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O que apenas o leitor vê

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 42-52)

Mais de um tipo de fragmentação revela-se de súbito em Inferno provisório. Tripartite, a história de Orlando Spinelli é abrangida -no estilo faulkneriano- por mais de um ponto de vista: o de Zé (um dos filhos), o de Badeco (aparente motivador da tragédia) e o de Orlando. Nada teria de exagerado afirmar que esta é uma história de pontos de vista, onde cada parte recebe título na ordem das perspectivas: “Ritual”, “Fim” e “Tocaia”. Se o questionamento que se levanta em “Aquário” é a origem, aqui será o término.

Se a origem supera em amplidão a noção de começo (como se discutiu durante a viagem de Carlos e Nica), aqui a partida ressoará década após década no destino das personagens. Suscetível de uma disposição cronológica (exercício intuitivo, imediato, de quem lê), a ordem apresentada faz sentido. A preocupação por uma representação crível é plasmada no traço não-linear, mas só um exame detalhado -com o ouvido em cada palavra- ajudará a entender a lógica da escolha do autor.

Um moço de treze anos acorda em uma casa estranha. Assustado, observa e é observado. Repara no “teto de telhas vermelhas, os caibros e a cumeeira tortos, a parede sem reboque”116

. O curso da mirada no cômodo e a definição dos gestos recaem sobre o narrador onisciente: “Sentou-se na cama, enfiou os dedos no chinelo havaiana desbeiçado e quando ia levantar-se, disposto a colocar aquela situação em pratos limpos, o dia anterior veio à tona”117. É dezembro, segunda-feira. Na lembrança de Zé, o chefe-de-casa saíra

acompanhado por Badeco, por vezes filho por vezes agregado. O leitor é advertido sem rodeios: “os irmãos prepararam-se para o frege no fim do dia. Mas, algo saíra errado”118

. Maneco Linhares, nome que aparece na história inaugural do volume, e Rubens Justi informam à mãe (Assunta Finetto) sobre a morte do esposo, Orlando Spinelli. O lar é logo visitado pela vizinhança e o contato com a idéia da morte inaugura um estranho constrangimento no menino: “pela primeira vez em sua vida, sentiu uma apreensão

114 Ruffato. Op. Cit., p. 70.

115 Corresponde à história “A expiação”. 116 Op. Cit., p. 75.

117 Idem ibidem. 118 Idem ibidem.

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esquisita, uma sensação ruim, um desejo de que... seu pai... não, não... não podia pensar isso”119

.

Adormecido entre as “sombras adelgaçadas” que circulam quando alguém falece, Zé é carregado por Nilza até a própria casa. Na manhã seguinte (momento em que começa a narrativa), o filho de Orlando escuta dizer ao esposo de Nilza, acidentalmente, que “o enterro vai ser às quatro”120. À pergunta sobre o acontecido, a senhora corrobora que o pai

morreu. O esposo retorque: “Morreu nada. (...). Foi morto. Eu sempre falei que não se pode fiar em gente-de-cor”121. Em uma mistura de pensamento e verbalização, Zé

desconfia e procura uma explicação: “Por quê que o Badeco... Foi o Badeco?”122. Nesse ponto

desenha-se um triângulo funesto: uma transgressão, um suspeito e -como nesta história o ponto final não é o fim (tão só o início)- um leitor pego de surpresa por um começo circular. Aguardam-se, naturalmente, as minudências sobre o acontecido.

“Somente o fim de uma época permite enunciar o que a fez viver, como se lhe fosse preciso morrer para tornar-se um livro”: a observação, que remete às vivências destas personagens, é do pensador francês Michel De Certeau123. O perfil de Badeco, como aludido por figuras achegadas, dá a dimensão da época narrada, a História nos costumes. Em mais de uma oportunidade, o autor do Inferno provisório tem explicado que o projeto tentaria dar conta da história brasileira dos “últimos cinqüenta anos”124

, daí que o primeiro volume se configure sobre a década de 1950. Rurais, de meados do século XX125, as

referências são claramente racistas: “Preto e traiçoeiro, sempre falei”126

(comentário do esposo de Nilza); “tição” que “deve ter parte com o diabo”127 (boato); “passaram a noite

caçando”128 (notícia), “se não fosse o tio, ele não tinha nem vingado... Tinha é virado

comida de urubu129” (lembrança ressentida), “Preto ronhoso! Aquilo é o capeta” (insulto)130. O problema, porém, é mais complexo já que -quando sóbrio- Orlando

decretava: “Ele é da família mesmo. É um Spinelli preto!”131. E sob a influência da bebida,

119 Op. Cit., p. 76.

120 Idem ibidem. 121 Idem ibidem. 122 Idem ibidem.

123 Michel De Certeau, A invenção do cotidiano (vol.1: Artes de fazer), Petrópolis/RJ: Vozes, 2004, p. 302. 124 Do século XX.

125 A referência direta a um ano ou data específica não está expressa na história. Porém ao saber que Josué,

filho mais velho de Badeco, tem vinte e cinco anos; ao imaginar que o empregado possa ter chegado de dez ou doze anos a casa dos Spinelli; ao especular que possa ter-se assentado por volta dos vinte em São Paulo, as contas remetem aos anos de 1950-1955.

126 Ruffato. Op. Cit., p. 77. 127 Idem ibidem.

128 Idem ibidem. 129 Op. Cit., p. 80. 130 Idem ibidem. 131 Op. Cit., p. 79.

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as maneiras desandavam até o tempo da escravatura. Palavra sonora, badeco não aparece na versão eletrônica do Dicionário Houaiss, mas apresenta uma afinidade com badameco, que significa “homem jovem” (do latim vade mecum, vai comigo). O dicionário virtual inFormal132 admite a seguinte acepção de badeco: “Pessoa que faz tudo o que outros

mandam (...). Geralmente aquele que realiza todo tipo de serviço; na maioria das vezes os piores serviços, os que ninguém está disposto a fazer”133.

Uma carreira infantil costura a casa vizinha da Igreja de São Sebastião. É o velório de Orlando. Ao oferecimento do tio Antônio, irmão do defunto, de ver por última vez o pai, Zé reage com sofrimento e temor: “Aqueles olhos azuis que eram água anilada, represada no tanque, e que eram chispas de fogo”134

. A visão do corpo obriga a mais uma carreira. O funeral do pai é seu primeiro esbarrão com a morte, um ritual de passagem. Orélio135 vai a seu encontro enquanto mais dois primos, Tide e Donato (filho de Antônio),

os aguardam. Na caminhada até o bar do Pivatto, vozes entrecortadas chegam a ouvidos do caçula. O procedimento da fragmentação bombeia sangue às estruturas maiores (o romance, as histórias) e às menores (vozes, períodos, parágrafos, frases):

Que tragédia, meu Deus! Que. Tadinho, tão novo, tão. É, aquele. O mais pequeno. E agora?, o que vai ser da. Graças a deus a Assunta tem um filho- homem para cuidar da. Não me conformo é com isso acontecer bem no focinho de todo mundo, ah, isso não dá pra. O que vai ser desse menino, minha nossa senhora, o quê? Benzadeus, é forte como o pai! Aquele ali, ó. Alá ele 136.

O recurso do itálico conduz a leitura às pessoas reunidas na praça e a um que outro pensamento. Além da polida construção de personagens, chama a atenção como os “atores” de Ruffato espelham a sua sociedade. De acaso, nada. No trabalho compulsivo com os pequenos elementos que escapam à observação cotidiana -mas que literariamente adquirem valor de símbolo- é que o autor mineiro consegue tal reprodução da sociedade. Em um aposto sobre a personagem como indivíduo simbólico, o crítico literário Michel Zéraffa explica o seguinte, palavras mais palavras menos: “embora no mundo concreto o indivíduo seja observado pelo social, no romanesco o indivíduo aparece como espelho do social. O espelho não é uma invenção do romancista: reflete o real”137

.

132 Iniciativa virtual cujo objetivo é reunir vozes não dicionarizadas da língua portuguesa. 133 Disponível em: http://www.dicionarioinformal.com.br/buscar.php?palavra=badeco.

Acesso em: 12 dez. 2010.

134 Ruffato. Op. Cit., p. 77.

135 O nome do moço deve ser Aurélio e “Orélio”, a pronunciação regional do nome. 136 Op. Cit., p. 78.

137 Michel Zéraffa, Roman et société: “(...) alors que dans le monde concret l’individu est miré par le social, dans

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Veja-se como são apresentadas outras personagens do “Ritual”: Orélio trabalha em Ubá, tem título de eleitor e lidera a busca de Badeco. Tide, empregado de uma fábrica de móveis também em Ubá e em idade próxima da de Orélio, propõe o ajuste de contas. Donato é contemporâneo de Zé, um pouco mais velho, e simplesmente se solidariza com o quase irmão. Por enquanto sigilosamente, o filho do defunto desaprova a idéia da perseguição vista a ligação fraternal com Badeco. Repensando os “fatos”, Zé consegue entender mais ou menos rápido que o pai foi embora, mas pelo irmão negro se pergunta: “Fugiu para onde?, voltariam a se ver um dia? E se a polícia prendesse ele? E?”138. Apesar

de acontecer em um diálogo entre primos, a aceitação de uma execução sumária como forma de justiça social só pode advir de uma sociedade ainda em formação. Por outra parte, o respeito à decisão de um irmão de criança (a de fugir) e a incerteza sobre o que pode (ou não) ter feito, remete à semente de algum tipo de mudança. Ou pelo menos de algum tipo de questionamento.

Do botequim de Pivatto ao alto do morro e do Cruzeiro da vista à missa de corpo- presente, o menino se mistura com a multidão que acompanha o enterro. Daí em diante, na próxima seqüência, verá o passo-a-passo do protocolo católico. Zé presencia o cortejo encabeçado pela Congregação do Coração de Jesus, a bandeira vermelha do grupo embrulhando o caixão, os quatro tios paternos com o ataúde nos ombros e uma quantidade imensa de pessoas na procissão. Malgrado a beleza de certos trechos (“O comércio cerrou as portas. Os cachorros não latiram, os cavalos não rincharam, os bois não mugiram. A cidade, enlutada, sustara a tarde, que abria-se cortesmente a nuvens carregadas”139

), conscientes da generosidade do falecido, Ruffato desdobra ao mesmo tempo o lado mundano da tradição (no engrandecimento do defunto, a conversa fiada quando os temas acabam e na bebida de um familiar ou outro).

Em uma longa dissertação sobre a morte, o sociólogo francês Jean-Didier Urbain explica que por cima da melancolia (ainda que esta tome conta) só existe, realmente, o processo de interrupção dos laços afetivos: “É precisamente esta a finalidade dos ritos: transformar o silêncio e o vazio criados pela separação em um espaço de relação constante”140. Não apenas homem de Deus, trabalhador e bom pai, Orlando Spinelli

permitia que a bebida o “selvajara” a ponto de espancar quem se cruzasse pela frente. terme de ‘miroir’ esr employé pour designer le roman et ses personajes. Pourtant cemiroir n’est pas une invention (une ‘création’) du romancier: il refète le réel”, Paris: PUF, 1976, p. 38.

138 Ruffato. Op. Cit., p. 80. 139 Idem ibidem.

140 Jean-Didier Urban, “Morte”, verbete da Enciclopédia Einaudi, vol. 36, 1997, p. 405.

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Difícil determinar o voto de Zé por um pai capaz por igual de fazer palhaçadas e repartir safanões; ou de adotar, curar e cuidar de Badeco desde criança -como mais um filho- e bater nele com o cabo da enxada na menor desavença, apagando todo e qualquer laço: “O menino seguia imerso na multidão, sentindo, ao invés de tristeza, certo alívio, porque, sabia, agora não haveria mais brigas”141

. O espírito de Zé diferencia as perdas: a do pai irremediável, a de Zé insubstituível. Daí o caçula abrir espaço para a dúvida razoável: “Sabia que ele havia feito uma coisa horrível, cometido um pecado mortal, mas... ele... devia ter lá seus... motivos”142.

Com vontade de ir para casa -sem poder se mexer-, Zé é achado por Orélio na saída do cemitério. Por iniciativa do mais velho, os quatro primos dão uma volta. Após um tempo no caminho (o tempo de uma busca infrutífera e tortuosa para Zé), e por causa de uma tormenta, o jipe para na venda de Remundo, “um comercinho desenxavido situado no meio do nada”143

. O condutor pede quatro cachaças e conversa com o atendente, que lamenta a morte do tio. O diálogo tenso (quatro Spinelli, quatro brancos, “caçando” um empregado negro, suspeito de assassinato) desvenda a cor da pele de Remundo. À resposta do comerciante (“tem preto que não conhece o seu lugar”144) segue a desconfiança leitora

de uma represália injusta. Após um petisco e outra cachaça, Remundo “convida”: “Essa é minha, meu filho, vão com Deus e que Nosso Senhor Jesus Cristo os acompanhe. Leva a garrafa, vocês estão precisados”145. O sentimento da perda (do pai e do irmão) acompanha

Zé, que também sente náuseas ao pensar na hipótese de que Badeco tenha vingado qualquer um de seus problemas. Um grito doloroso (“uma barragem estourou dentro dele, o corpo magro e pequeno tremia, convulsivamente”146) é o último a se escutar neste

“Ritual”. A primeira parte da trindade chega ao fim.

Jair protagoniza a parte intermediária. Pequenas frases -em um tipo de letra diferente- dão lugar a sete trechos. A colocação formal da história -como se verá a seguir- tem grande importância. Além de estabelecer a ordem das forças no último dia de vida (morrer, sofrer, morrer, sofrer, morrer, sofrer, ir), as frases funcionam como leitmotiv da condição de espírito da personagem. Um moribundo e suas cruzes é o primeiro a se pensar. Os três episódios do “morrer” relatam fatos que declaradamente consumem as suas forças, os três do “sofrer” centram-se no remorso e em uma que outra passagem feliz, e o

141 Ruffato. Op. Cit., p. 84. 142 Idem ibidem.

143 Op. Cit., p. 86. 144 Op. Cit., p. 87. 145 Op. Cit., p. 88. 146 Idem ibidem.

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momento de “ir” alude à partida. O destaque em negrito é seguido pela fonte regular (que indica o presente). Justo depois, o itálico do passado entra no parêntesis. O procedimento se repetirá de começo a fim e só na última página descobrir-se-á o nexo de Jair com a parte “Ritual”. As expressões em negrito que aparecerão a seguir foram extraídas do texto de Ruffato (aqui serão empregadas apenas como antessala às interpretações de cada trecho).

“Ele está morrendo”. A dor consume o corpo do paciente até que a “agulha analgésica” penetra “na pele áspera”147

. O efeito da medicação conduz a primeira lembrança. Faz muito tempo, acordado às quatro horas e aguardando a água ferver, Jair escutou a campainha, estranhado e temeroso de que algo ruim acontecesse. Caveira e Jacaré “dançaram”: “o pessoal fecharam eles. No campinho”148

. A forma de falar (e a de morrer) remete ao cenário urbano. Os apelidos correspondem a Jairzinho e Orlando, filhos do meio dos quatro de Jair e Rosa. O nome “Orlando” dispara o exercício especulativo do leitor (Badeco e Jair serão a mesma pessoa?).

Procurados pela polícia, os recém-finados comerciavam com drogas. A par do problema -crentes de que deixariam o caminho da ruindade com as orações e o encaminhamento-, os pais viam os moços “o dia inteiro trancados no quarto, dormindo à toa, vendo televisão”149. A São Paulo de fundo é, no mínimo, de meados da década de

1990150 e as atividades tendenciosas incluem roubo aos pais, venda dos presentes que o irmão mais velho deixava em casa, compra de substâncias tóxicas, ameaças e deboche perante o pastor que tentava orientá-los. A rememoração faz Jair pensar em uma frase curiosa: “o que nos está destinado, não podemos empurrar para outros”151

. Algo a mais o atormenta. O parêntesis fecha sem ponto.

A atitude dos irmãos Jair e Orlando, porém, não é produto de algum tipo de ineptidão ou precariedade, como pode fazer acreditar o senso comum. Rosa e Jair querem o bem dos filhos, fazem o melhor que podem, mas se limitam a dar um incentivo periférico, literalmente afastado do centro das necessidades educacionais. Conversar com o pastor, para quê? Apenas para ocupar o tempo fora de casa? Sem outra ligação que a concorrência com outros jovens com os mesmos interesses (o desafio da rua, onde conseguirão demonstrar “quem são” e “o quê sabem fazer”), o caminho que percorrem é quase esperado. Filhos de Rosa e Jair, mas também da rua, a socialização familiar é substituída pelo espírito que circula nas redondezas.

147 Op. Cit., p. 91.

148 Op. Cit., p. 92. 149 Idem ibidem.

150 A história abrange um período amplo: da infância à velhice de Badeco. 151 Op. Cit., p. 93.

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“Ele está sofrendo”. O doutor chega ao quarto e pergunta pelo time de preferência. O paciente não se manifesta a respeito do futebol, pois a religião não lhe permite tais licenças. Do passado “chega” a história de Rosa e Jair (seguidores da Igreja Deus é Amor152) e um perfil da esposa na época em que chama a atenção do jovem:

“morena roxa, longos cabelos pretos, (...) se sentava no banco da frente nos cultos dominicais”153. O dia em que Jair se atreveu a convidá-la para sair foram até a Praça da Sé,

tomaram picolé e conversaram, de irmão a irmã. Natural da Bahia, a irmã morava na casa de uma senhora na Mooca (no centro expandido da cidade), trabalhava como balconista das Lojas Brasileiras e acumulava sete anos na igreja. Nascido em Minas Gerais, o irmão morava de aluguel “num quartinho de fundos (...), em Santana”154

, trabalhava como motorista de ônibus e tinha-se convertido fazia seis meses. Embora com as economias curtas, Jair deu a entrada para uma casa no Jardim Peri (bairro da zona norte de São Paulo e terminal da linha que lhe ocupa), contratou um pedreiro, recebeu ajuda dos irmãos da igreja e terminou a moradia casado. Um parágrafo que paraleliza o mundo da rua com o mundo privado, dá conta da evolução:

E os filhos e o progresso foram chegando: Josué, luz elétrica e rede de esgoto e água; Jairzinho, asfalto e um puxado com mais dois quartos; Orlando, supermercados e lojas e mais um andar com banheiro; Rute, posto médico e um quarto só para ela.)155

“Ele está morrendo”. Devido à insistência da atendente, Jair toma uma sopa no hospital. O parêntesis abre as portas da vida de Josué (o irmão mais velho), que casou com uma espírita (para desgosto de dona Rosa) e se encaminhou pelo bem, a começar pelo trabalho como motorista de um particular abastado do Morumbi (bairro de prestígio na margem oeste do rio Pinheiros). De mal com os irmãos mais novos e de bem com a irmã, Josué era apresentado como filho colaborador. Pouco antes de morrer, Rosa reviu os parentes na cidade natal graças a Josué. Jair recebeu a mesma oferta, mas preferiu ficar em São Paulo: “Fazer o que lá, Josué? Não deixei ninguém lá não. Sou sozinho no mundo. Minha família é vocês.)”156. Percebem-se na resposta mágoas de gravidade.

152 Igreja Pentecostal Deus é Amor, fundada em São Paulo em 1962. Na base do Regulamento Interno do

culto de fato aparece a proibição geral (em homens e mulheres) da prática de esportes. Disponível em: http://www.ipda.com.br/nova/n_principal.asp. Acesso em: 10 jan. 2011.

153 Ruffato. Op. Cit., p. 94. 154 Idem ibidem.

155 Idem ibidem. 156 Op. Cit., p. 96.

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“Ele está sofrendo”. Mais uma personagem de suporte é apresentada no ambiente hospitalar: Marcelo, “enfermeiro invertido”157, responsável pelo banho dos homens. O corpo limpo prepara a viagem da memória. As esperanças que houve sobre Rute (a filha), se desmancharam com o caos causado pelos irmãos inadaptados. O subterfúgio? Um casamento às pressas com um fiel da Igreja Brasil para o Cristo158. Mudaram-se casados para a Ermelino Matarazzo, zona leste da cidade.

“Ele está morrendo”. Inocêncio, pastor da igreja de Jair, visita o paciente. Acompanham-no os irmãos do “grupo de intercessão pelos enfermos”159. Um fio de ironia

sulca a descrição dos afazeres religiosos: “Contavam as novidades, conversões, (...) curas milagrosas -Graças a Deus! Em torno da cama, as mãos estendidas sobre seu corpo, fecharam os olhos, o pastor puxou a oração, entrecortada por Aleluia, Senhor!”160. De

conforto recebido, Jair recebe a Rute, o genro e o neto de colo. Enquanto o desconforto da família da filha funcionava como anestésico, o pai aceita a maçã que lhe foi levada de presente. Afastado, interrompe o vôo na ocasião do atropelamento de Rosa. O Mappin da Praça Ramos Azevedo (referências inseparáveis do centro de São Paulo e de uma época, dado que a cadeia de lojas por departamentos encerra atividades em 1999161) aguardava

Rosa para as compras de Natal. Na Avenida Rio Branco, um veículo atropelou-a. O preenchimento deste tempo (da saída de casa até a não-chegada) é relatado passo a passo: dos gestos de Jair (que chega cedo do trabalho) até cada ligação do pai ao filho mais velho. Solidário, incansável, Josué procura pela mãe até que dá com ela. Às vinte horas, informa Jair sobre o acontecido.

“Ele está sofrendo”. Rute e a família vão embora. Inocêncio e os irmãos voltam para se despedir. Antes da separação, Jair pede um minuto a sós com o representante da igreja: “Pastor... Deus... Deus não é amor... É vingança... é punição”162. De que tamanho foi

a falta cometida pela personagem? O suor e a refrega individual provocam mais um

157 Idem ibidem.

158 O culto da Igreja Pentecostal O Brasil para o Cristo foi fundado em 1956. É comum em áreas operárias do

leste de São Paulo. Disponível em: http://www.obrasilparacristosp.com.br ou em: http://conselhonacional.org.br. Acessos em: 10 jan. 2011.

159 Ruffato. Op. Cit., p. 97. 160 Idem ibidem.

161 Aberta em 1913 e fechada -por falência- em 1999, a cadeia varejista Mappin impulsionou idéias como os

preços nas vitrines e o crediário, foi ponto de encontro da aristocracia paulista entre as décadas de 1940 e 1950 e antecipou a noção de shopping center. A loja da Praça Ramos Azevedo (ativa desde 1939), no centro de São Paulo, tornou-se referência. Ainda lembrado, o jingle da rede de magazines fazia com que as pessoas

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 42-52)