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Que uma lavadeira tenha por ofício restituir a plenitude aos tecidos é convenção universal. Que uma mulher de origem humilde (como muitas lavadeiras) passe os dias obrigada a conviver com a hostilidade de generalizações apressadas (entenda-se: toda ex- dama-da-noite é dispensável) é outro cantar. Ao menos é o que Luiz Ruffato parece exprimir quando por fim abre as portas da “casa” de Bibica na quinta história de O mundo inimigo. Muito se fala da “personagem coletiva” do Inferno provisório. No entanto, quando examinado por partes, o romance apresenta aproximações incomuns aos indivíduos de cada um de seus numeradores. Numeradores e denominadores. Esta é a décima primeira história das trinta e oito que compõem a pentalogia.

378 Ver p. 42 e p. 72 de “O mundo inimigo”.

379 Ruffato. Op. Cit. As três citações estão na página 72. 380 Corresponde à história “A mancha”.

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As manchas que “sujam” os dias desta jovem mulher são de natureza variada. O esquecimento inesperado, incompreensível, das feições de um filho que acabou de falecer é a primeira de tantas. Na idade dos dez anos, entusiasmado com a arte de fazer pipas, Marquinho é atropelado por um cata-níquel. A colisão acontece “uma segunda-feira de agosto”381

e é anunciada, sem rodeios, na página inicial. Contravindo o esperado, a especificidade temporal sublinha o absurdo da ocorrência: poderia ter acontecido qualquer dia, de qualquer mês, de qualquer ano; a dor não cessa. Mãe e filhos (Marco e o caçula Jorge) moram no beco. Começa a adquirir sentido a menção a personagens tão bem delineadas como Dusanjos (que chega do culto) e Hélia, com duas amigas (o leitor rapidamente reconhece o cochicho). Zunga, o filho mais velho de Bibica, chega da Ilha e é mencionado pela primeira vez. Marquinho está sempre pronto para uma traquinagem. Em uma ocasião, Zé Pinto lhe chama a atenção: “Êta menino atentado! Um dia desses

ainda se esborracha no chão!”382. Uma manivela, uma lata de grude, rapé encaixotado, uma “bola-de-meia” e um saco de biloscas são os tesouros do especialista em papagaios.

Mais uma vez encontra-se o leitor frente a fragmentos de temporalidades diferentes, separados por espaços em branco. O segundo -por exemplo- se apresenta entre parêntesis e conduz o leitor a um momento prévio ao do cata-níquel (o desenlace). É uma lembrança emoldurada por hastes curvas. Ao invés de perguntar pela cegonha, o menino (que se dirige à mãe pelo nome) quer saber o que há de certo em aquilo de ter chegado com a enchente. Questão de vida ou morte entre os coleguinhas, precisa saber que fim levou o pai (nulo até esse momento). Pequenas frases descobrem o pensamento da lavadeira, dando a entender que inventa uma resposta no ato. O pai foi para a guerra e morreu por lá, problema resolvido. Uma frase tragicômica fecha o parêntesis: “Os meninos zombaram de mim, diz- eles que no Brasil nunca teve guerra”383. É de esperar que as histórias do pai e da

maternidade solteira se desdobrem em segmentos vindouros.

A descrição do ofício de Bibica delimita o retorno ao momento do acidente. Suas atividades diárias se resumem a bater a roupa de avental. Um sonho com dentes podres384

vaticina a perda sem reparo. Vale a pena se deter na precisão com que o escritor constrói o acidente e a chegada da mãe ao lugar dos acontecimentos:

381 Op. Cit., p. 75.

382 Idem ibidem. 383 Op. Cit., p. 76.

384 No Brasil, sonhar com dentes podres prenuncia doença grave ou morte. O sonho

também pode significar que a pessoa está “pouco confiante, não se sente capaz de fazer algo”. Juliana Vines, “Psicólogo cria ranking dos sonhos mais populares”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/969683-psicologo-cria-ranking-dos-sonhos-mais- populares.shtml. Acesso em: 10 set. 2011.

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Zumbi, se desvencilhou, um caminhão de toras encostado em frente à mercearia do seu Antônio Português, um cata-níquel parado, na direção contrária. Arrastando pernas de chumbo, abriu uma clareira no ajuntamento e se deparou com o corpinho caído sob as rodas do ônibus, uma poça de sangue, a cabeça esmigalhada, o sol escureceu385.

Mais um recuo cronológico esclarece como foi que a moça (afastada do bordel) chegou ao beco. Com muito esforço, Bibica convence Zé Pinto de lhe ceder um barraco. A fama da vida-alegre atrapalha a sua movimentação em Cataguases, “uma mancha que não saía nem esfregando com todo o sabão do mundo”386. Apesar de ter as contas em dia (do

aluguel mensal e a pena d’água, ao locador e a lenha quinzenal de Homero), a troca de ofício não permite que se desvencilhe da nódoa na reputação. O dono da mercearia (cujo nome é anunciado no momento do acidente, não por acaso) tira proveito da debilidade da freguesa. Salvo ela, todos pagam por partes. A moça repara na privação e, necessitada, reclama. Na medida em que a narração avança, as “peças” vão se encaixando. Saber, por exemplo, que ela fuma cachimbo só será de utilidade para atar os laços de uma cena futura. Elos como este assinalam o pensamento fundo, preparado, arquitetado, de cada recurso por parte do autor. Configurado como um assomo ao universo íntimo da personagem, vários elementos textuais (frases, palavras) concentram uma dose maior de significação.

“Ó senhora dona Bibica!, bons dias! Como andas?”387

. A fala portuguesa pertence ao merceeiro. A prova de fogo (do crédito) é um litro de querosene. Bibica anuncia o pagamento nos próximos dias e percebe a dúvida do vendeiro em inaugurar uma página do caderno com seu nome. Fiada a venda, Antônio começa a se mostrar gentil demais com Bibica. Quando sós, manteiga derretida. Na frente de outros clientes, zelo nenhum. Quase convencida de que namorar não é para ela, a lavadeira agradece as atenções e fica contrariada. Uma tarde Antônio Português a convida a cruzar o umbral que separa o balcão da despensa. A intenção é resolver “um negócio” lá trás. A proximidade lasciva que irrompe no corredor se dá nos seguintes termos: “Dona Bibica’, susurrou, envolvendo-a em seus braços, o gosto de fernete à força se misturando ao de fumo ordinário”388.

O envolvimento será compreendido por quem identifique o fumo da moça com a bebida do merceeiro. “Fernete” (que não aparece no dicionário Houaiss) é a colocação por escrito (a escrita oralizada, por sinal) de uma bebida muito conhecida na Argentina como “fernet” ou “ferné”. Trata-se da maceração de uma mistura de quarenta ervas e especiarias

385 Ruffato. Op. Cit., p. 77. 386 Idem ibidem.

387 Idem ibidem. 388 Op. Cit., p. 78.

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(louro, absinto, casca de laranja, ginseng, erva-de-São-João, sálvia, óleo de hortelã e açafrão) em barricas de carvalho, em uma base de aguardente de vinho. Um dado lexicográfico chama a atenção: visto o extenso uso do objeto e da palavra, o dia 03.09.2008 encaminhou- se à Academia Argentina de Letras a solicitude oficial para que o vocábulo seja incorporado no dicionário389. Voltando ao beijo, porém, Antônio solta a moça que se encontra à beira do grito. Acanhado, o estrangeiro inicia um lamento interminável argüindo que a esposa (Filhinha) sofre dos nervos, que a rabugice, que o futebol proibido, que ela está cada vez menos interessada na “cama” enquanto ele ainda tem “vontades”. Dama-da-noite no passado, ela coloca distância e evita passar pela venda, embora a medida se traduza na falta de víveres. Quem assume o exercício da proximidade e da distância (dos fatos que estão sendo contados) entende os processos sociais em jogo, as negociações, as pequenas chantagens, as trocas, as compras, as vendas. As pressões grandes são exercidas pelos Prata, mas as menores por quem pressionar pode (caso do merceeiro).

Em algum momento, Antônio promete casa para Bibica (assim que os médicos de Juiz de Fora autorizem a alta de Filhinha). A esperança e os presentes de encantamento infundem uma mudança na moça, que começa a considerar (vistos os fatos) uma ressalva para o amor. Católica devota, a lavadeira pensa muito durante a missa das sete. Na Capela da Casa da Saúde faz um parêntesis (literal na escrita) para pedir proteção celestial. A experiência lhe diz que Antônio pode ser mais um admirador que perderá o interesse após o encontro a dois: “homem é tudo a mesma coisa chupa a laranja joga fora o bagaço já conheço meu deus quantos deitaram na minha cama falaram bobagens na minha cabeça fosse lá eu acreditar estava perdida390”. Bibica sabe que um matrimônio de anos, a consolidação do lar e os filhos valem

seu peso em ouro. Disquisições, rezas e observações ocupam seu pensamento no templo: “primeira fila véu na cabeça faixa de filha-de-maria lá atrás de pescoço levantado os pobres remediados e ricos mais perto do altar tem gente tão sem asseio”391. A fotografia literária que Honoré de Balzac

materializa com tanto tino em O Pai Goriot (a divisão de classes na decadente pensão Vauquer) é empregada de maneira sucinta por Luiz Ruffato no comentário da personagem sobre os fiéis de uma modesta igreja de hospital.

Sem contenção possível e a caminho da reza diária, Bibica chega um dia à venda. Apesar da porta fechada, o som do rádio delata a presença de Antônio. Sabe que deve ir embora, mas o corpo lhe trai. O bem-estar que procura se reflete no dono da mercearia, e

389A história completa está disponível em: http://fernetaldiccionario.com e em:

http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2009/08/04/voce-pensa-que-fernet-agua-fernet-nao-agua-nao- 210988.asp Acessos em: 15 mar. 2011.

390 Ruffato. Op. Cit., p. 79. 391 Op. Cit., p. 80.

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rapidamente o pensamento de “Meu Deus”392 se transforma em “só pode ser coisa do demo”393.

Entendendo por “demo” a vontade, o incontrolável e o carnal, ponto alto no Inferno provisório. A coisa do demo se transforma em uma gravidez. Mais na frente, outro dia, se arrumará e caminhará até a mercearia com a intenção de dar a boa notícia ao pai. Na mercearia encontra Zé Bundinha, que percebe arrumação. Na segunda tentativa, mesmo dia, ela conta a Antônio o acontecido. O camaleônico vendeiro passa da cordialidade à cólera e a certeza da intuição se traduz em promessas falsas. Injustamente, a amante é acusada de querer “desonrar” a reputação do homem. As manchas borbulham no caminho da mulher: “De onde vens? Da lama! Uma prostituta! E entras aqui a me fazer despropósitos?! Ora, faça-me o favor! Ponha-se daqui para fora!”394

. Se um livro imaginário se traçasse o objetivo de perfilar a família monoparental-feminina sob o título How a single mom became a single mom395, este depoimento teria o devido lugar.

A lavadeira, que só assume o ofício após a gravidez, abandona a venda aos prantos. Se alguém no beco entende de lavar, esfregar, bater, enxaguar, quarar, estender, secar, recolher, passar e entregar, essa é Bibica396. As dúvidas sobre o primeiro filho crescem. Ignora se o menino nascerá bem, se atingirá algum nível de conforto na vida, se vingará. No tempo da barriga o Português viaja com a esposa além-mar, até a aldeia de onde saiu com quinze anos. Dois meses depois volta a Minas Gerais e fecha o Bar Nossa Senhora de Fátima para levantar a Mercearia Brasil, onde tudo acontece. Marquinho nasce setemesinho397 e sofre de resfriados com freqüência. A mãe sabe que o menino vive para fazer travessuras. Nunca faltam o roubo de frutas no quintal do beco, a levantada de saia das vizinhas, as entradas invisíveis no prostíbulo, nem a teimosia ao perder nos jogos, mas algo impede a reprovação da mãe. A reserva demonstra comiseração. Possivelmente seja expressão da culpa por ter omitido a identidade do pai.

Ainda gestante e no tempo das recordações, Bibica promete levar o filho para Aparecida do Norte “um doze de outubro”398

. Um acidente sofrido antes dos dez anos obriga a mãe a se questionar a promessa falha. Não tem folga nem para cumprir com os santos: sem dinheiro, com trabalho e cansaço de sobra, e ciente da distância entre as cidades, Deus teria de entender. As idas e vindas temporais contribuem para a compreensão das vivências de uma mulher de escassos recursos em diferentes facetas: ex-

392 Idem ibidem. 393 Idem ibidem. 394 Op. Cit., p. 82.

395 Como o ensaio de Stephen Greenblatt, Will in the world. How Shakespeare became Shakespeare. 396 Idem ibidem.

397 O termo, de uso corrente na língua espanhola, não é utilizado por Ruffato. 398 Idem ibidem.

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dama-da-noite, lavadeira, amante, vizinha e mãe-solteira. Daí a convivência (que em termos ficcionais parece quase diária) com cada personagem. Ruffato não procura tão somente a compreensão de um outro, ele quer que o leitor “reviva” as experiências das personagens.

Pelas explicações do narrador se descobre que o caixão do moço foi doado pela Prefeitura no dia do velório399. Bibica disfarça a penúria e passa a tarde dopada. O filho mais novo (Jorge) dorme em casa de algum vizinho. Zulmira, a primeira em saber do acidente, acompanha-a sentada em uma cadeira do barraco, “pingando de sono”400

. A esposa de Marlindo pede licença para dar uma olhada nos filhos, Hélia e Luzimar, então meninos. Tonta, a mãe de Marquinho escuta passos porta afora e acredita ter visto Antônio por minutos. A visão se desfaz no instante e Zulmira, que volta com um café para a colega de tanque, afirma não ter visto viva alma nas proximidades. Dois empregados da mercearia esfregam o calçamento com soda cáustica. A última mancha da listagem, a palpável, some quando o esquecimento torna fumaça o episódio doloroso.

O crítico literário inglês James Wood dedica um capítulo do livro Como funciona a ficção ao tema da personagem. Para ele, reconhecer as alteridades é aceitar a chance de aprender sobre os outros401. É uma forma válida de se instruir sobre universos e indivíduos

diversos e dos quais talvez não se esteja tão perto. Wood assume que a vitalidade de um ser literário está ligada a um sentido metafísico: “nossa consciência de que as ações de um personagem são profundamente importantes, que há algo profundo em jogo, o autor ruminando sobre a face daquele personagem como Deus sobre a face das águas”402

. O raciocínio do professor de Crítica Literária em Harvard sustenta a delonga de Ruffato em cada alma de Deus. Sim, espera-se a presença de um leitor com todos os sentidos em alerta. Mas apela-se ao entendimento histórico de um cidadão que, ao atravessar o “Inferno”, se torne mais humano e mais consciente da própria sociedade.

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 96-101)