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O testamento, o rebento, a fuga, a cucuia

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 79-90)

Tem notáveis vantagens adotar a solidão da raiz. Faça sol faça chuva, ela sempre encontrará na terra o substrato para sobreviver. É possível se pensar os textos literários como ramificações estendidas sobre a terra. Lê-se à procura de um sedimento que jaz não no solo macio, mas na brandura das letras. Em não poucas ocasiões, a visualidade desdobrada do cinema também faz as vezes de alimento. Os biólogos Claude Nuridsany e Marie Pérennou o sabem tão bem que, após quinze anos de pesquisa e seis de montagem295,

apresentaram a sua comoção perante os atributos de um mundo miniatura em grande formato. A jóia que desenfronha a intimidade dos minúsculos habitantes da erva e da água chama-se Microcosmos. Gravemente feridos ficaram, desde então, os tradicionais processos de filmagem científica. “Vinte e quatro horas em um mundo desconhecido. Por uma aventura à escala do centímetro. (...) a ampulheta do tempo se acelera: uma hora por um dia, um dia por uma estação, uma estação por uma vida”, anunciava a voz masculina do trailer em 1996.

Nas cenas iniciais via-se o céu carregado, o temporal em formação, a paisagem agitada em três gradações: o azul atormentado, o verde escuro das copas e as mais claras gramíneas, tudo banhado pela água. Nuvens. Temporal. Paisagem. Copas. Pastagem. E um surpreendente primeiro plano da relva. A chuva “ataca” os insetos em câmara lenta. A técnica permite captar as reações, quase gestos, de alguns. As folhas do tamanho da tela. Cada gota do tamanho de um corpo.

293 Uma história posterior (“A mancha”) dedicar-se-á exclusivamente a esta personagem. 294 Corresponde à história “O barco”.

295 Cf. Isabelle Sébert, “L’événement Microcosmos”. Disponível em:

www2.cndp.fr/ecole/sciences/objectif_science/pdf/film_even/cinema_OS_117-120.pdf. Acesso em: 06 mar. 2011.

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Visível primeiro em algumas passagens, com vagar no texto inteiro, os “planos” que Luiz Ruffato arquitetou para “O barco” lembram as tomadas consecutivas da abertura do documentário francês. A coincidência -ao contrário do que o senso comum faz pensar- se explica no uso ímpar que a sétima arte faz de um antiqüíssimo procedimento ficcional, a fim de projetar o espectador no coração das ações. Daí o encanto do sultão com as fábulas que, noite após noite, lhe conta a filha do vizir mais importante do reino sassânida296. Daí

as galerias hexagonais e as imagens literalmente intermináveis que Jorge Luis Borges imaginou para a Biblioteca de Babel. Daí o caráter poético dos setenta e cinco minutos compostos por Nuridsany e Pérennou. Daí o acesso ao quintal de Geralda e Romualdo, imaginado pelo autor mineiro (natural de Cataguases), cuja escrita instiga este trabalho.

A consciência narrativa que inaugura a terceira história de O mundo inimigo se apresenta neutra, em uma posição bem delimitada. Marlindo, pipoqueiro familiarizado com o leitor desde o primeiro volume, fala com a patroa na varanda, a três degraus de distância. As ações em andamento revestirão de significância o espaço entre os corpos. Em uma intervenção disposta à maneira de diálogo, o empregado pede licença para que o caçula lhe acompanhe no trabalho, dado que a mãe (Zulmira) lava roupa o dia todo e a irmã (Hélia) faz o mesmo na fábrica. Aos dez anos Luzimar acompanha de perto os ofícios paternos com a promessa de um bom comportamento.

Dezoito partes estruturam a vida destes personagens, pequenos brancos separam os trechos. No segundo trecho se descreve a casa que será centro das atenções. O narrador volta aos degraus, agora vazios, onde se encontrava Marlindo e descreve um pequeno caminho de “pés-de-moleque”297, a varanda, um teto vivo de parreiras, o jardim, o tanque-

de-cimento, os fundos, o quintal e as margens do rio. Do outro lado do Pomba, encontram-se as casas da Vila Minalda (localidade industriária de Cataguases), a estrada que leva a Leopoldina e também a que vai para o Rio de Janeiro. É prudente se manter atento, pois o caminho será percorrido novamente, todavia de outra forma apresentado.

Um diálogo entre pai e filho define o terceiro segmento. A troca é útil para entender a curiosidade dos garotos de sua idade e contexto. Suspeita-se que o episódio venha à tona porque traduz, de alguma forma, momentos que impactaram a infância de Luzimar. As retinas do menino serão as janelas pelas quais o narrador elaborará outra descrição da casa, agora com detalhes próprios do mundo de um mocinho de dez anos: uma tartaruga, o calçado da empregada, a cadeira na varanda da cozinha.

296 Relativo à dinastia sassânida, no período persa pré-islâmico. O estudo introdutório da tradução das Mil e

uma noites realizada por Mamede Mustafa Jarouche (Globo, 2005) recupera os detalhes desta história.

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O olhar do narrador deixa escapar observações das personagens de maneira progressiva. Ao se posicionar nos olhos dos atores, por etapas, a localização independente da voz principal abre passo a perspectivas múltiplas. Ainda que mediado, Osvaldo é a primeira personagem a ser caracterizada. De início as filiações se ignoram, mas o desequilíbrio emocional que o conduz a ciclos de agitação e de mudez é nítido. Em momentos de inquietação (o alheamento transposto em excesso de energia), o corpo de Osvaldo acompanha o descontrole da fala. Preocupante, porém, são os acessos de cólera, talvez de frustração:

Vontade de esmurrar o chão. Pular o muro, sair a galope. Pegar um acha e rebentar a cabeça do cachorro que latia, latia, latia onde? Tampar os ouvidos, não mais escutar as agônicas águas do rio que escorriam sem paragem. Dois maços de mata-rato por dia. Um acesso no outro. Fumaça esvaindo pela boca, nariz. Veneno no sangue. Se entregava. Ficava quietinho, quietinho. Mocheado. Desfalecido298.

No trecho seguinte, Marlindo e seu universo entram no foco desse olhar composto299. Recria-se o passado do morador do beco de Zé Pinto, apresentado como um

indivíduo religioso em Mamma, son tanto felice. Acontece tudo com esse homem de talhe fino e menos idade da que aparenta no presente da narrativa. Órfão, o pai de Luzimar provém do município mineiro de Guiricema. Assenta-se em Cataguases devido à insistência da esposa: “Dera duro para engrenar como gente. O pão que o diabo amassou, comera com gosto”300. A forma como Zulmira lembra o sem-fim de mudanças (Guiricema, Cataguases,

Dona Eusébia, Cataguases, Leopoldina, Cataguases) faz pensar em Sísifo (referência ineludível, apresentada com sigilo): “Não ia mais ficar rolando morro abaixo, não era pedra”301. Se o maior ofensor dos deuses foi condenado a empurrar uma rocha do pé de

uma colina, ininterruptamente, não será Zulmira quem encarne o trabalho inútil e desesperador dos infernos302. A interpretação que o escritor argelino Albert Camus faz do

mito, aquilina, ajuda a pensar na consciência que as personagens de Ruffato adquirem sobre o seu papel na sociedade. Por outra parte, apesar de não ser o foco deste trabalho, vale lembrar um dado biográfico curioso. O volume Espécies de espaço: territorioalidade, literatura e mídia, organizado por Izabel Margato e Renato Cordeiro Gomes, contém um depoimento do autor sobre como se tornou romancista. Na segunda página, Ruffato diz que o pai

298 Ruffato. Op. Cit., p. 43.

299 A idéia de “olhar composto” pode ajudar a entender o privilegio desta consciência narrativa

(que olha através das personagens e, por momentos, mantém a distância).

300 Idem ibidem. 301 Op. Cit., p. 44.

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“zanzou indeciso entre Guidoval, Rodeiro, Dona Eusébia e Cataguases”303 até a sua “mãe

dizer basta”. Impossível de se deixar de lado, o fato ecoa nas margens de “O barco”. As destrezas de Marlindo forjam-se no contato com a rua: na breve passagem pela Industrial, frente ao Cine Edgard com o carro-de-pipoca, em uma venda da Vila Minalda e finalmente (aqui começa a história) como pajem304 de Osvaldo, na casa de Geralda e Romualdo, um casal bem posicionado da comunidade cataguasense. A responsabilidade do pipoqueiro na casa do tanque-de-cimento consiste em comprar cigarros, dar remédios e injetar tranqüilizantes em situações de alerta. O rapaz que acompanha lhe inspira simpatia: “O moço tinha... problemas... Gostava? O Osvaldo tinha lá suas esquisitices, mas, quem não tem?”305

. Porém, não tudo foi sossego na vida do agora cuidador. Os efeitos hostis de uma noite de bebedeira, antes de se assentar, levam Marlindo à Igreja Quadrangular e à concórdia com a católica Zulmira.

Um exemplo claríssimo do olhar composto surge ainda no trecho que corresponde ao esposo da lavadeira: “E a Hélia, menina-moça, habitava o mundo da lua. À espera de um príncipe encantado. Que nunca apareceria. Porque não existem. Mas, vá meter isso na cabeça-dura dela!”306. A descrição da personagem de Hélia está embutida no fio que vem

sendo tecido pelo narrador. As últimas frases, contudo, tem o espírito da oralidade, parecem provir de um “outro” que também conta, como se fosse um discurso reproduzido. Veja-se como não fica explícito sobre quem recai a responsabilidade da terceira pessoa. Quem se manifesta? Quem escuta? As deduções (confidenciadas para alguém) tanto podem ser assumidas pelo narrador como pela personagem. A dúvida sobre a responsabilidade da fala se esclarece apenas no raciocínio de quem lê, no trabalho de inferência lógica.

O desassossego do pai frente ao futuro do filho é mais um pensamento fixo do autor, uma preocupação de teor social que outros pais e filhos, personagens, desdobrarão ao longo do Inferno provisório. Na cabeça de Marlindo, a melhora de Luzimar passa pelo afastamento de Cataguases, a formação técnica e a moradia em São Paulo. Após reconhecer que precisarão firmeza para levar tal plano ao fim, Marlindo se pergunta: “Meu Deus, quantos sacos de serragem?, quantos carrinhos-de-mão cheios de toquinhos teria de empurrar ainda para a mulher ferver roupa para fora? Quantos?”307. O questionamento é

importante porque contribui para o entendimento da distinção que José de Souza Martins,

303 Luiz Ruffato: “Até aqui, tudo bem! (como e por que sou romancista - versão Século 21)”, 2008, p. 318. 304 Daqui em diante, “pajem” será utilizado no sentido de “acompanhante”.

305 Ruffato. Op. Cit., p. 44. 306 Op. Cit., p. 45.

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sociólogo e professor emérito da Universidade de São Paulo, faz entre vida privada e vida cotidiana. Enquanto a primeira é associada ao desfrute (um tempo para si, só possível em certas condições, antônimo de vida pública), o cotidiano “tende a ser confundido com o banal, (...) com o que não (...) se define a si mesmo como momento histórico qualitativamente único e diferente. (...) aparece, portanto, como uma excrescência da História”308. É justo o saliente, a excrescência, as tensões históricas do conceito de

cotidianidade o que interessa a Luiz Ruffato. Se para Souza Martins trata-se de uma era dominada pela “fragmentação da consciência”309 ou de uma subjetividade “obrigada a

construir o significado da ação no próprio ato de agir”310, para Ruffato a consciência se

fragmenta ao vivo, adotando uma temporalidade híbrida e fazendo tangíveis angústias como a de Marlindo, que não entende até quando terá de repetir o movimento de Sísifo311.

De imediato o narrador situa-se nos olhos de Geralda, que se desloca a outro tempo através de um recurso clássico. O olhar sobre o retrato a leva à época do casamento com Romualdo, então recém-diplomado em Medicina pela Universidade do Brasil (no Rio de Janeiro). A situação provoca um pensamento novamente lavrado sobre o material do narrador: “A felicidade... Ah, a ignorância do vindouro! Se soubesse...”312. Como no

primeiro volume do romance, associa-se a plenitude ao tempo da modéstia, da ignorância e do singelo; é mais o reconhecimento da falta de visão que um ardil romântico (aquilo de pensar que todo tempo passado foi melhor).

O presente de Geralda é recriado na dinâmica da casa que Romualdo construiu para a família, na Rua do Pomba (a família imensa que ele aguardava para povoar os oito quartos do lar). O falecimento do médico (que morre de um ataque ao coração) é um dos curiosos eventos várias vezes descrito durante a narrativa. A frase “desgosto, provavelmente”313

no momento de imaginar a razão da “partida” de Romualdo (pensada pela esposa/narrador) remete aos dois filhos do casal: Bernadete que mora em São Paulo e Osvaldo, para quem o pai sonhou um futuro na área jurídica (“venturo causídico”314

).

Saber-se-á logo que Bernadete conheceu um paulista aos quinze anos, em um baile de debutantes e que praticamente nasceu pronta para deixar a cidade natal: “De São Paulo,

308 Cf. José de Souza Martins. A sociabilidade do homem simples, p. 101. 309 José de Souza Martins. Op. Cit., p. 108.

310 Op. Cit., p. 106.

311 Frio, obscuro e pleno de castigos eternos: assim o inferno grego. Junto com Tântalo, Ixíon e Tício,

Sísifo é uma das quatro personagens que serão submetidas a castigo permanente no mundo inferior. Veja-se: “A recepção da cultura grega em Flávio Josefo: literatura, mitologia e religião”, de Nuno Simões Rodrigues, p. 239. Disponível em: http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/2974/1/0870-0133_2003- 031_00237-00252.pdf. Acesso em: 12 fev. 2011.

312 Ruffato. Op. Cit., p. 45. 313 Op. Cit., p. 46.

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escrevia de quando em quando (...). Uma carta de quinze em quinze dias, uma carta por mês, uma carta por ano, nenhuma carta. Um obrigatório telefonema no Natal, nos aniversários”315. O trecho assoma também outro aspecto da doença de Osvaldo: seu

entusiasmo pela leitura (concentrado na Reader’s Digest) e o confinamento a que se submete aos dezessete anos, por tempo indefinido. Só então os pais, de situação econômica estável, percebem o beco sem saída: “O colega da Casa da Saúde, Doença dos nervos. O colega da Santa Casa da Misericórdia de Juiz de Fora, Doença dos. O colega de uma clínica particular do Rio de Janeiro, Nervos. Adeus, Romualdo! (...) Uma tarde dormitou na sala, não amanheceu”316. Só então o doutor, que tanto acalmou o sofrimento dos pacientes, observa

que a falta de entendimento com os filhos não tem remédio. O sexto segmento chega ao fim com a linha: “Osvaldo, Osvaldo. O fado. O fardo. A fortuna. O destino”317. Uma frase

que remete, na cultura brasileira, à figura de linguagem que torna harmoniosas as estrofes da música “Flor da idade”, escrita por Chico Buarque em 1973: “a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor”, “o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor”, “a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor”318

. Em ambos os casos: uma aliteração intervinda por uma consoante, que valoriza musicalmente o texto.

Um dia, no quintal, Osvaldo tem um acesso de agitação. O filho da patroa ordena a Marlindo a limpeza do terreno do pátio. Luzimar se mostra amedrontado. As ferramentas, pegas pelo leitor de revistas, são agressivamente jogadas no chão. À reclamação segue uma carreira até a copa de uma mangueira e um riso histérico desde o alto. Marlindo persegue o moço enquanto dona Geralda, apesar de temer que o filho se jogue no rio, desiste de resolver a situação. Aguarda-lhe uma xícara de maracugina. No fundo do comentário há uma crise de expectativas. Capinar (“arrancar o mato do quintal”319

) é o que ninguém consegue fazer no terreno mental do filho do médico.

Só agora o narrador entrará na vida de Adelaide. E para tanto, não demorará a lhe emprestar o olhar. Menina, a empregada é “adotada” por Miguel Nascente, pai de Romualdo, na época em que morava na Granjaria320. Aos oito anos de idade, Adelaide já

trabalha de forma desmedida (de segunda a segunda, desde o raiar do dia até o fechamento da venda disposta na frente do casarão). Embora freqüente no Brasil, a situação de

315 Op. Cit., p. 46.

316 Idem ibidem.

317 Op. Cit., p. 47. O negrito é nosso.

318 A música “Flor da idade” forma parte do disco Gota d’água. A letra completa está disponível em:

http://www.chicobuarque.com.br. Acesso em: 05 mar. 2011.

319 Ruffato. Op. Cit., p. 47.

320 O bairro é apresentado em Mamma, son tanto felice. O professor que protagoniza “O segredo” mora na

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Adelaide causa espanto: comporta-se como alguém da família, padece mais do que os parentes a perda do patrão e sofre a mudança de casa dos filhos, mas é completamente abandonada após o falecimento de Miguel: “Um dia, pegou-se com trinta e tantos anos, sozinha, sem lar, sem dinheiro, sem família, sem nada. (...) Agradeceram por tudo, deram- lhe uma correntinha de ouro (...) como lembrança e paga, despediram-na”321

. De que valeram os cuidados com os mais novos, a preparação das comidas, o conserto das vestes? Adulta, é resgatada por Romualdo de uma casa na Vila Reis, dos fundos de favor em que mora. Na interpretação dos avatares de Sísifo, Albert Camus diz que a verdadeira tragédia do mito é a consciência do herói. Adelaide mostra sinais de consciência. O maior absurdo, porém, é o desmerecimento (moral, econômico, vital) a que é conduzida. Nem ao proletário dos deuses lhe aguarda tal degradação. A punição de Sísifo pelo menos é resultado de um juízo. Para Adelaide nem julgamento haverá, logo será destituída de seus direitos sem aviso e sem remorso.

O pêndulo das perspectivas para em um dos lados da vida de Osvaldo. O acesso a localidades históricas de Minas Gerais, viagens e filmes, moças e mergulhos na piscina do Clube do Remo, a biblioteca paterna, discos... nada lhe interessa: “Sentia um alheamento, a lenta ruína das horas. Gostava de deitar-se na varanda do quintal, olhos fechados, e deixar que o silêncio se instalasse na tarde”322

. Possibilidades o moço teve, mas o desequilíbrio persevera. No universo da família Nascente, a leitura de revistas (atividade recorrente de Osvaldo) era perda de tempo. Duas vezes contados (primeiro a olhos dos pais e depois por ele próprio, nas páginas 46 e 49 respectivamente), o encerro dos dezessete anos e a procura de especialistas são reveladores: “Freqüentou médicos em Cataguases, Juiz de Fora, Belo Horizonte, Rio de Janeiro. Procuravam uma doença, encontraram. Mas não era seu corpo que carecia de remédio. Sua alma é que estava irremediavelmente condenada”323. Leitura e

conforto, tempo arruinado, expectativas abolidas, alma condenada. A de “O barco” é a história do inferno de Osvaldo.

Os infernos humanos não se forjam sozinhos, ilhados. Neste sentido, os diversos olhares sobre uma situação contribuem para a composição da trama. Para Adelaide o problema do médico tem nome e se chama Geralda, a escolha frágil que delega o comando da casa e o cuidado dos filhos: “(...) toda vez que ficava de-barriga quase que ia para o outro mundo. Parecia de louça, a diaba”324

. A empregada não acredita nas acusações de

321 Ruffato. Inferno provisório, vol. 2, p. 48. Adelaide faz pensar em Natividade, personagem do romance

Avalovara, de Osman Lins.

322 Op. Cit., p. 49. 323 Idem ibidem. 324 Idem ibidem.

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infidelidade que recaem sobre o segundo patrão, mas sugere que a culpa (caso tenham fundo de verdade) seja da esposa: “Motivo de conversinhas nas rodas de cadeiras de fim de tarde. Botou casa para uma mulher em Leopoldina. Tem filho com outra em Muriaé. É amigado com outra ainda na Saudade. Caiu na língua do povo. Tudo invencionice! Ele era lá de arrumar quizumba?”325

. Também não se dão detalhes das amantes, mas considera-se a possibilidade de que Norma (irmã de Carlos, personagens ambas de Mamma, son tanto felice) seja uma das mulheres326. A fofoca que cerca Bernadete (no colégio, na rua e na igreja) só atiça o desejo de ir embora. Uma frase delata em Adelaide o que até agora vem se discutindo sobre o narrador: “Fosse filho dela, colocava nos trilhos em dois tempos. Sapecava uns tapas na bunda, um safanão nas orelhas, um beliscão nos vazios, e pronto!, virava gente”327. A voz que organiza a narrativa assume a visão de uma das partes. Só assim

explica-se que o narrador incorpore o pensamento da empregada.

Se algo fica claro em “O barco” é o relógio em movimento (a preocupação pelas transformações): “Os dias deixavam-se arrancar nas raízes pelas mãos antigas do Marlindo e pelas mãos neófitas, empapuçadas de calos-de-sangue do Luzimar”328

. A imagem antecede um silêncio e o olhar artificialmente tranqüilizado de Osvaldo. Marlindo ausenta- se e Luzimar, pela primeira vez durante a narrativa, fica a sós com o paciente. Enquanto Osvaldo diz ao vento que não sai de casa porque a mãe sente vergonha dele, o menino brinca na beira do rio. Reafirmando (e antecipando) o final/clímax do texto, Osvaldo comenta se sentir melhor em casa, “lá fora... é muito perigoso”329

.

A descrição de um bordel é o objetivo do trecho número doze. Romualdo vai até a Casa Branca em um Aerowillys que estaciona no terreiro. Pesquisando a referência, descobre-se que o modelo de quatro portas foi produzido no Brasil entre 1960 e 1968, ano em que a Ford compra a Willys e o Aero adquire as feições do Ford Galaxie330. A história

se aproxima da década de 1960. O dia que Romualdo leva o filho, a dona do prostíbulo reconhece o cliente: “(...) é seu filho? Meu Deus, é um homem já!”331

. Só nesse momento o leitor confirma os rumores sobre a personagem. Com a circulação pelo interior da casa se

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 79-90)