• Nenhum resultado encontrado

O inferno é aqui

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 118-126)

Tudo em “A danação” remete à privação de liberdade. O protagonista da história, Zito Pereira, pertence ao clã de Zunga, Zé Bundinha, Zé Preguiça e o Presidente. O seu entorno é o Beco do Zé Pinto. As aspirações do moço revelam um indivíduo de natureza diferenciada, mas a necessidade de aplicar um corretivo em alguém que lhe provocou um prejuízo (desde seu ponto de vista) ocasiona uma reviravolta na sua vida. A nona história

487 Filosofia da paisagem, Covilhã: LusoSofia Press, 2009, p. 8. 488 Op. Cit., p. 9.

119

de O mundo inimigo começa com a palavra “frio”490 e com uma comparação entre a

temperatura do momento descrito e o clima em Diadema, município brasileiro do estado de São Paulo, pertencente à região do Grande ABC. Por estranho que pareça, o inferno não sempre foi associado às chamas. O nono e último círculo do “Inferno” dantesco faz referência a um rio de gelo, o Cocito, destinado aos traidores491. De acordo com o Dicionário de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, “alguns textos religiosos bretões da Idade Media, fazem menção do inferno, qualificando-o de an ifern yen, o inferno gelado”492

. Tampouco surpreende encontrar, mais uma vez, uma mistura de tempos. Na recomposição da vida de Zito Pereira, o leitor deparar-se-á com um fenômeno que pode ser entendido como “continuidade ilusória”.

A vida da personagem transcorre entre a Serra da Onça (MG) -a infância, mais ou menos até os dez anos-, Cataguases (MG) -onde recebe a formação técnica para ser ajustador mecânico-, Diadema -três anos em uma firma possivelmente de auto-peças- e novamente em Cataguases -aonde retorna para trabalhar quinze anos em uma fábrica de algodão. Já no começo algumas pistas indicam que Zito Pereira está preso. No primeiro parágrafo há uma referencia a um “feixe de luz, raptado da rua por um pequeno buraco gradeado no alto da parede, quebrando a escuridão da cela”493. Os substantivos “grade” e

“cela” -que podem ser apreendidos de forma metafórica- assomam o que está por vir. O detalhe do “feixe de luz” é seguido pela referência a uma pensão na Rua Silva Bueno, no distrito paulistano de Ipiranga. A iluminação escassa se refere ao presente na cadeia. A referência à pensão faz parte da lembrança, do tempo em que compartilhava e dividia o aluguel de um quarto pequeno com um hóspede pernambucano. Logo no primeiro parágrafo se observa, em micro, o procedimento que povoará as dez páginas da história de Zito Pereira (o encadeamento metafórico de tempos diferentes quase como se fossem fatos contínuos). Viver o presente em nada impede recordar, mas no texto ficcional as constantes idas e voltas dão outra dimensão ao todo do texto. Superada a confusão inicial, corresponde armar o quebra-cabeça e descobrir quando (em que tempo) e aonde (em que localidade) acontece cada situação.

A partir de uma lembrança, o segundo parágrafo retrocede até o primeiro tempo em Cataguases. No presente, Zito está preso, “enjaulado”494. Cada vez que passa frente à

490 Ruffato. Op. Cit., p. 135.

491 Dante Alighieri, Divina Comédia, 2009. Canto XXXIV, p. 249. Algumas traduções também se referem ao

Cocito (ou Cocythus) como “lago das lamentações”.

492 Dicionário de símbolos, verbete “inferno”, p. 505. O Canto XXXIV do “Inferno”, na Divina Comédia, também

mostra Lúcifer emergindo do gelo, de sua morada “no centro da Terra, agitando um gélido vento”, p. 247.

493 Ruffato. Idem ibidem. 494 Idem ibidem.

120

cadeia, a caminho do trabalho, Zito Pereira fica impressionado com a construção que abrigava “desordeiros, (...) cachaceiros, (...) valentões, (...) embrulhões, (...) assassinos”495

. Embora a recordação o distancie da balbúrdia e do tumulto, a voz narrativa encaminha a fatalidade que viverá a personagem. Há, então, no segundo parágrafo, um paralelo de destinos que só será descoberto na releitura.

Em um dia sem data, passado, a Catedral da Sé (em São Paulo) recebe o fiel. Enquanto reza um pai-nosso, uma música “do tempo que morava em Cataguases”496

desmancha o momento da oração. Deixando literalmente atrás a época em que foi “aprendiz de lanterneiro” (“atrás” na nave principal e “atrás” porque saiu de seu lugar de origem), e fora do recinto eclesiástico, Zito caminha até a Rua Santa Helena. Parte de si (a que repassa uma e outra vez a sua vida) ainda está em Cataguases. No presente, toma a Rua Direita. Um vestígio do título toca de leve esta passagem: “Pensou em abordar alguém, puxar conversa, relembrar seus tempos de moleque em Minas, uma tristeza danada, vontade de estar longe dali...”497. A tristeza (danada) é um estado não previsto.

A marcação de ruas e lugares muito conhecidos em São Paulo chama a atenção. Catedral da Sé, Rua Direita, Rua Santa Helena, Viaduto do Chá. Isto talvez se deva à condição de forasteiro que acompanha Zito. No discurso surge logo a referência a uma culpa: “Como havia descido a tanto? Como poderia, de agora em diante, olhar os filhos nos olhos, dizer para eles o que era certo, errado?”498. A pergunta é uma âncora no tempo

presente: como chegou à situação atual? Com “descida” a voz narrativa se refere ao rebaixamento, a seu ocaso, ao lado de si que nunca evoluiu (a seu inferno). Pensando no mais velho dos filhos (Márcio), descobre-se que Zito obteve um diploma de ajustador mecânico no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Nos questionamentos há vergonha, insuficiência, impotência, arrependimento.

Parágrafo após parágrafo, o ajustador mecânico tenta comprovar o que se diz na sua terra sobre a grande capital. Os tão comentados conterrâneos que fervilham em São Paulo não aparecem nas caminhadas dominicais. Quando tenta compreender o espírito dos viandantes da Praça Clóvis Bevilácqua (SP), Zito lembra da Praça Rui Barbosa (MG). Na mistura de presente e passado que só adquire sentido na unidade da leitura, “(...) o que respirava não era o odor da fumaça dos ônibus e dos carros, mas o cheiro de pipoca que

495 Idem ibidem.

496 Idem ibidem. 497 Op. Cit., p. 136. 498 Idem ibidem.

121

inundava o centro da cidade, sábado à noite”499. Passar mais tempo na memória (no

conhecido) do que na experiência nova, é um sinal de frustração no espírito do moço. O pensamento de retorno à praça onde Marlindo prepara seu milho-alho conduz a uma recordação ainda mais antiga. Possivelmente ao tempo de Rodeiro, quando o menino Zito ajudava o pai no cuidado dos irmãos. A referência é curiosa porque leva a uma possível associação com as primeiras páginas de Inferno provisório: “(...) ajudava o pai na mantença da fieira de filhos, um a cada ano, metade anjinhos enterrados no quintal, metade doentinhos que teimavam em falar, comer”500. Conclui-se que ele seja, na própria família, o

irmão mais velho ou um deles. Na “fábula” com que se inicia o primeiro volume do romance, os filhos da Micheletta velha são descritos da seguinte forma: “(...) abortos horrendos, monstros, aleijados, anjinhos semeando o-lado-de-trás”501. Apesar de não poder

estabelecer-se uma conexão indiscutível entre os rebentos Micheletti (ou qualquer outro assentamento italiano) e os irmãos de Pereira, a Serra da Onça é uma referência clara à década de 1950 no interior de Minas Gerais. A filiação com a família Pretti, por exemplo, da qual provém o professor de “O segredo”, também é uma possibilidade, vista a coincidência entre o que plantam na infância Zito Pereira (“milho e fumo”502) e Francisco

Pretti (“a gente plantava milho, fumo, arroz”503). Na trajetória repassada de Zito (que com

perto de onze anos migra da Serra para Cataguases), a cidade grande é descrita com um epíteto inquietante: “(...) entrou no Senai, sabe Deus como, e de lá atirou-se à vala-comum de São Paulo”504

. Ao dizer que não se explica como Zito entrou no Senai, ao dizer que se atirou à vala-comum do centro financeiro do Brasil, o narrador se aproxima do lanterneiro.

Apenas um nome de mulher separa o absoluto “campo da lembrança” da absoluta “cidade do presente”. Gracinha é o grande amor de Zito. O acaso une-os em São Paulo, em um local noturno da Rua Rego Freitas. A dança em que se conhecem propicia um novo encontro. O parágrafo seguinte -colado no anterior tão-somente pelo fio do ilusório- menciona Hilda e não a moça da noite. Cada mulher representa um tempo e uma cidade. Os fatos não são simultâneos. A cotidianidade da mãe se tece na cozinha: no arroz, no feijão com toucinho, no angu e na couve, no aguardo dos meninos e do marido. No “tempo da cidade mineira”, os filhos vão chegando para o almoço: Márcio e Zilda são colegiais, Marilena e Sofia (mais novas) fazem parte de um grupo musical e Antônia, que

499 Idem ibidem.

500 Idem ibidem.

501 Mamma, son tanto felice. Vol. 1 de Inferno provisório, p. 15. 502 O mundo inimigo. Vol. 2 de Inferno provisório, p. 136. 503 Mamma, son tanto felice. Vol. 1 de Inferno provisório, p. 86. 504 O mundo inimigo. Vol. 2 de Inferno provisório, p. 136.

122

parece ser a mais nova, precisa ir ao medico por causa de uma tosse. A chegada de Zito à casa da família traz à discussão uma distinção formal típica do autor, não comentada até agora:

Quê que aconteceu, homem? Ele surgiu à porta, olhar perdido, desabou o corpanzil na cadeira, calado. Os mais pequenos vieram roçar suas pernas, ele, impaciente, repeliu. Já deu almoço para eles? Então põe eles no quarto! Hilda enxugou as mãos no avental e enxotou as crianças. E vê se eles param de berrar no meu ouvido!505

O leitor ainda não sabe o que aconteceu, mas o clima descrito na chegada do operário tem explicação na inesperada demissão que recebe da fábrica. A fonte em negrito - presente nesta citação e também no início do texto- torna saliente um diálogo (não é apenas uma voz) e ajuda a reforçar o incômodo que o trabalhador sente com o acontecido. Continuado por um parágrafo sobre Gracinha (aprofundando na idéia de continuum fictício), o episódio da cozinha fica em suspense.

Cearense, de sotaque carregado e -segundo se dizia- empregada de uma casa de família em Pinheiros, Graça é a única mulher branca que se interessa por Zito, “em toda a sua vida”506. Essa informação faz supor que ele é preto e Hilda ao menos “café-com-leite”.

Com a empregada doméstica o mineiro se sente à vontade para percorrer a cidade. Juntos passeiam por referências aprazíveis como o Parque Ibirapuera, as decolagens no Aeroporto de Congonhas e a Praça da República. De comum acordo curtem o esplendor da sétima arte: “bangue-bangue, zero-zero-sete, chanchada, bíblico, seriado, mazarope, romântico”507.

No texto, e para voltar a Cataguases, o romanticismo dos encontros fica em mais um suspense.

Misturar cidades e tempos é uma forma de retardar o desfecho da história. Desta vez a digressão não é temática, mas estrutural. Retomando então o episódio tenso do resguardo das crianças e explicando como Zito é um homem bom, a voz narrativa descreve Hilda à procura do marido. Ele passou da cozinha para o quintal, ali desenterra “um coco cheio de pinga, que ganhou do Presidente”508

. Objetivo: se embebedar. Obstáculo: a preocupação da esposa. Quando ela pergunta se ele não vai trabalhar, recebe uma frase rotunda e em negrito: “Nem hoje, nem amanhã, dia nenhum”509

.

Com os mesmos estilo e fonte, o parágrafo seguinte se constrói sobre uma pergunta que parece provir da discussão com Hilda, mas que realmente situa-se em São Paulo:

505 Op. Cit., p. 137. 506 Idem ibidem. 507 Op. Cit., pp. 137-138. 508 Op. Cit., p. 138. 509 Idem ibidem.

123

“Nunca mais?”510. O dono da voz não é o narrador, tampouco uma mulher. É Zito quem

confirma algo com Graça, é ele quem recebe como resposta o rotundo “Nunca mais”511

. Ao colocar indistintamente uma frase em uma personagem ou em outra, o autor coloca também aos atores da história em situações de troca, sublinhando o caráter mutável da vida. A desfeita que se faz hoje pode ser a que se receba amanhã. Um desacordo faz com que Graça e Zito terminem na rua, atravessando o Viaduto do Chá e a Praça do Patriarca. Entre as últimas palavras que Zito recebe da moça, antes de tomar seu rumo, de dizer adeus para sempre, se “escuta”: “Urubu, pau-de-fumo, tiziu, bola-sete”512. Os adjetivos

se referem, todos, à cor da pele: a aparência da ave de rapina, a imagem dos filamentos cortados do tabaco (também “fumo crioulo”), a gíria empregada para falar de pessoas escuras e o apelido que recebeu o violonista brasileiro Djalma de Andrade (1923-1987), fundador do grupo Bola Sete e Seu Conjunto no final da década de 1940. Outra explicação (a que talvez elucide o apelido do músico) dá sentido à expressão “bola-sete”. O bilhar inglês (snooker) se joga com vinte e uma bolas. Quinze vermelhas e seis de cores variadas (amarela, verde, café, azul, rosa e preta) e de valor crescente. Nesta modalidade, a “preta” (de mais alto valor) equivale a sete pontos. Na sinuca comum, a preta é simplesmente a “bola-oito”. Após a insolência de Graça, Zito reage com um empurrão. A companheira cai, o desaforo continua e o moço se afasta até “nunca mais”.

Treinado o leitor no jogo das miragens, observa-se que a frase com que começa o parágrafo seguinte não tem a ver com Graça: “Me mandaram embora, Hilda. Por quê?,

nem Deus sabe”513. A menção à cor de Graça faz pensar brevemente no preconceito que Zito pode ter sofrido durante a sua vida, o diálogo com a esposa o confirma. Ezequias, encarregado da fábrica, explica ao trabalhador que o “corte” se deve a uma crise no mercado do algodão. Zito aparenta entender, mas no fundo acredita que a demissão se deva à cor da pele. Na recordação da conversa com o chefe imediato, o operário chega a imaginar o que teria acontecido se não tivesse deixado a Serra da Onça, ou se não tivesse voltado de São Paulo. Como se qualquer outra escolha tivesse sido melhor (mais feliz) do que Cataguases. O empurrão que ele dá em Graça (em São Paulo) e a fantasia do que teria acontecido de ter ficado na Serra (comendo direto do caldeirão, cacumbu a um lado) são indícios da tensão por vir: um impulso e uma faca.

O quarto da pensão -que no início do texto também passa por cela- é o lugar onde acontece a seguinte jornada ação-recordação. Na hospedagem em Ipiranga e na firma em

510 Idem ibidem. 511 Idem ibidem. 512 Op. Cit., p. 139. 513 Idem ibidem.

124

Diadema, aonde trabalha, o moço é conhecido como “Mineiro”. Não pelo nome, não pela família, senão pelo lugar de origem. Repassando os amigos que deixou em Cataguases e os gostos variados (músicas orquestradas, diversos gêneros cinematográficos e leitura de tudo quanto cai em suas mãos), Zito se reconhece “diferente”. Na recordação, a noite dos sábados era dedicada à caça. A perseguição de animais silvestres assinala o lado instintivo de Zito. Diferente, sim, mas não por completo. Diferente de quê?, valeria também perguntar-se. Com o dinheiro da indenização (e o firme desejo de voltar), o trabalhador compra um aparelho de som antigo, discos, vestes e um boleto para Leopoldina. Em um diálogo com um colega baiano da firma, Zito observa que a sua terra não está assim tão desprovida: “lá na minha cidade tem muita indústria, se o sujeito tiver cabeça dá

para viver no de-acordo” 514.

Em Cataguases ainda transcorre o dia da demissão (o dia do “coco cheio de pinga”). A sensação de ter sido sujeito de uma injustiça leva Zito ao tempo em que alugou um lugarzinho no Beco do Zé Pinto. Novo e cheio de esperança tentou o ingresso nas fábricas da cidade, mas só conseguiu entrar como goleiro do time de futebol da Manufatora. Nessa época conheceu Hilda (a descrição confirma a suspeita: a moça é “morena chocolate”515). Foi por essa via que virou ajustador-mecânico na oficina da fábrica.

Com mais um quarto de litro de cachaça em cima (é Márcio, a pedido do pai, quem procura a bebida na mercearia de Antônio Português) o trabalhador decide dar um escarmento em Ezequias. Nada o faz mudar de opinião. Para ele, o corte pode ter se devido à cor da pele, ao comportamento justo com o patrão ou a reivindicações por pagamentos mais justos (um trabalhador honesto que se desmoraliza ao ficar “improdutivo” após quinze anos de luta). Para dar um susto no encarregado, Zito leva consigo uma faca de cozinha. A arma é encoberta. Lê-se exatamente: “Ia dar um susto no Ezequias, queria ver o filho-da-puta gemer de medo”516. O raciocínio do ajustador mecânico corresponde à sua experiência no

mundo do campo aonde “dar um susto” equivale a “dar o merecido”, “uma lição”. Trata-se de uma perspectiva pré-industrial, até certo ponto simples (sem malícia), que justifica a administração de justiça pela própria mão.

Acontece que na estrutura de uma fábrica (em “termos citadinos”) “dar um susto” não tem cabimento. O corretivo que Zito precisa dar é castigado com o peso da lei. Antes de “dar a lição”, à saída do bar do Danúbio, o operário repensa as conseqüências de seus atos. A consciência, porém, é apenas um lampejo. Ele não consegue deixar a ofensa “desse

514 Op. Cit., p. 140. 515 Op. Cit., p. 141. 516 Idem ibidem.

125

tamanho” e leva o plano adiante. A perseguição de bicicletas -uma caça simbólica- se transforma em um acidente que deixa à mostra a prova do delito. Ou da intenção.

Logo após o acidente, o trabalhador lembra do tempo com Graça. O casal está no Zoológico de São Paulo, “em frente à jaula dos leões”517. No presente, Ezequias assinala a

arma e denuncia Zito com os soldados. No pensamento, o ajustador mecânico começa a entender a confusão em que se meteu. O que até agora foi explicado lentamente parágrafo após parágrafo, de repente se precipita tudo no mesmo trecho longo: Graça, o acidente, a história com Hilda, a despedida de solteiro na Ilha, o resultado não previsto de sua impulsividade. No verbo de Zito: a explicação de como tudo não passa de uma desavença, de um acidente. No seu pensamento atual: a sensação de que vive apenas um susto. Em negrito e a poucas linhas do final, a sentença: “Tentativa de homicídio, engaiola o

crioulo, doutor, vou dar umas bordoadas nele pra ver se ele pára de choramingar, que homem mais mole, sô!”518. O preconceito que o discurso de Ezequias não revela, aparece claramente nas palavras dos soldados. Uma sucessão de pensamentos suspende o discurso. E uma idéia que transita entre o medo e a certeza encerra a história de Zito Pereira: “você vai me esquecer”519.

“A danação” possivelmente seja um dos textos mais “infernais” deste romance. A prisão acontece “de fato” e é tida como um ato de justiça. A conduta delitiva de Zito é punida com prisão. Com a faca à vista, com o operário capturado em flagrante, o homem “diferente” é condenado duplamente: demitido por uma crise que ele não causou e depois por uma atitude até certo ponto ingênua que não é tão instrutiva quanto ele espera. O que atenta contra Zito Pereira é a sua experiência de mundo. Seu fim (o fechamento de qualquer possibilidade de reconstituição) é violento e alguém -Ezequias, os soldados, a sociedade- o julga merecedor do inferno. Em um volume que é quase um guia ilustrada do “descenso”, o autor espanhol José Ovejero conjectura:

E se existisse o inferno? E se não fosse necessário ir muito longe para encontrá-lo? E se a entrada não estivesse em cavernas nem no labirinto senão aqui, na volta da esquina? (...) O horror, como sabe Conrad, encontra-se neste mundo; e os demônios podem ser pulcros funcionários. O tormento mais atroz não é outra coisa de além-túmulo, senão da vida. (...) Esses, sim, são infernos apavorantes, os criados pela mão do homem520.

517 Op. Cit., p. 143.

518 Op. Cit., p. 144. 519 Idem ibidem.

520 José Ovejero (org.), Libro del descenso a los infiernos, 2009. Lê-se no original: “¿Y si existiese el infierno? ¿Y si

no fuera necesario irse muy lejos para encontrarlo? ¿Y si la entrada no estuviese en cuevas ni en laberinto sino aquí, a la vuelta de la esquina? (...) El horror, como sabe Conrad, se encuentra en este mundo; y los demonios

126

Como aos habitantes do inferno cristão, a Zito Pereira lhe aguarda a escuridão, a indiferença, a medida da lei que nivela os culpados. A idéia do antologista espanhol se parece muito com o que Luiz Ruffato deixa transparecer em “A danação”: o precipício pode estar à volta da esquina, na casa do vizinho, em um impulso ou na própria experiência de mundo. Mais perto do que qualquer um possa imaginar.

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 118-126)