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Meio dia com Zunga

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 109-115)

Lê-se do começo ao fim a sétima história de O mundo inimigo e com dificuldade se encontra explicação imediata para o título. Após um exercício de teimosia, uma interpretação começa a girar em torno do significado dessa encantadora palavra que é “Ciranda”. Um texto didático -assinado por Lúcia Gaspar, bibliotecária da Fundação

438 Esta visão (faíscas, corisco) enlaça a “Lamentação” ao final “Agonia”. 439 Op. Cit., p. 104.

440 Idem ibidem.

441 Em diferentes momentos do “Inferno”, o autor se detém em personagens que “não veem”.

Lembre-se a pergunta (e as conotações) com que começa “O segredo”, a história de Francisco Pretti.

442 Op. Cit., p. 106.

443 Apesar da comparação com Santa Catarina (no texto de Ruffato), a princesa que protagoniza a lenda

medieval chama-se Sabra. Matando o dragão e acabando com a ronda de sacrifícios, São Jorge salva a filha do rei. A pintura Casamento de São Jorge e Sabra, de Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), retrata o momento do encontro.

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Joaquim Nabuco- esclarece que o substantivo, naturalmente associado a um tipo de música, refere uma “dança comunitária que não tem preconceito quanto ao sexo, cor, idade, condição social ou econômica dos participantes, assim como não (tem) limite para o número de pessoas que dela podem participar”445. A relação entre esta manifestação

popular do Nordeste brasileiro e a vida de Zunga (filho mais velho de Bibica) não é evidente. Mas não se pode negar que tenham em comum a idéia de progressão: ambas são uma roda pequena que aumenta aos poucos com a chegada de novos participantes, um círculo coletivo que por todas as vias evita deixar alguém de fora. Na música, os versos e rimas são encadeados pelo ritmo dos instrumentos. Na história, o protagonista encadeia personagens e lugares conhecidos. Se como explica Leonidas Henrique de Oliveira446: “ninguém fica imune ao ritmo e balanço contagiante da ciranda”447, no texto de Ruffato

nenhuma personagem fica imune aos desatinos de Zunga.

A sua primeira aparição no Inferno provisório acontece em “A solução”, parte de Mamma, son tanto felice dedicada a Hélia. Enquanto a moça conversa com duas amigas (no quarto que habita no Beco do Zé Pinto), “Zunga passa sob a janela, falando alto”448

. A segunda vez que o jovem aparece é no relato sobre Marquinho, um de seus irmãos. Em “A mancha”, os “tropicões do Zunga vindo da Ilha a desoras”449 compõem a paisagem. A

presença do moço como “ajudante” do doutor Normando (o mais próximo que chega de uma atividade produtiva) é marcante em “Jorge Pelado”. Antes de adquirir a espessura das individualidades, então, o leitor intui em Zunga a marca da infração. Tudo o que ele faz tende para o lado da falta (e para os sentidos de seu nome no dicionário: perturbação, conflito, confusão, tumulto). O narrador, porém, não o julga. Ao invés de opinar, mostra. Em um livro onde abundam as personagens lutadoras450, um homem sem ocupação definida (que parece existir apenas para se aproveitar de outros) chama a atenção.

As páginas de “Ciranda” estão divididas em dez trechos numerados de forma crescente. Cada um descreve um episódio na vida de Zunga. Mais do que na vida, na metade de um dia qualquer. O primeiro filho da lavadeira é descrito como adulto, e o dia em que tudo acontece ele acorda com uma terrível ressaca, entre 13h e 13h30, pedindo

445 Lúcia Gaspar, Ciranda. Recife: Fundação Joaquim Nabuco. Disponível em:

http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=519&Itemi d=182. Acesso em: 28 ago. 2011.

446 Autor de um trabalho intitulado Ciranda pernambucana, dança e música popular.

447 Leônidas Henrique de Oliveira. “Ciranda Pernambucana uma dança e música popular”, Monografia

apresentada ao Curso de Especialização em Cultura Pernambucana, Faculdade Frassinete, Recife, 2007, p. 7. Disponível em: http://www.ladjanebandeira.org.br/cultura-pernambuco/pub/m2007n06.pdf. Acesso em: 15 jan. 2011.

448 Ruffato. Op. Cit., p. 65. 449 Op. Cit., p. 75.

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água à mãe. Para tomar banho, para saber da toalha, para pedir a camisa nova... tudo é com Bibica. Enquanto se arruma, ela estica os lençóis e pousa a roupa limpa sobre a cama. A mãe anuncia que vai sair, adverte sobre a escassez de dinheiro, deixa uns trocados e muda o esconderijo do “cofrinho” que guarda pagamento do aluguel. Zunga se ajeita, guarda as notas e anuncia com o pensamento a atitude que se desdobrará no resto da história: “Mas isso não dá pra nada, ô velha muquirana, sô! Aonde ela enfiou o resto?”451. O cofrinho é descoberto

e o aluguel diminuído. A procura do esconderijo revela o tipo de moradia: um barraco com paredes rachadas, latas de biscoito reutilizadas como cofres, uma cadeira única e prateleiras engorduradas. Na primeira página de “Ciranda” (e como conseqüência da farra na véspera), a cabeça de Zunga roda. Por enquanto, “dançam”452

apenas Zunga e a mãe. Termina o primeiro fragmento.

De caminho ao bar, Zunga encontra Zé Pinto armando uma mesa de metal para jogar buraco. O jovem recusa mas conversa. A observação do dono do beco: “(...) aonde você pensa que vai, assim, todo prosa?”453 contradiz a resposta do moço: que vai

“espairecer”, “arejar um pouco a cabeça”454

. Frente ao botequim, ciente do que procura (uma incógnita para o leitor), finaliza o segundo fragmento. Na roda: Zunga e Zé Pinto.

A bicicleta para na Praça Rui Barbosa. O balconista do Bar Elite reconhece e cumprimenta o condutor. O diálogo evidencia que o destino de Zunga é a matinê do Cine Edgard; tudo indica que são aproximadamente 15h. Diante da estranheza que desperta um adulto vendo um filme a desoras, Zunga “explica” que realmente vai ao cinema para dormir. O atendente tenta entender: “Pra dormir? Por que você não dorme em casa?”455

. Zunga desconversa e pede para cuidar “(d)o camelo”456. O cruzamento entre a praça e o

cinema é pormenorizado. Chama a atenção o movimento da rua em destaque. Com as luzes apagadas, desde a última fileira e ao lado de um menino, Zunga é persuasivo. Começa oferecendo balinhas e depois abre o zíper da calça, confiando em que o infante concordará com o apaziguamento de seu apetite sexual. A fuga da vítima o surpreende. Entre o desvio e a recomposição no banheiro, o adulto cambaleia, sente dor de cabeça, que vai explodir, que vai cair, que vai morrer. Preocupa-lhe a possível denúncia. No “baile” hipotético desta análise estão Zunga, o balconista e um menino sem nome. Fim do terceiro fragmento.

451 Op. Cit., p. 111.

452 Entenda-se “dançar” como sinônimo de “agir”, “participar”. 453 Ruffato. Op. Cit, p. 111.

454 Op. Cit., p. 110. 455 Op. Cit., p. 112.

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Marlindo e Zunga aparecem na praça. O primeiro no carrinho de pipoca, o segundo cumprimentando-o antes do final da matinê. Se a duração do filme era de cerca de duas horas, nesse momento devem ser quase 17h. Mais ou menos uma semana após esse intercâmbio, Marlindo será batizado em um novo culto no Pomba. Apesar de concordar com a conversão em um trecho ulterior, o filho de Bibica aponta tudo o que pode dar errado: Marlindo não sabe nadar, o rio está poluído por causa da Industrial, o cheiro é insuportável. Assinalar as falhas e imaginar, para si, a mesma possibilidade de salvação (mais na frente), se parece muito com a idéia de vaivém (e o vaivém é o movimento próprio da ciranda). O quarto fragmento termina com a interação entre Marlindo e Zunga.

O protagonista pede uma cachaça ao balconista do Bar Elite. É a primeira do dia na saída da matinê. Pede a segunda, esclarecendo que tem como pagar. Pergunta ao atendente se também é crente. “Católico”457, responde o moço. As duas primeiras bebidas do dia

caem nas suas mãos antes de 18h. Fim do quinto.

O bebedor passa pela frente do botequim na volta do cinema. Descontente com a atuação do Presidente no jogo de buraco, Zé Pinto convida Zunga para uma mão. Zé Bundinha e Zé Preguiça vão ganhando. A roda humana cresce. O filho de Bibica diz não ter dinheiro para jogar e Zé Pinto -que tem vontade- assume as apostas. Começam as condições: Zunga aceita desde que receba duas cachaças por partida. Desconfiado, Zé Pinto concorda. Às 18h30 acaba a diversão. Como quem não quer, Zunga mostra para o parceiro o curinga sob a manga. Enquanto riem, o moço faz mais um pedido. Explica que não almoçou e termina convencendo Zé Pinto de autorizar a saída de um pão com salame e queijo. Com o parceiro de jogo longe (claramente fugindo de novos pedidos), Zunga “completa” o jantar com uma cerveja. Diz que “Zé Pinto disse” e finaliza o sexto trecho.

Em um fragmento cujo estilo tipográfico causa confusão458, Zunga parece

conversar com o Presidente sobre as suas experiências sexuais. O diálogo logo se transforma em um solilóquio. O itálico, como se comprovará mais na frente, é uma indicação de que o protagonista está pensando. O pensamento gira em torno de suas façanhas sexuais: gonorréia aos catorze anos, estimulado o dia inteiro, reações animalescas de uma parceira em uma chácara, na Ilha todo fim de semana. Com a frase: “O Zunga não e mole, não, meu chapa!, é pedra-noventa”, chega ao fim o sétimo fragmento. “Pedra-noventa”, vale a pena explicar, é uma referência lingüística às décadas de 1970 no Brasil. Provém do bingo, cujas coordenadas são “cantadas” a partir de uma cesta de bolinhas. Dentro da cesta há noventa esferas. A última cantada, geralmente associada ao prêmio, é o momento que

457 Op. Cit., p. 115.

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todos anseiam. De forma coloquial, “ser pedra-noventa” significa “ser gente boa”, “do bem”. Desta vez o Zunga “dança” sozinho.

O oitavo fragmento começa ainda no botequim, onde Zunga termina uma cerveja e vai pagando uma cachaça. Está embriagado e não deve passar de 19h, pois fala-se de um “fim de tarde”459

. A bicicleta entra de novo em andamento, o condutor chega até à Ilha. No bordel conversa com Murrudo, encarregado do balcão e da segurança do local. Pede primeiro um “rabo-de galo” e depois pergunta por Cidinha. Corruptela da palavra inglesa cocktail (cock = galo, tail = rabo), denomina-se “rabo-de-galo” no Brasil à bebida preparada com pinga e vermute de qualidade duvidosa. O filho de Bibica se detém na imagem de Nossa Senhora Aparecida, atrás do balconista. No instante em que a moça aguardada chega, acontece mais um diálogo sobre crenças e devoções. Ainda no balcão, Cidinha e Zunga conversam sobre o acontecido na matinê. Ele, que procura uma confidente, omite a parte obscena do episódio e se alonga nos efeitos corporais: dor de cabeça, tudo se apaga, “uma doideira”460, “deixa para lá”461. Baianinha dança no meio do salão e Cidinha pensa:

“Vai começar tudo de novo”462. A definição de “ciclo” que Antônio Geraldo da Cunha registra

no Dicionário etimológico da língua portuguesa (“série de fenômenos que acontecem numa ordem determinada”463) se reflete no que está sendo contado. Com o pensamento, Cidinha parece

reforçar essa idéia.

Um pulo ao passado -o único desta narrativa, aliás bastante cronológica- fixa no tempo uma das primeiras aproximações de Zunga a crianças de sexo masculino. Bibica apenas contextualiza a situação pois se encontra no quintal, estendendo a roupa. Luzimar brinca na porta com um “caminhãozinho”464; na lembrança é um menino. Repete-se o

modus operandi “visto” no cinema. Utilizando doces como isca, o pederasta conta com a ingenuidade das vítimas. Após entrever a ameaça no colo de Zunga, Luzimar foge. Salva-se por quase nada. O filho de Bibica teme a repreensão do pipoqueiro. O temor é estranho pois ocasiona cambaleios, dor de cabeça, descontrole muscular, suor e sensação de morte, mas não impede a reincidência. Fim do nono.

De volta ao presente -e após uma frase de Cida que sugere continuidade entre os fragmentos oito e dez (“Vai começar tudo de novo”)-, Zunga propõe casamento à trabalhadora da Ilha. Estão no salão quando ele admite que deseja mudar (o que não significa que mude,

459 Op. Cit., p. 118.

460 Op. Cit., p. 120. 461 Op. Cit., p. 121. 462 Op. Cit., p. 120.

463 Verbete: “Ciclo”, p. 181. Rio de Janeiro, Lexikon Editorial Digital, 2007. 464 Ruffato. Op. Cit., p. 121.

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mas que reconhece um problema). Entende por “homem normal” àquele que trabalha na fábrica, compra um terreno, constrói uma casa, tem uma família, vê os partidos no campo e vai à missa aos domingos. Para Zunga a fachada é convincente. Para o autor do “Inferno”, em câmbio, existe só para ser demolida. Não porque as aparências enganem, mas porque escondem os tropeços, os desvios, os erros, o lado obscuro da história.

Em poucas linhas Zunga esboça várias promessas: mudar de vida, parar de beber e virar crente. No quarto da moça, o jovem desequilibrado adverte que a sua “cabeça roda”465. Nem um minuto se passa entre as firmes promessas e o escândalo. A frustração da

personagem (o que “é” e o que “foi”, em confronto com o que “gostaria de ser”) o leva direto a uma agressão. Invisível para Cidinha, a fúria se desata a partir de uma lembrança: uma vez que a polícia chegou na sua casa (possivelmente o episódio que ocasiona o desaparecimento/apagamento do irmão, Jorge Pelado). Ele imagina vozes e fica fora de si. Acusa Cida de ter chamado a polícia. A acompanhante pede socorro, grita que o acompanhante “ficou doido”466. A falta de juízo termina associada ao “giro”, e este à

“ciranda”. Murrudo entra, aplica uma chave e tira Zunga do quarto. Em um piscar de olhos, o delirante foge da Ilha. O último fragmento fecha com um diálogo que lembra os roteiros de teatro (nome sem hífen, dois pontos, fala):

Baianinha: “O Zunga não está batendo bem da cabeça não”. Valdira: “Ainda mais agora que ele ficou broxa”.

Murrudo: “O problema dele é a cachaça”.

Cidinha: “Será que ele não corre o risco de cair no braço-do-rio não, Murrudo?”

Murrudo: “Preocupa não. Ele conhece o caminho. De cor e salteado”467.

A história de Zunga encena então uma rotina, algo que começa e -ao invés de terminar- recomeça. De certa forma o leitor presencia um ciclo de mais ou menos doze horas na vida de um habitante de Cataguases, prestes a entrar na década de 1970. De acordo com o dicionário Houaiss, “ciranda” admite as acepções de passagem do tempo, decurso e movimentação. A pesquisa de Leonidas Henrique de Oliveira indica que os cirandeiros costumam ser “trabalhadores rurais, pescadores, operários de construção (e) biscateiros”468. Se algo têm em comum o texto de Ruffato e o baile de cunho nordestino é a

coincidência de “cirandeiros” em uma superfície delimitada: o pipoqueiro e seu filho, a lavadeira que foi mulher-dama, o segurança do prostíbulo, a atual mulher-dama, o dono do

465 Op. Cit., p. 122.

466 Op. Cit., p. 123. 467 Op. Cit., pp. 123-124.

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beco, os jogadores de buraco, um balconista, o atendente de um botequim e um adulto desocupado. Todos girando, se movimentando, ao compasso que a realidade lhes dita.

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