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Ilusões abatidas

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 158-169)

ferrolhos no teto

II. Ilusões abatidas

Não fosse parte de um romance, o segundo texto de Vista parcial da noite encaixaria na definição de sonho (só que por escrito): uma associação de imagens (em princípio) desconexas que se forma no espírito da pessoa (no caso enquanto lembra, não enquanto dorme)647. Dada a importância que termina tendo a música, esta história pode ser pensada como uma grande “imagem sonora”. Não à maneira de uma retrospectiva fílmica (embora o balanço aconteça), mas à maneira de uma narrativa que apela a vivências especificamente brasileiras para que os fatos se revistam de sentido. Maria de Fátima Ribeiro Martins é o pivô de “A homenagem” e a celebração que justifica o título é dupla: pelo que significa para a moça/costureira/mãe de família o carnaval de 1956 e pela sensibilidade com que o autor celebra o caráter desta mulher incansável.

O olhar, porém, demora a chegar em Maria de Fátima pois a perspectiva que introduz o leitor na sala da casa descrita (a que observa a máquina de costura e apresenta a dona da ferramenta a pedal) é uma gata que se assusta com a entrada de Teresinha, filha da costureira. Na forma do diálogo tradicional (com travessão), um chamado delata a chegada da moça: “Mãe, mãe”648

. Aliás: o do pequeno traço horizontal é uma repetição, pois no primeiro parágrafo há uma variação da expressão, em negrito e sem sinal de conversa: “Mãe, mãe” (como se o estilo tipográfico ajudasse a diferenciar o que escuta a gata do que escuta a mãe).

O contexto não demora a ser colocado. A família mora no Beco do Zé Pinto: Fátima costuma apoiar a filha, Zé Bundinha (pai da jovem) é conservador (“antiguista”649

), a moça sonha com celebrar os quinze anos na pompa do Clube Social e o filho, Caburé, é apenas introduzido depois. Como as fotos das primeiras comunhões na década de 1950 (reconhecíveis a léguas nos retratos), a descrição da roupa e da festa imaginadas pela debutante dão ao leitor pequenas pistas temporais: “vestido cetim branco rodado estrelado de lantejoulas aperoladas decote-princesa, luvas e tiara, salto alto e bolsinha-de-mão,

646 Corresponde à história “A homenagem”.

647 Veja-se a definição do verbete “sonho” no Dicionário OnLine de Português.

Disponível em: http://www.dicio.com.br/sonho. Acesso em: jul. 2011.

648 Ruffato, Op. Cit., p. 21. 649 Idem ibidem.

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esbaforida no aguardo da valsa, neve de pétalas de rosa pálidas, cascata de champanha, retrato corpo inteiro n’O Cataguases”650

.

Composto de seda e náilon, houve uma época em que o cetim caíra na moda entre as moças que estreavam em sociedade. Fazendo o caminho da manga, cortado de cima do ombro, e percorrendo o contorno do busto, o corte princesa é um figurino clássico. Dado a conhecer na década de 1950 pela casa Dior, o modelo rodado é dos que mais requerem tecido, visto que a saia é cortada como um imenso círculo com um espaço central para a cintura. No modelo e no sonho, lê-se em Teresinha o desejo de celebrar em grande estilo. Enquanto um pensamento em itálico confirma a vontade da filha: “Queria tanto uma festa...”651, a atividade incessante da mãe ratifica quão importante é para ela a felicidade da moça. O esforço para levar em frente a idéia (sobrepondo-se às saias justas da profissão e planejando uma festa caseira, pois a celebração no clube é uma impossibilidade) revela o caráter da costureira:

E madrugadas a mãe varou aflita, aceitando até reparo de roupa, que recusava porque cerzir e remendar e ajustar rebaixavam o ofício, e esmagreceu652 por uma mão no garfo outra na agulha, uma no prato

outra na costura, e olheiras imprimiram fadiga e zonzos tremiam os dedos, mas ao cabo ajuntara notas e pratinhas suficientes para a surpresa (...)653

As referências ao presente vão se afunilando. O dia do próprio aniversário Teresa se arruma em casa de dona Olga, mãe de Toninha e Márcia. A primeira amiga arruma suas mãos e pés; a segunda lhe aplica Yamasterol no cabelo, henê depois de seco e pomada Minâncora em pontos da face. Os adjetivos são curiosos, pois Teresa vai até a casa vizinha caminhando “cleopatramente” e a maquiagem começa com uma base na pele “chocolate”. Independentemente do tom da pele, a descrição (o adjetivo e os enfeites cosméticos: pó- de-arroz, ruge, batom carmim, sombra azulada, lápis e rímel) faz pensar na Elizabeth Taylor do filme de Joseph L. Mankiewicz, de 1963. Creme multifuncional da casa Yamá e disponível nas farmácias ainda em 2011, o Yamasterol foi o leave-in da década de 1970654; a

henê um alisante de moda desde os anos 1960 (diferente da henna que é um tonalizante natural), e a Minâncora uma pomada “antisséptica, adstringente e cicatrizante”655 que existe

650 Idem ibidem.

651 Idem ibidem. 652 Sic. 653 Idem ibidem.

654 Criado em 1967 (ou seja: com mais de quarenta anos no mercado brasileiro), o Yamasterol é o carro-chefe

da casa Yamá. Disponível em: http://www.yama.com.br/espaco.aspx. Acesso em: 20 jun. 2010.

655 Disponível em: http://www.minancora.com.br/pt/produtos/produto.php5?id=1.

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no Brasil desde 1915. A felicitação pela rádio (costume desde que esse meio existe) pega a aniversariante de surpresa: “e, por fim, rainha escondeu-se no godê e escalou o salto- agulha, o radinho-de-pilha oferece à Maria Teresa, Psiu!, gente!, passagem do seu Psiu!, gente!, Leno: “A festa de seus quinze anos”, Aaaaaaiiiii! Quem ofereceu, Teresinha? Heim? Quem?”656.

As referências musicais começam no “banho-de-cavalo” que Márcia toma enquanto cantarola “Despedida”657, de Roberto Carlos. Nem neste momento nem nos versos que

aparecerão durante as vinte e uma páginas da história, nomear-se-ão os intérpretes, os títulos nem os anos das canções. A modalidade de banho (feito com balde) revela as restrições de água no beco. Com pequenas frases, o autor consegue fundir discurso e forma: “Impaciente, dona Olga, roupa-de-ir-à-missa, gasta a sandália quintal-porta-da-sala- quintal”658. Na vitrola de um barraco vizinho, alguém coloca Wanderley Cardoso, cantor

brasileiro romântico por excelência659. Na saída com Márcia e Toninha, dona Olga

testemunha os elogios que Teresa desperta na vizinhança. Os detalhes da festa refletem uma época. Note-se a “elaboração” textual do espaço do retrato familiar:

No centro da mesa, assentado num tabuleiro forrado em papel-alumínio, saia de papel-crepom enfeitada por dezenas de balas-de-coco enroladas em branco, azul e rosa, um bolo dois-andares, recheio ameixas pretas, cimentado de glacê alimonado franjas esculpidas confeitos prateados, Feliz Aniversário, coroado por duas velas, o 1 e o 5, bolas-de- soprar encipoando o cômodo, No meio!, No meio!, e pôs-se entre a mãe orgulhosa e o enciumado irmão, (...)660

A ausência do pai no retrato é simbólica, pois acontece em um momento marcante para a filha (e acontecerá nos momentos marcantes da família). Para estas pessoas o espaço da paternidade será um vazio, um precipício. Compartilhados o bolo e o “quissuco”661

vermelho, improvisados os aviamentos, Zito Pereira toma conta da eletrola e coloca Nélson Gonçalves e Miltinho, Orlando Silva e Francisco Carlos, Anísio Silva (que é vaiado: “Isso é música de zona, Zito, peloamordedeus!”662) e de novo Wanderley Cardoso.

Atenciosa, dona Fátima despede os convidados com um licor de folha-de-figo armazenado

656 Ruffato, Op. Cit., p. 22.

657 O álbum que contém esta música foi lançado em 1974, mas é possível que a composição

seja de 1973 (de outra forma não se explicaria a referência à canção neste texto).

658 Ruffato, Idem ibidem.

659 São eloqüentes os títulos de alguns elepês: “Socorro nosso amor está morrendo” (1968),

“Só o amor constrói” (1971), “Fale baixinho” (1972), “Minha namorada” (1973).

660 Ruffato, Op. Cit., p. 23.

661 O Q-Suco foi a versão nacional do Kool-Aid, no mercado brasileiro desde 1961

(no final da década de 1960 passou a ser chamado de Ki Suco). A bebida original existe nos Estados Unidos desde 1927 e é a redução a pó de um refrigerante artificial, muito popular.

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em uma garrafa bico-de-jaca663, sem calcular os efeitos na jovem Hélia (filha de Zulmira e

Marlindo). Verdadeira vergonha, porém, é a que Zé Bundinha bêbado faz passar à família ao ser grosseiro com os convidados: “Essa casa é minha! Eu é que mando aqui! Todo

mundo para fora!”664. O dia chega ao fim com Teresa dormindo na casa de dona Olga,

Caburé (o filho) escapado brincando de pique-salve, Fátima deitada e o pai gritando.

Um dia de 1973, Teresa irrompe de novo na sala. A moça relembra que a mãe foi rainha do carnaval. Fátima desvia o assunto e o diálogo é suspenso por causa de um parêntese que fecha, solto e estranho. Linhas depois o parêntese abre. Se o que costuma aparecer assinalado é um flashback ou uma digressão, a sensação que fica (com o texto fora do parêntese) é que o episódio faz parte de uma desastrada rotina:

) As noites, temia-as. Parecia que, posto o sol, alvoroçavam-se os demônios. As febres espreitavam na escuridão, nela as dores enrolavam- se; a solidão espiava por entre as telhas, delas o medo despencava; as horas desandavam, no despertador, nele o silêncio matraqueava. José Feliciano Martins, por leve defeito no andar, Zé Bundinha,

alcunha detestável, mas para todo o sempre

com estardalhaço escancarou a porta da sala, despertando-a, tremuras no menino, Zé?, no quarto contíguo a menina, só, relampeou, Zé?, levantou-se, assustada, Zé?, trovejou, o marido tombado, Que foi, Zé?, palavras desordenadas, Bêbado, meu deus! Onde isso vai parar?, intentou erguê-lo, relampeou, rechaçou-a, Larga!, Merda, sô!, cabelos desgrenhados, trovejou, boca esculachada, calça rasgada no joelho direito, arrastou-o, estabanado um vento úmido cruza a casa, relampeou, arrancou-lhe a camisa fedendo a perfume de mulher à-toa, trovejou,

empurrou-o para a cama, relampeou, acudiu a Teresinha, bico na boca, trabesseiro665 debaixo do braço, trovejou, e bulhenta a chuva fustigou a

madrugada. Silêncio: sereno, o neném quieta, a filha

ronca o marido azedo de cachaça

Fátima espreita a escuridão alem da veneziana (666

Embora as crianças estejam pequenas (o que contribui para a construção da cronologia interna do texto), o quadro desenha uma boa imagem de Zé Bundinha: alcoólatra, desrespeitoso com a família, cliente assíduo da Ilha, machista. Os demônios que tiram o sono da família têm em comum o nome de José Feliciano Martins. Medo, solidão e recusa são os efeitos na mãe e nos filhos. Desde o ponto de vista formal e apesar do teor amargo da situação, as remissões à chuva e a disposição gráfica das últimas linhas (a

663 Vidro de textura que simula a fruta, comum por volta dos anos 1970/1980. Ainda hoje se encontram

jarras, galheteiros, lustres, ânforas, copos e taças com este trabalho em feiras de antigüidades.

664 Ruffato, Op. Cit., pp. 23-24. 665 Sic.

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maneira de verso, embora parte da mesma unidade narrativa) são recursos altamente expressivos.

No momento em que Fátima confirma que foi rainha de carnaval (quando Teresa nem pensava em existir), a filha escuta a estação que rendeu cinco minutos de fama a Vanim em uma das histórias de O mundo inimigo. O recurso da chuva é retomado e temperado com o discurso radiofônico. A voz narrativa chama a atenção porque começa, mais uma vez, na terceira pessoa e demora nada a se colocar no lugar da ouvinte:

Ouvia a Rádio Cataguases quando o Márcio Toledo, aquele que fala assim, “Você que está em casa, você que está no trabalho, você que está na rua, por favor: (pausa) dê-me o prazer (pausa) da sua companhia!”,

sabe?, ele está promovendo o encontro de rainhas do carnaval no Clube do Remo667.

O que começa como a simples confirmação da passagem por um carnaval de outro tempo, se transforma no verdadeiro núcleo da narrativa: organiza-se no Clube do Remo (onde as famílias bem posicionadas se divertem) um reencontro de ex-rainhas. Como o nome na lista equivale a dois ingressos, o plano arquitetado por Teresa é um sucesso seguro (convencer a mãe de assistir e acompanhá-la apenas para justificar a presença em um espaço fartamente desejado). A transição que suscita a lembrança da folia de 1956 é incorporada ao texto de uma forma belíssima. Os sinais de dois pontos que serão vistos a seguir, soltos, substituem os travessões e recalcam o sentido de individualidade:

Dona Fátima arrastou os pés, que se entrançaram nos retalhos coloridos

espalhados pelo chão nas serpentinas

que desenrolavam do céu e engachavam-se em seus braços rítmicos enlaçados ao frenesi de surdos e agogôs e tamborins e taróis e repiques e cuícas e reco-recos e nos confetes grudados em seu

rosto e nos cabelos e na faixa Rainha do Carnaval –

Cataguases 1956 que ostentava orgulhosa no coreto da Praça Rui Barbosa e que consagrava muda àquele basto bigode preto, camisa listrada, calça larga de linho, chapéu-panamá, sapato branco, tubo de lança-perfume : José Feliciano Martins

: Maria de Fátima Ribeiro668

Fátima e José cruzam olhares no carnaval de 1956. Aos poucos toma lugar no texto uma espécie de paralelismo narrativo. Ele mora em uma pensão e trabalha na fábrica Irmãos Prata (a família mais rica da cidade669), ela trabalha como tecelã na Saco-Têxtil. Ele se desloca em uma moto Peugeot, ela caminha. Ele sai de farra aos finais de semana

667 Op. Cit., p. 25. 668 Op. Cit., pp. 25-26.

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emendando arrasta-pés com futebol, ela visita os pais no interior de Cataguases. Apesar de estar fora de lugar (na cronologia), comenta-se a visita que o casal faz à família da moça antes do matrimônio. Na estação de Sereno (parada do ramal ferroviário de Santana de Cataguases), o irmão mais velho de Fátima (Vitório) aguarda por eles em uma charrete. O passado firmado na terra (na lavoura, no chão de terra batida, no rapé, no alambique) é universo comum entre os namorados. Na conversa com o futuro sogro descobre-se que Zé nasceu em Divino, um lugarejo perto de Ubá. A emoção disfarçada da mãe que casa a única filha670 é descrita com sensibilidade: “O que a senhora achou?’, e distinguindo lágrimas nos rasos da mãe, “Quê isso? A senhora...” “É a fumaça, minha filha... Já implorei pro seu pai desentupir a chaminé... não tem jeito...”671. Seis meses depois de se conhecerem, os

namorados formalizam a união: “Eu, Maria de Fátima Ribeiro, aceito como legítimo esposo José Feliciano Martins, prometendo ser fiel, amá-lo respeitá-lo, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte”672. São as palavras de Fátima,

comprometendo-se. Como na foto de quinze anos de Teresa, o compromisso de Zé brilha pela sua ausência.

Entre um e outro trecho da linha namoro/matrimônio/filhos (recorrentemente interrompida por lembranças ou discursos de reforço), o narrador retoma a celebração no Clube do Remo. As referências próximas à recordação de Fátima diante do padre, carregam o peso do receio materno e da violência paterna. Fátima conversará com o marido sobre a festa, mas “não promete nada”; uma tala de couro na porta da cozinha mostra as convicções anacrônicas de Zé. Se o casal se conheceu no carnaval de 1956, casou seis meses depois da passagem por Sereno (em abril do mesmo ano) e Teresa fez quinze anos um primeiro de outubro, o presente da narrativa situa-se em 1973673. As contas são possíveis enquanto o narrador retoma a chegada da debutante ao mundo e as previsões de Sá-Ana para cada gravidez: barriga redonda menina, barriga pontuda menino.

Comum aos partos na Casa de Saúde foram a “azia e o entojo, cansaço e pernas inchadas, dores na coluna e na cabeça, insônia e angústia, e faça com que tudo saia bem, meu Deus ”674, a escolha dos nomes, a colaboração de vizinhas mulheres (Zulmira com Teresa e

670 A conclusão de que Fátima é a única filha deste casal não está explícita no texto, mas intui-se a partir da

apresentação dos familiares na casa em Sereno e a partir da intervenção de Seu Argemiro (sogro de Zé) quando o casal se muda para o Beco do Zé Pinto: “O berço, presenteou-os o Mirão, orgulhoso, ‘Susteve oito, sete legítimos, um de criação”. Ruffato, Op. Cit., p. 32.

671 Ruffato, Op. Cit., p. 28. 672 Idem ibidem.

673 Na p. 32 de Vista parcial da noite, Fátima consulta Sá-Ana sobre uma possível gravidez no “primeiro

carnaval casados” (ou seja, em fevereiro de 1957). A placa que Fátima recebe o dia da homenagem (com a data “fevereiro de 1973” gravada na última linha) encerra qualquer dúvida. Os quinze anos de Teresa, então, devem ter acontecido em 1972.

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Bibica com Caburé) e a total desatenção de Zé (no primeiro, completamente bêbado em casa e, no segundo, bêbado na Ilha). A colocação dos nomes de acordo com o santo do dia foi costume nos anos 1950/1960. No texto, o hábito aparece como segue: “À porta da Casa de Saúde estourou a bolsa e a manhã acordou-a o berro dos três quilos cem gramas, 1o de outubro, Vai chamar Maria Teresa, Nada te espante / Tudo passa, / Só Deus não muda. / A paciência / Tudo alcança. / Quem tem Deus / Nada lhe falta. / Só Deus basta”675.

Os escritos ficcionais de Ruffato demandam um leitor-participante, pronto para se jogar na procura dos fios em discursos enovelados. Ainda que a partir de outros escritores, uma idéia do romancista britânico David Lodge ajuda a entender o tipo de participação que se exige do leitor de Ruffato: “Graças à manipulação temporal, a história evita apresentar a vida como uma sucessão de acontecimentos (...), permitindo-nos fazer ligações de causalidade e de ironia entre acontecimentos distantes”676. Certamente a colocação de uma

cronologia própria, não linear, outorga dramaticidade ao texto. Veja-se como diante de trechos misturados (como na citação anterior) a solução é a pesquisa. As últimas frases fazem parte de uma breve oração a Santa Teresa D’Ávila, fundadora das carmelitas e doutora da igreja, cujo lugar no calendário está no quadro do quinze de outubro:

Nada te perturbe Nada te espante Tudo passa, Só Deus não muda. A paciência Tudo alcança Quem tem a Deus, Nada lhe falta. Só Deus basta677.

O menino, que se chama Isidoro por ter nascido em quatro de abril678, escassas

vezes recebe o afeto do pai. Nem o nome satisfaz José Feliciano, que logo passa a chamá-lo Caburé. “Isidoro” é o puxão de orelha verbal para momentos de gravidade. “Implicante”, “reliento”, “briguento”, “bobagento” são os qualificativos empregados para falar do filho mais novo, do provocador. Os gritos “Isidoro! Isidoro! Isidoro!”679

revelam o caráter do

675 Op. Cit., p. 29.

676 A arte da ficção. Porto Alegre, L&PM Editores, 2009, p. 84.

677 A citação é apenas um trecho da prece, disponível no sítio da Ordem dos

Carmelitas Descalços Secular (OCDS) do Sul do Brasil. Disponível em:

http://comsantateresa.org.br/website/index.php?option=com_content&task=view&id=885&Itemid=1. Acesso em: jul. 2011. Um texto da jornalista Lúcia Barden Nunes no blog Castelo interior, disponível em: http://castelointerior.wordpress.com/2011/05/29/leitura-espiritual-do-poema-nada-te-perturbe-lugar-de- partilha, auxilia na interpretação das palavras de Teresa (tidas igualmente como oração, como poema e como meditação). Acesso em: mar. 2011.

678 Dia de homenagem a San Isidoro. 679 Ruffato, Op. Cit., p. 30.

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irmão de Teresa, repreendido por Zé de corpo e palavra. Colaboradora, a filha mais velha ajuda à mãe nas tarefas domésticas e procura não causar problemas (nem na escola nem em casa), mas as boas intenções não poupam dissonâncias e disso Ruffato parece estar ciente ao descrever um detalhe quase banal: “Quando estufaram os peitos, desejou uma minissaia, o pai pretendeu proibir, a mãe interpôs-se, Absurdo!, Todas as mocinhas usam, agora é

moda, Nem pense em contrariar!, ele voltava a desoras carregado”680.

No Brasil da segunda metade da década de 1960, palavras como “proibir” e “contrariar” admitem mais de uma leitura681. A rebeldia de Teresa (que termina sendo a

rebeldia de Fátima) começa pela roupa e passa pela compra de um rádio, os passeios na praça com as amigas, o desfile no bloco, o uso de maquiagem e flertes às escondidas do pai. Qualquer fosse o motivo, Zé sempre retorna carregado (se o termo existisse, seria uma espiral viciosa). A rotina consome o pai e a autoridade feminina se fortalece.

Apesar do vaivém ser movimento natural aos textos de Luiz Ruffato, as ondas de “A homenagem” semelham uma ressaca que indica: o mar da lembrança está agitado porque as correntes da realidade se cruzam e entram em conflito. As idas e vindas não seriam apenas uma dificuldade para reconstruir os fatos. Os “fatos” estão ali, minuciosamente contados. Uma linha estendida em ramificações seria o melhor diagrama da história de Fátima. Subdivididas e crescentes em todos os sentidos (horizontal e vertical), assim as cronologias de Ruffato. A longa digressão do primeiro carnaval do casal (que acontece em 1957, mas é recuperado no texto logo depois da discussão sobre a minissaia, em meados de 1970) é mais um exemplo, importante aliás quando se repara na perspectiva de Zé Bundinha. O longo trecho da p. 32 aborda os pormenores da jornada diária do pai: o despertar no Beco, o almoço no botequim, o jantar em casa, a enchente que se avizinha e a primeira filha a caminho. A grande dúvida do recém-casado é como impedir a esposa de celebrar o carnaval se foi em um deles que se conheceram. A escusa do primeiro carnaval foi a gravidez, a do segundo (1958) os cuidados da Teresinha, as do

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