• Nenhum resultado encontrado

Agora ou nunca

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 126-132)

A palavra “guinada” define bem a parte da vida de Vanim que é dada a conhecer em “A decisão”. O termo, que vem da navegação, se utiliza para referir a alteração imprevista de rumo que sofrem as embarcações em alto-mar. A mudança que vive Vanim, esposo de Zazá, na décima história de O mundo inimigo, é uma transformação e uma resolução intempestiva que o obriga a reavaliar em questão de segundos (quando não se pode mais desfazer o rumo) o valor do que tinha. No primeiro volume de Inferno provisório, o empregado da fábrica é apresentado como morador do Beco do Zé Pinto (em “O alemão e a púria”). Na última história desse livro, Vanim se desloca em uma Gulliver cinza e é mencionado como vizinho de dona Conceição, encarregada da limpeza da casa do professor Pretti. Na história que protagoniza -que abrange da solteirice à procura de um novo horizonte- o moço é descrito como galanteador, andarilho e violonista amateur. Seus gostos se reduzem à farra e aos pássaros. Nasceu pelos lados de Miraí (mas “segundo as circunstâncias” se identifica como “de Ligação de Ubá, Santana de Cataguases, Laranjal, Dona Eusébia ou, por fim, do Sinimbu”522) e não sente nem desgosto nem entusiasmo pelo

trabalho.

Apresentada também desde a época de solteira, Zazá trabalha como operária de tecelagem na Industrial. É a quarta filha dos sete de Zé do Carmo e Rita. A carga fraternal a obriga a abandonar os estudos para contribuir com o orçamento familiar. Ler fotonovelas, escutar o rádio e desfrutar da companhia de um gato, contam-se entre as suas preferências. A sua primeira aparição no Inferno provisório acontece em “A solução”, a história de Hélia. Ali, a moça é pontuada como parte da paisagem -um procedimento que Luiz Ruffato coloca em prática de forma recorrente: “(...) a musica irradiada da casa da dona Olga; as

pueden ser pulcros funcionarios. El tormento más atroz no es otra cosa de ultratumba, sino de la vida. (...) Esos sí son infiernos aterradores, los creados por la mano del hombre”, pp. 19-21.

521 Corresponde à história “A decisão”. 522 Ruffato. Op. Cit., p. 147.

127

corredeiras do Rio Pomba; a conversa da Zazá com a Hilda, recolhendo a roupa do varal”523

.

Diferenças à parte, o galã e a operária de tecelagem se apaixonam. Sobre eles pesa (é possivelmente uma das discussões de fundo) a conduta persuasiva de Vanim, que inventa uma mentira atrás da outra para materializar a sua vontade. A invenção determina sua forma de agir e seus argumentos (escudados na necessidade de se “proteger dos outros”) sempre encobrem motivos meramente individuais. Porém, se propõe a mudar assim que conhece Zazá. Pede-a em casamento, promete encontrar (e consegue) ocupação fixa na Manufatora e assume o operariado embora sonhe com ser encarregado. A história começa em um maio e termina em um novembro, desde que se conhecem até que ele abandona Cataguases. A voz narrativa faz do casamento um momento delicado e ágil, que lembra os matrimônios da década de 1970: “Véu-e-grinalda, terno-e-gravata, choro no altar, tremedeira na hora de botar aliança, chuva de arroz, latas amarradas no pára-choque do carro-de-praça, lua-de-mel em um hotelzinho em Leopoldina, um sonho!”524.

Fora da casa paterna, Zazá passa a viver com Vanim em um barraco do Beco do Zé Pinto. Abandona a fábrica, consagra-se à casa, cuida das panelas e de si. Apesar da dedicação do esposo (a música e a farra aparentemente ficaram no passado), Vanim se sente incompleto. Essa incompletude adquire característica de problema mais ou menos um ano após o casamento. Um domingo -antes das seis horas e depois de preparar o café- da-manhã-, o moço escuta um segmento do programa Meu Coração Sertanejo na Rádio Cataguases. As vozes -que desatam uma revolução no antigo violonista- vêm de um canto vizinho: “Sentiu um troço esquisito uma gastura. O tempo correndo desembestado, e ele ali, feito bobo, fazendo o quê com a vida que Deus, em sua infinita bondade, lhe tinha dado? Burro-de-carga, trabalharia até morrer, sabia, viriam filhos, aí, danou”525. O condutor

do programa, Edegar de Souza526, será um dos interlocutores importantes de Vanim. E a

sensação de “falta”, o motor de “A decisão”. Pode não se concordar com a “solução” da personagem, mas o vazio é inquestionável.

Das minudências colocadas pelo narrador se podem tirar observações interessantes. A frase a seguir é um bom exemplo: “Galinhas cantam, cachorros latem, bois berram, porcos grunhem, passarinhos pipilam. Ditão e Ditinho. Natanael e Mariinha. Zico e Zeca. Vanim... Vanim. Vanim! Será que ainda sei arranhar alguma coisa?”527

. A cada animal

523 Op. Cit., pp. 64-65. 524 Op. Cit., p. 148. 525 Op. Cit., p. 149.

526 Op. Cit. A escrita do nome (Edgar) aparece “oralizada” (Edegar). 527 Op. Cit.

128

corresponde um verbo, uma ação referente ao que naturalmente “é”, ao tema da essência. Continuam três duplas de música sertaneja e por fim um nome. Vanim não é uma exceção, seu verbo (seu desejo) é cantar. Após despendurar o instrumento de fininho, Vanim vai ligeiro até a Praça Rui Barbosa e reconhece o prédio da estação. Mordido pela vontade de realização, retorna às oito e trinta. Na volta, a esposa conversa com dona Zulmira. O intercâmbio do casal seria natural se tudo o que Vanim comentou não fosse invencionice: por onde você esteve?, no programa de seu Edegar, o locutor lhe procurou a pedido de um terceiro, precisa de novos talentos. Eis a razão pela qual Vanim diz ter feito uma primeira apresentação (que não aconteceu) em homenagem à esposa. Um pedido sela o desfecho desse diálogo:

-Domingo que vem você vai? -Ele me chamou.

-Você vai? -Por mim...

-Se você quiser, então... Mas, promete que não vai gandaiar? Que vai continuar não perdendo hora na fábrica?

-Perder hora? Eu? Assim você até me ofende, Zazá! -Desculpa, Vanim, falei por falar...

-Está bem, Zazá, mas até parece que você não me conhece. Por mim, sinceridade, eu continuava no meu cantinho, sossegado...

-Não, não, vai sim. Vai ser bom para você. -Já que você insiste...

-Bom, deixa eu adiantar o almoço. E colocou o avental528.

Notem-se palavras como “gandaiar”, “sinceridade”, “conhecer” e “ofender”. Todas apontam para a credibilidade de Vanim. De início, ele pede que a esposa não comente a notícia. Ela aceita desde que possa escutar o programa em um rádio próprio. Pacto feito, o operário vai até o botequim com o violão sob o braço. A imaginação, entretanto, se desdobra nos louvores e elogios dos ouvintes, nas incontáveis cartas de seguidores endereçadas ao astro, nos autógrafos. Tão grande é o reconhecimento, que Zé Pinto se vê obrigado a pedir (na fantasia) que procure outro teto.

Na segunda-feira seguinte é acordado pelo apito da fábrica. Perde a hora de entrada e volta em casa no meio-dia. Zazá suspeita, Vanim desconversa. A história se repete outro dia da mesma semana, não às seis mas às onze e meia. Os atrasos lhe acarretam uma chamada de atenção, mas é salvo pelo final de semana.

Sábado à tarde, o moço vai até a Rádio Cataguases. Por meio de um assistente, descobre que Edegar de Souza é de Sinimbu e pede para falar com o “conterrâneo”.

129

Através do vidro do estúdio, reconhece o “alvo” e examina o processo de gravação. Em todo momento Vanim pondera as suas possibilidades (de enrolar, conduzir a conversa a seu favor, convencer). Na hora de estreitar as mãos, o “cantor” assegura que até os fiéis faltam à missa para escutar Meu Coração Sertanejo. Por ali enveredado, convence Edegar do sucesso que o programa tem na Vila Teresa. Seu sonho -continua- é cantar no programa. Não em vão é conhecido como Garganta de Ouro, mas prefere ser chamado pelo nome artístico “Vanim de Sinimbu”. De volta em casa, conta para a esposa que o locutor o chamou para que se apresente no programa, dia seguinte. Contente, Zazá mostra ao moço o aparelho Pioneer que pediu de empréstimo em uma casa vizinha.

Se a descrição do casamento remetia à década de 1970 de uma forma quase aérea (como uma reminiscência que se identifica, como um sinal que delata uma época sem saber exatamente como), as roupas que Vanim utiliza domingo cedo para ir até a rádio explicitam a datação em seu esplendor: “vestiu sua melhor roupa (calça boca-de-sino vermelha, camisa de manga-comprida amarelo-ovo, sapato cavalo-de-aço), emplastrou o cabelo de gordura- de-coco, (...), envolveu o violão numa coberta”529

. O modelo do sapato é uma referência à moda herdada da personagem de uma telenovela de Walter Negrão, transmitida pela Globo na incipiente década de 1970. Quer dizer: na época da ditadura, durante o governo Médici. O livro Almanaque Anos 70 inclui a referência: “Em 1973, um personagem vivido por Tarcísio Meira na novela das oito deu a todos os homens a licença para usar salto, graças ao modelo de sapato de motoqueiro que ficaria conhecido pelo nome da novela -Cavalo de Aço”530. Produzida em preto e branco -como se observa nos poucos vídeos disponíveis no YouTube- a telenovela contava a história de Rodrigo Soares, um moço que procura vingar o assassinato dos pais. A venda de madeira é o principal sustento do lugar onde transcorre a trama (a cidade fictícia de Vila da Prata, no interior do Paraná). O grande beneficiário do negócio é Max, latifundiário com longo passado na região. Rodrigo trabalha como maquinista e lidera uma revolta contra a exploração do patrão (uma referência à reforma agrária, rapidamente cortada pela censura). Com especial dramatismo, a voz da apresentação anunciava: “Na terra de ninguém, a força é um direito e o terror é a lei. (...). Cavalo de Aço, a luta de um homem contra tudo e contra todos. E ele estava disposto a enfrentar o mundo em seu... Cavalo de Aço”531.

Na estação, Vanim se depara com duplas que aguardam o momento de cantar. Edegar sai do banheiro, eles se cruzam e o conterrâneo de mentirinha é convidado ao

529 Op. Cit., p. 158.

530 Ana Maria Bahiana, Almanaque anos 70, 2006, p. 32.

130

“aquário”. Dentro, o operário inventa que uma emissora carioca está interessada no trabalho da emissora mineira. Que essas pessoas, da Rádio Tupi532, ouviram o programa em um posto de gasolina e deixaram (com o Presidente) um cartão para estabelecer logo o contato. A mentira cresce e se expande como uma bola de neve. Semeada a curiosidade (objetivo cumprido), o esposo de Zazá dá a entender que passava apenas pela estação (é parte do plano):

-Uê, você não vai se apresentar?

-Quem sou eu, seu Edegar?! Aí fora só tem cobra criada...

-Não, você não vai fazer uma desfeita dessas! Pode ir se preparando... -Bom, seu Edegar, se o senhor insiste...533

Antes de mostrar “ao que veio” e a partir de uma conversação com Edegar que não acontece, Vanim Cruz se permite algumas recomendações para os “colegas de estrada”. Ditão e Ditinho darão que falar, Natanael e Mariinha tem caminho para percorrer, Zico e Zeca precisam se esforçar nos agudos e ele -inflado de orgulho e inventando sem limite- irá para o Rio de Janeiro em resposta a um convite da Chantecler534. Acrescenta ainda que a

gravadora teve de implorar e que, a par de tudo, Edegar o convida para uma apresentação no programa. Um espaço em branco, visível, separa a cantoria do retorno ao beco.

Zazá escuta Meu Coração Sertanejo e recebe o recado do marido. No botequim, antes de chegar ao barraco, o mais novo cantor da vizinhança recebe um elogio de Zé Pinto e parabéns dos presentes. Celebram, mas Vanim se recusa a beber para proteger a voz. Zazá o recebe comovida e diz descobrir só agora que o marido tem família em Sinimbu. Com o pensamento longe da fábrica, ele responde que seu maior sonho é ser um artista “daqueles que tem disco com nome na capa”535. Com os pés no chão, Zazá entende

a fantasia como um exagero e, de certa forma, prevê algo errado: “Quando você fica assim, com esse olho-de-peixe-morto... boa coisa não sai...”536.

A apresentação na Rádio Cataguases muda o moço. A rotina do trabalhador é substituída pela rotina do artista. O tempo de folga é para o violão. A fábrica perde importância. Demora no botequim. Conversa com o Presidente sobre o Rio de Janeiro, que ainda não conhece. E pede a Sá Ana remédios para a voz, até que meses depois “sai de

532 Fundada no Rio de Janeiro em meados da década de 1930. 533 Ruffato. Op. Cit., p. 159.

534 De fato, um dos cinco selos fonográficos da fábrica de discos Gravações Elétricas S. A

(cuja história, com esse nome, existe desde os primórdios da década de 1940). Disponível em: http://www.millarch.org/artigo/continental-sua-historia-gravada-fundo-dentro-da-mpb. Acesso em: 26. set. 2011.

535 Ruffato. Op. Cit., p. 162. 536 Op. Cit., p. 163.

131

cena” (da conversa dos vizinhos). As demoras apontam para uma espécie de fadiga e Vanim é tomado pela idéia de que “Cataguases é pequena demais para o seu talento”537

. Ciente de que a sogra tem a intenção de visitar os parentes do Recreio (e de que nem o sogro nem os cunhados acompanharão a senhora), Vanim convence Zazá de ir junto com a mãe. Promete não visitar mais “a rádia”538

para evitar problemas no casamento, jura voltar a ser o trabalhador de sempre e surpreende a moça com o plano de um filho. Tanto zelo, como intuiria Zazá, assinala um caminho suspeito.

A viagem acontece em novembro, oito meses depois de Meu Coração Sertanejo. Vanim as acompanha à rodoviária e na volta se detém no botequim, o desaguadouro de penas da Vila Teresa. Pede uma cachaça e pensa: “Por onde começar?”539

. A bola de neve se aproxima: que foi chamado de uma gravadora no Rio de Janeiro, que parte essa mesma noite, que vai receber uma dinheirama pelo disco, que precisa vender a mobília, que precisa de dinheiro (talvez a única verdade da lista), que tudo bem seu Zé não pode lhe emprestar, que ele mesmo pode ser o comprador temporário de sua mobília, que ele paga o dobro pelo resgate das coisas quando voltar do Rio (no máximo um mês), que lógico... que Zazá sabe de tudo. A vistoria de Zé Pinto é possivelmente a melhor caracterização da situação econômica do par da história:

(...) uma cama de casal (“Cupim! Isso é pó de cupim, Vanim!”, “Isso é poeira, seu Zé, poeira!”); um colchão de capim (“Meio estragado”, “Muita função, seu Zé”); “uma penteadeira com três gavetas (“Com tudo que tem dentro dela, um negocião!”); um crucifixo (“Bento, quem benzeu foi o bispo lá de Leopoldina”); um violão (“Um violão?, endoidou?, vender meu ganha pão?, pode abater da lista”); um guarda- roupa (“As portas estão emperradas, dessa aqui caiu a lingüeta da dobradiça”, “Coisa fácil de arrumar, né, seu Zé?”); cinco gaiolas: dois coleirinhos (“Chué, chué”, “Que nada, cantam que é uma beleza!”), um sabiá (“Uma dó ter que deixar ele seu Zé, uma dó!”); dois canários-da- terra. “Vamos ver a cozinha”: uma mesa-de-fórmica vermelha com duas banquetas (“Novinha, comprei não faz muito tempo”); duas prateleiras, “E a bicicleta?”, “Também! Pode fazer as contas”. Seu Zé Pinto rabiscou a folha com um lápis, desfeitando aritméticas540.

O inventário que faz do barraco o lar deste casal se resume a peças medianamente funcionais com deteriorações visíveis: uma cama com cupim, um colchão gasto, um sinal de devoção católica, uma peça de mobiliário feminino, um armário que precisa de conserto, uma mesa para dois, o meio de transporte de um operário e pássaros. É a vida de Vanim e Zazá resumida em uma lista de mercado. Zé Pinto pensa, faz uma oferta e Vanim aceita. As

537 Idem ibidem. 538 Op. Cit., p. 164. 539 Op. Cit., p. 165. 540 Op. Cit., p. 167.

132

conseqüências só chegarão bem depois na forma de sensações não verbalizadas, de pensamentos. Dia seguinte cedo, na rodoviária, Vanim compra uma passagem, aguarda angustiado a sua hora e pega o ônibus. Uma pergunta o atormenta na medida em que se afasta: “Meu Deus, o quê que estou fazendo?”541. Passa pela sua mente o que diria ao motorista

para voltar, o que diria ao dono do beco para recuperar seus trastes. De maneira irrefletida, resolve procurar em outro lugar esse “algo” que lhe dará sentido à vida.

Em um ensaio sobre o tédio, o filósofo sueco Lars Svendsen explica que o vazio existencial pode ser associado à falta de significado. A sensação de plenitude está longe do Vanim-operário. Para esclarecer seu argumento, Svendsen formula uma discussão a partir das propostas do metafísico norueguês Peter Wessel Zapffe. Diz o filósofo no ensaio:

(...) que uma ação ou algum outro fragmento da vida tenha significado quer dizer que nos dá uma sensação muito específica, que não é fácil traduzir em pensamento. Seria talvez algo como uma boa intenção que animaria essa ou aquela ação: uma vez atingido o objetivo, a ação seria ‘justificada’, equilibrada, confirmada -e o sujeito recobraria a calma542.

Perturbado e carente, Vanim precisa reencontrar a sua especificidade. As suas mentiras são até certo ponto ingênuas, pois a sua consciência não é pérfida, nem deseja provocar catástrofes. O mau hábito de mentir simplesmente faz parte de sua natureza, da busca por um estar-bem com o mundo e da procura por uma forma de viver que lhe forneça direção a seus dias.

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 126-132)