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O florescer de uma consciência

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 181-185)

ferrolhos no teto

V. O florescer de uma consciência

Embora breve, a quinta história de Vista parcial da noite é extraordinária na sua singeleza. De volta a terceira pessoa, o narrador recria um episódio na vida de Fernando, um menino que dá os primeiros passos na vida produtiva dentro do armarinho de seu Boi. A narrativa de “Aquele Natal inesquecível” é linear, mas o aposto encaixado dentro de um parêntese que abre com o signo de fechar e fecha com o signo de abrir [ “) … (”757

] faz com que o leitor questione o sentido da organização do discurso. Cada história de Luiz Ruffato no Inferno provisório funciona como um pequeno quebra-cabeças. Nesse sentido, vale a pena tentar entender como se juntam as peças desta história de Natal.

Às onze horas da noite, em um dia do mês de dezembro, um freguês bêbado758

chega ao armarinho e cumprimenta o proprietário do armarinho. A entrada do comprador

754 Op. Cit., p. 69.

755 Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2006, p. 17. 756 Corresponde à história “Aquele Natal inesquecível”. 757 Ruffato, Op. Cit., p. 73.

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é útil para “observar” o espaço da loja, o movimento comercial e as personagens que ali pousam: dona Lucinha no balcão envidraçado, seu Boi no caixa e Fernando no alto de uma escada. O transeunte anônimo procura de flores para a namorada, Janete. Entre rosas e dálias, ele prefere as segundas. Fernando desce e o atende, com uma dúzia de dálias brancas de plástico faz um ramalhete, embrulha-o com celofane vermelho, entrega-o e recebe o dinheiro. Só nesse episódio, o leitor se depara com duas belas metonímias referidas ao freguês: “O terno-gravata meteu-se por baixo da meia-folha da porta-de-aço, sobressaltando o Boi”759 e “(...) entregou o buquê aos braços trêmulos, que, após rápido

acerto de preço, incorporou-se, breve sombra, na noite insondável”760. A utilização da parte

pelo todo (que de forma simples é o que define a metonímia) será apenas um indício do quebra-cabeça.

Nomes (ou apelidos) jocosos há vários no Inferno provisório (Zé Bundinha, Zé Preguiça, Zé Pinto por exemplo), mas o elemento lúdico acrescentado ao proprietário do armarinho (na forma de “ações”) provoca uma simpatia inusitada. Com um peso próximo dos cem quilos, seu Boi (cujo nome de batismo é Nilton) é apresentado “ruminando”, “lambendo”, “farejando” e “berrando”.

[seu Boi] ruminava aritméticas, dobrando o dinheiro e amarrando os pacotes com elástico761.

Que sujeito!, arruou o Boi, lambendo o indicador direito para mais uma vez calcular a féria762.

O menino, Fernando, virara caixeiro, temporariamente, (...) quando o Boi farejou um Natal rendoso763.

Menino! Menino!, berrou o Boi, deslocando-se até o passeio, Aqui, uma lembrancinha764.

A história se passa na noite de Natal de um ano entre 1972 e 1975. A permissão que dona Lucinha combina com Nilton para que o menino assista a “uma festa”, a despedida de Nando (“Feliz Natal, dona Lucinha, Feliz Natal, seu Boi”765

) e a relação (esparsa mas reconhecível) de peças de roupa datadas, ajudam a chegar a essa conclusão. Cuecas samba-canção, uma camisa de tergal, uma calça de brim e um conga preto, “circulam” pelo texto. De acordo com o Almanaque Anos 70 (na parte dedicada à primeira metade da

759 Ruffato, Op. Cit., p. 73. 760 Op. Cit., p. 74. 761 Op. Cit., p. 73. 762 Op. Cit., p. 74. 763 Idem ibidem. 764 Idem ibidem. 765 Idem ibidem.

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década), as camisas de tergal (“de corte estreito” e “estampas berrantes”766) costumavam ser

combinadas com calças esporte de cintura alta. A cueca samba-canção “estava com os dias contados”767. O banlon, o orlon, o tergal, o crylor e o poliéster eram tecidos comuns (“se

tivesse fibras sintéticas e não amassasse, era o máximo”768). E o tênis de lona com sola de

borracha “se chamava Conga, Bamba ou Rainha”769

. O estranho parêntese surge entre a pergunta e a resposta de se Nando pode ir à festa:

O menino pode ir Nilton? )O menino, Fernando, virara caixeiro, temporariamente, ele mais duas mocinhas, no final de novembro, quando o Boi farejou um Natal rendoso, Sabe fazer conta?, pescoço afirmativo, Nesse ramo pode ter vergonha não!, e adotou-o o braço direito. Dona Lucinha e as garotas inauguravam a manhã, o Boi e Fernando davam serão( Pode, pode...770

Ao que tudo indica (e em um tom que destaca a voz do narrador como observador externo), este trecho é o começo da história. Como se vê, Nilton toma a decisão em final de novembro prevendo um Natal de bons lucros. Por outra parte, a disposição dos signos lingüísticos faz pensar na importância de saber que Nando se desempenha em uma espécie de emprego desde muito jovem. Quando se descobre que os objetos dispostos sobre o balcão serão os presentes que o menino ideou para a própria família, a importância do emprego passa a ser entendida como uma consciência (o reconhecimento de que “alguém” na família está na obrigação de cultivar a alegria do Natal).

Cinco são os objetos colocados no mostrador: um lenço, uma cueca, um jogo de botão, um estojo de maquiagem e um fusca movido a corda. O montante da compra ultrapassa o orçamento de Nando, mas seu Boi deixa as contas desse tamanho e permite que o empregado temporário leve as peças consigo. Prestes a deixar o armarinho, o moço recebe do patrão “uma lembrancinha”771. Sorridente, o menino pega a bicicleta e vai

embora. Como até esse momento o destino não é uma preocupação, o leitor acompanha o narrador na paisagem noturna e na penúria visível das casas:

(...) luzinhas enfeitando desertas fachadas, lojas, casas, ruas, da Estação, do Comércio, da Cadeia, Ponte-Nova, Pracinha, Vila Teresa, Paredão, Beira-Rio, mastigaram no breu, a poeira saibrosa da Rua da Mina, o aclive, vincado de regos desenhados pelas chuvas, que denominavam

766 Ana Maria Bahiana, Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 31. 767 Op. Cit., p. 32.

768 Idem ibidem. 769 Op. Cit., p. 33.

770 Ruffato, Op. Cit., p. 74. 771 Idem ibidem.

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Rua das Mangueiras, o silêncio arranhado por cricris, claxe-claxes e a avalanche de latidos e uivos, Chácara Paraíso772.

De certa forma, as observações de Fernando lembram as do menino de “O ataque” (a história precedente), quando este foge para o alto do morro. Sebastião e Eni mudam-se da Vila Teresa para o Paraíso; e Paraíso é o nome da chácara onde Nando mora com a família. Quando por fim chega, Nando deixa a bicicleta na varanda e coloca os presentes sobre a mesa. A mãe confirma baixinho: “Nando?”773. Ele acaba de se deitar quando a

senhora entra no quarto, vela na mão, para conversar. Nesse instante, o menino pergunta por Lilinho e Nélson, e só então o leitor associa Lilinho ao Carlos do “Aquário” e a mãe à dona Nica que naquela história viaja com o Lilinho-adulto até Guarapari774. O Fernando

que aqui aparece novo é o filho mais velho do casal Nica/Adalberto, pais também da Norma e do Nélson, o caçula.

A “posta roxa-rósea” no rosto de Nica é o sinal infeliz dos maus-tratos do pai. Nando se indigna com a evidência e se incomoda ao saber que Lilinho e Nélson ficaram dormidos no quarto da mãe. O Natal na casa de Fernando termina acontecendo na cozinha, de fininho, uma celebração muda entre mãe e filho. O penúltimo parágrafo do texto vem carregado de cores: o brilho “azul-alaranjado”775 do fogão, “a toalha-de-plástico

talvez verde”776, “o vermelho-vivo dos embrulhos”777. Surpresa com o gesto de afeto e com

os olhos cheios de água, Nica coloca na mesa um prato que Nando recusa: “arroz-feijão- angu-bife-ovo”778. Uma celebração e um perigo encerram o “Natal inesquecível” no

Paraíso: a “lembrancinha” de seu Boi (um canivete suíço com abridor, saca-rolha, chave de fenda, punção, pinça, lixa, tesourinha) e uma ameaça (a imagem de uma “lâmina”).

A destreza de Luiz Ruffato construindo personagens faz lembrar uma das idéias que o crítico alemão Anatol Rosenfeld esmiúça no ensaio “A personagem do romance”:

(...) enquanto na existência quotidiana nós quase nunca sabemos as causas, os motivos profundos da ação dos seres, no romance estes nos são desvendados pelo romancista, cuja função básica é, justamente, estabelecer e ilustrar o jogo das causas, descendo a profundidades reveladoras do espírito779.

772 Op. Cit., p. 75.

773 Idem ibidem.

774 Luiz Ruffato. Mamma, son tanto felice. Vol. 1 de Inferno provisório, pp. 43-70. 775 Luiz Ruffato. Vista parcial da noite. Vol. 3 de Inferno provisório, p. 75. 776 Idem ibidem.

777 Idem ibidem.

778 Ruffato, Idem ibidem. 779 Rosenfeld, Op. Cit., p. 66.

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Se algo fica claro em “Aquele Natal inesquecível” é esse jogo de causas: Fernando procura trabalho porque precisa respirar um ar diferente ao do inferno familiar que lhe rodeia; atravessa o mundo com um espírito mais independente porque sabe-se em completo desacordo com o comportamento desastrado de um pai agressivo e alcoólico; chega em casa com presentes (embora modestos) porque reconhece que a alegria também foi feita para eles; permite-se desfrutar do presente de seu Boi porque é a comprovação de que alguém lembrou dele, e termina com o suspense da palavra “lâmina” como para sublinhar (apesar da ameaça sugerida) que não há mal que dure cem anos, nem corpo que o resista. O jogo sempre pode virar.

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 181-185)