de “fechamento”. Embora dificultem o entendimento imediato, os apostos temporais (quando verdadeiramente compreendidos) permitem que o leitor acompanhe a formação do caráter destes indivíduos. Segundo o narrador, a recusa de Baiano à formalidade deve-se à crença no bem-estar independente, longe de chefias. Para Chicão, pai de Marcos, a independência é “lida” como ociosidade, uma recusa ao caminho “natural” do “manda-quem-pode-obedece-quem-tem-juízo”803. Uma primeira lista mostra a

“linha-dura” do pai e define os limites da infância/juventude de Marcos:

796 Op. Cit., p. 82.

797 O recurso oral é de extrema importância para o autor mineiro

(nota-se inclusive quando se apresenta estilizado).

798 Apócope de “os olhinhos brilhando”. 799 Com forma de “cedilha”.

800 In: “Presença da voz [cinco entrevistas com André Beaudet para a Rádio Canadá]”.

Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2005, p. 61.

801 Paul Zumthor, como muitos sabem, se especializou na linha dos estudos medievais. É citado aqui, porém,

porque o tema da “poética da voz” é outro de seus temas de interesse. A expressão “cristalizar o laço social” foi tomada de empréstimo, do ensaio citado.

802 Ruffato. Idem ibidem. 803 Idem ibidem.

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(...). Se o flagrava pegando passarinho – alçapão e gaiola destruídos jogando bilosca a-valer – castigo de grão-de milho nadando no Rio Pomba – cascudos

brigando na rua – safanões

sapeando jogo-de-baralho – puxão-de-orelha baforando cigarro – beliscões na bunda, nos braços folhando revista-de-mulher-pelada – pescoções em senvergonhice no pasto – relho na cacunda bandeando em más companhias – chutes à mancheia freqüentando mulher da Ilha – murros onde-pegasse (pitos e esculhambações e descomposturas e sermões e

xingamentos nada impedia as tentações)804.

O elenco da citação805 não é definido nem por essências, nem por propriedades,

nem pelo caráter de praticidade encontrado habitualmente nas listas. Trata-se de uma enumeração coerente de causas e efeitos, de ações desprezíveis e correções (do ponto de vista do pai), de vivências cotidianas e excessos (da perspectiva do filho). Em sentido vertical, a seqüência evidencia um processo de degeneração, de perda: do lado esquerdo nota- se a mudança de ações [de “pegar passarinhos” (ato infantil) a “freqüentar a Ilha” (decisão autônoma)]; do lado direito um incremento na severidade dos castigos (cascudos, safanões, puxões, beliscões, pescoções, chutes, murros). Pelo contexto histórico que flui nas galerias subterrâneas da Vista parcial da noite (e apesar de não contar, no texto, com outras alusões), não é difícil imaginar que um elenco desta natureza possa ter sido pensado sob o influxo dos anos mais repressivos do regime militar de 1964. Metaforicamente, vale esclarecer, posto que a infância/adolescência de Marcos não coincide com a época em questão.

Quanto tempo mora Marcos com o pai é um dado desconhecido, mas sabe-se que uma noite de farra e a conseqüente ressaca desatam em Chicão a decisão de mandar o filho embora. O dia da ressaca, uma sacola de papelão voa pela janela com os pertences do moço. Do bairro mineiro de Ibraim, a personagem se muda para uma cidade grande, iludido com as novas possibilidades. Mais uma lista (de quase meia página) relembra os primeiros passos do Marcos-profissional no Rio de Janeiro:

(...) de recomendação em recomendação, apalavrou serviço foi numa oficina de conserto de bicicletas lá longe, Bangu, calor dos infernos, sete meses fedendo a óleo

lubrificando e engraxando cubos e blocos de rolamentos banhando correntes no querosene

trocando aros e raios e catracas e coroas e pedais desempenando rodas

804 Idem ibidem.

805 In: Umberto Eco. A vertigem das listas. Em vários capítulos do livro, o autor procede a categorizar a noção

190 testando câmaras-de-ar

trocando paralamas e sapatas de freio e selins e pneus soldando garupeiras e garfos

convencendo-se de campainhas e limpa-raios e espelhos e faróis e bombas e cadeados e franjas para punhos

e distinguindo marcas,

“As alemãs, as melhores” - Uma Opel! Uma Görickel! Uma Wanderer!;

“Conversa de que não conhece as inglesas!” - Uma Philips!, Uma Humber! Uma Raleigh!;

“Imbatíveis, as suecas” - Uma Hermes! Uma Presidente! Uma Monark! Uma Vega!;

“Só um trouxa trocaria uma Peugeot...”806.

Por conta própria, Baiano aprende a consertar bicicletas e a distinguir as particularidades de modelos alemães, ingleses, suecos e franceses. Não por acaso, a dele é apresentada no início do texto com prenome e sobrenome: uma Humber - aro 28 (não um veículo qualquer mas o de um conhecedor). A colocação de “centenas de bicicletas operárias”807 nas ruas do Rio de Janeiro é interessante porque remete a um tempo (a

incipiente década de 1960) em que a movimentação a duas rodas, da casa ao trabalho, era prática comum. No tempo de folga, entre uma jornada e outra, o mecânico compartilha com os amigos de boteco. A evolução da atividade social, de fato, mostra o incremento gradativo no consumo de álcool. Apesar da rotina satisfatória, uma forte sensação de incompletude faz com que retorne a Cataguases por volta de 1960/1961808. No ano em que ali fica, conhece uma morena cujo nome esquece para sempre. O arrebatamento amoroso é o peso que inclina a báscula para o lado da terra natal. A frase que o narrador utiliza para comentar que Bangu ficou no passado faz pensar em um verso da toada “Adeus do Mineiro”, composta por Teddy Vieira e Piraci, e dada a conhecer pela dupla Zilo e Zalo (os irmãos Aníbio e Belizário Pereira de Souza) em 1959809. Na homenagem cantada, escuta-se: “Adeus colegas perdoem a minha franqueza / pois é com grande tristeza que agora vou lhes deixar”810

. Embora não seja tristeza o que Baiano sente, o narrador de Ruffato salienta o distanciamento: “(...) adeus, Bangu, bicicletaria, pensão!, adeus, colegas, adeus!”811.

Zózimo Alves Calazans e Ademir Guia (futebolistas) e Ubirajara (goleiro), craques e ex-

806 Ruffato, Op. Cit., p. 83.

807 Op. Cit., p. 84. 808 Idem ibidem.

809 Disponível em: http://www.boamusicaricardinho.com/ziloezalo_33.html e em:

http://www.boamusicaricardinho.com/mineiroemanduzinho_48.html. Acessos em: fev. 2011.

810 Disponível em: http://letras.terra.com.br/zilo-e-zalo/1678231. Acesso em: fev. 2011. 811 Ruffato. Idem ibidem.

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integrantes todos do Bangu Atlético Clube812, são alguns dos companheiros de boteco da

época no bairro da Zona Oeste carioca.

O salto das referências cariocas (o estádio Moça Bonita, os bares da Rua Sul América) às de Cataguases (o bairro Beira-Rio, o bairro Santa Clara, a Reta da Saudade, a Ponte do Sabiá) fazem parte do que em linhas anteriores foi mencionado como “discurso intervalar”. Enquanto isso, um silêncio conflituoso, falto de sossego, domina o presente de Baiano. Quando a voz narrativa diz que atravessa lugares insuspeitados, não se refere apenas ao espaço externo mas ao interior da personagem. Percorrendo um trajeto memorialístico, mais um elenco dá conta da “formação profissional” de Marcos:

No Rodoviário Mineiro, carregou e descarregou mercadorias das carretas que aportavam do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Belo Horizonte. “Me descadeirou, aquele tempo...”

Na Rua do Comércio, alguns lojistas contratam-no para cobrar os embrulhões. “Só inimizades criei...”

Na Industrial, amontoou nos galpões os fardos de algodão que chegavam do Norte. “E aquilo é trabalho de cristão?”

De barco, tirou areia do fundo do Rio Pomba. “Estragou minhas juntas, a friagem”.

Para as pelejas, a ele acorria.

No Clube do Remo, limpava os ladrilhos das piscinas, esvaziadas. No Flamenguinho, roupeiro do juvenil.

Nas eleições, cabo-eleitoral e fiscal-de-urna dos Prata.

No Beco, socorria o Zé Pinto na mantença do correio de casas: pintava paredes, reconstituía telhados, reassentava tacos, substituía manilhas, localizava canos furados, puxava força, capinava, roçava813.

Se até agora longos trechos foram trazidos à tona, tem sido para demonstrar o capital expressivo do recurso da lista. Os destaques acrescentados no trecho precedente (não pertencentes ao texto de Ruffato) são úteis para ressaltar um dos níveis de leitura na listagem. Nos aprendizados nota-se um segundo nível e nos efeitos de cada estádio, entre aspas, um terceiro. Funcional, a enumeração apresenta uma personagem construída por capas e sintetiza uma experiência que, disposta de outra forma, seria mais comprida, mais convencional e menos efetiva. Da passagem pelo Rio Pomba há referências múltiplas no percurso do Inferno provisório, mas a citada na história faz com que o leitor apague qualquer dúvida sobre o guarda-costas da vizinhança. Lê-se na própria história de Baiano:

812 Os jogadores realmente existem, só que na história de Baiano apenas são enunciados pelo nome (como se

o leitor imaginado para o projeto do Inferno provisório lê-se permanentemente conectado ao livro e à tela). Em uma entrevista publicada em 2010, Ruffato assume o computador como uma ferramenta fundamental na

construção formal de seus livros: “E mais: eu não consigo pensar nas minhas histórias sem imaginá-las dentro de

um ambiente de internet... o hipertexto, várias camadas de texto ao mesmo tempo, eu tento reproduzir isso no meu livro em papel”. In: “Luiz Ruffato fala sobre o ofício da ficção”. Disponível em:

http://conexoesitaucultural.org.br/entrevistas/luiz-ruffato-e-o-oficio-da-ficcao. Acesso em: 05.11.2010.

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Chegava ao local, sacava a garrafinha de pinga do bolso, derramava um gole na garganta, limpava a boca com as costas da mão, cuspia de lado. Na margem, de cócoras, encarava a superfície manhosa, sorvia outro trago, sussurrava, Negócio agora é comigo. Quer devolver o rapaz não? Num tem problema. Vou aí e tiro. Erguia-se, calculava a provável trajetória do mergulho, desfazia-se da calca, da camisa, do calcado, exercitava-se, respirava fundo, submergia814.

O fio da leitura linear e feita aos poucos aproxima o trecho citado de um que aparece em Mamma, son tanto felice. No primeiro volume do Inferno provisório, o esposo de Dusanjos some. Esse dia não aparece na fábrica, nem em casa para o almoço. São momentos distantes (entre um volume e outro), mas reflexos (no fato que descreve). Desta forma o narrador conta a tentativa de resgate de Donato (cujo destino fica em suspense, chegado o fim da própria história) e o leitor adverte a rotina de Baiano antes de cada mergulho:

O Baiano chegou, tirou uma garrafinha de pinga do bolso, virou um gole no gargalo, limpou a boca com as costas da mão, cuspiu de lado, desceu a encosta da margem. De cócoras, encarou as águas manhosas do Rio Pomba, tomou mais um trago, sussurrou, Agora o negócio é comigo, Quer devolver o rapaz, não?, Num tem problema, Vou aí e tiro. Levantou-se, calculou a força da correnteza em relação à provável trajetória do corpo, desfez-se da calça e da camisa, exercitou os músculos, respirou fundo, mergulhou (...)815.

De certa forma, as histórias de Ruffato mostram uma inversão temporal, onde o passado passa a ser o pivô de tudo e o presente (incômodo) existe para voltar. Após alguns “devaneios”, o presente retorna. Na perspectiva de Cláudio, o narrador evoca a figura materna, grande ausente do episódio. Reparando no nervosismo do pai, o menino experimenta o clima e o som das árvores durante o passeio. Com o som ressuscita a lembrança da mão carinhosa sobre sua cabeça. Tal como descrita (perto de um avental alagado de água sanitária), a mãe possivelmente seja uma lavadeira, uma das várias que perambula pelo Inferno provisório. O som de fora (presente) chama o cantarolar de dentro (passado): “Se esta rua / Se esta rua fosse minha, / Eu mandava, / Eu mandava ladrilhar / Com pedrinhas / Com pedrinhas de brilhantes, / Para o meu / Para o meu amor passar”. De início associada ao frevo “Vassourinhas”816

, a letra corresponde a uma das adaptações de cantigas de roda feita pelo

814 Op. Cit., p. 86.

815 Ruffato. Vol. 1 de Inferno provisório, p. 115 (“O alemão e a púria”).

816 Composto em 1909 por Joana Batista Ramos e Teodoro Matias da Rocha, o frevo “Vassourinhas” contém

os versos: “Se essa rua fosse minha / Eu mandava ladrilhar / Com pedrinhas de brilhante / Pra Vassourinhas passar”. Na última frase, a letra refere o Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas, que adquire a composição

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 185-200)