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O enigma do filho guerreiro

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 101-109)

A sexta história de O mundo inimigo é um texto de duas grandes vias. Intitula-se “Jorge Pelado”, começa com uma “Agonia” e termina com uma “Lamentação”. Na realidade, é o conjunto de um ato encoberto e a sua conseqüência. Na primeira parte, a personagem do título sofre. Possivelmente agoniza, mas se poupam os detalhes de seu

399 A doação do caixão assinala a precária condição econômica da lavadeira. 400 Op. Cit., p. 84.

401 James Wood. Como funciona a ficção, São Paulo: CosacNaify, 2011, p. 101. 402 Op. Cit., p. 116.

403 Corresponde à história “Jorge Pelado”. Por um tempo acreditou-se que esta narrativa estivesse de alguma

forma conectada com o filme O dragão da maldade e o santo guerreiro (1969), de Glauber Rocha. Embora a análise tenha avançado em outra direção, a hipótese ainda não foi descartada.

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apagamento na trama. Na segunda, o foco está em Bibica, nas suas culpas e arrependimentos. Em ambas as partes sente-se o peso de não ter reagido a tempo, de não ter contrariado uma imposição. A discussão central parece circular em torno do risco de confiar a estranhos o próprio destino. Para entender melhor o que acontece será necessário examinar cada parte de forma minuciosa. Amparados na idéia de Maurice Blanchot de que o leitor acompanha a solidão da obra e do escritor404, ser “partícipes” de tão tormentosa

circunstância (embora ficcional) causa imenso pesar.

Como se observa desde a primeira linha do texto, a respiração das frases se mostra entrecortada: “um barulho Jorge Pelado acorda bombardeio no peito o trinteoito mira trêmulo o breu um barulho sonho? passos lá fora passos lá fora? aguça os ouvidos”405. Com esta colocação, provida de certa circularidade (visto que começa e termina com “um barulho”), o espírito do leitor é preparado para conhecer Jorge. O caçula da Bibica dorme, acorda com algo inesperado. A mão está no revólver e este no peito. A abóbada da noite recobre o que parece ser um quarto, uma dependência isolada, talvez um esconderijo temporário. É o que transparece a atitude vigilante do moço. Uma presença circunda as proximidades. O episódio é tenso e transluz um clima de perseguição. A interferência de pequenos discursos (diferenciados tipograficamente) reforça a sensação. O itálico406 reflete

o pensamento de Jorge; a fonte-sem-estilos é o presente da narrativa; o negrito-menor possivelmente um delírio; a fonte-nova projeta Zunga (também filho de Bibica), e o negrito-apenas troços de passado (infância de Jorginho). Uma passagem da primeira página ajuda a visualizar o efeito das mudanças, formais só na aparência:

Os músculos se distendem, o cano do revólver aponta o chão de cimento. Os olhos se fecham. Abrem-se. Um barulho? Fecham-se. Um barulho! Abrem-se. Fecham-se. Cansaço. Estou cansado, Bibica. Muito cansado. Bibica? Quem está lá fora? Vem deitar no meu colo, vou te fazer dormir, vem. A noite fede. O urinol está cheio, Bibica. O Zunga ainda não chegou, meu deus... Dorme, meu filho, dorme... Bibica, o doutor Normando quer despachar o Jorginho... Ele falou que não vai mexer mais nem uma palha... que já tem problemas demais... E que vai lavar as mãos se a gente407

Uma sirene coloca Jorge em alerta. Quando conclui que não é o objetivo da busca (que está a salvo, que não darão com ele), seu corpo se distende e a mão -até então no

404 Maurice Blanchot, O espaço literário, Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 12. 405 Ruffato. Op. Cit., p. 91.

406 As denominações tipográficas são empregadas nesta análise para explicar com palavras uma preocupação

gráfica. Daí a utilização dos termos: fonte-sem-estilos (em referência a fonte principal do livro), negrito- menor, fonte-nova e negrito-apenas. É possível que o trecho do exemplo a seguir ajude na compreensão destas descrições.

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peito- conduz a arma ao chão. O narrador onisciente destaca a fadiga do protagonista e faz com que o leitor se pergunte reiteradamente: exatamente aonde se encontra Jorge?, em que situação?, foge?, de que?, por que? Curiosamente, o emprego de um estilo tipográfico nem sempre assinala a mesma situação. Apesar de revelar um tempo específico, cada estilo comporta vários episódios (dentro de seu respectivo tempo). Por exemplo: na lembrança, Bibica quer que Jorginho durma: “Vem deitar no meu colo, vou te fazer dormir,

vem”408. Linhas depois, quando o soldado de polícia irrompe no barraco, “escuta-se” de

Bibica: “Pode entrar... É só não arreparar na bagunça... casa de pobre... aceita um

cafezinho?”409. A observação parece um detalhe, mas é um complicador que “obscurece” a

apreensão dos sentidos de cada situação. Unir os fios do que acontece e do que aconteceu faz parte da proposta do autor410.

O entendimento cabal desta história exige um leitor que deslinde os pequenos discursos, os decodifique, os costure e arrisque uma unidade interpretativa. A estratégia do autor é movediça e suscetível de confusão. Os vaivens atingem inclusive a narrativa do presente (a da fonte principal, presente nos cinco volumes do Inferno provisório). Isto significa que nem sequer o tempo-âncora das linhas cronológicas é tão fixo quanto se espera. Quando o narrador diz: “Dezembro. O sol labirinta-se por entre as folhas das mangueiras, crava punhais no chão da chácara”411

, se desconhece se esse mês é posterior ou anterior ao que se acabou de ler. Os meses referenciados, sem indicação temporal complementar, são recurso frequente no “Inferno”. Neste caso esepecífico, a pergunta de Caboré (“Vamos bater uma pelada?”412

) sugere um retorno à infância de Jorge, o que deixa à mostra a existência de flashbacks dentro da mesma seqüência.

De imediato, intervenções das personagens -em discurso direto- conjugam-se com descrições do narrador: “Os pés bailam nos paralelepípedos em brasa. O bafo quente distorce a tarde. ‘O Gildo não pode sair hoje não, está de castigo’. (...) Dona Marta volta, a bola está murcha. ‘Voltem amanhã. Amanhã o Gildo joga com vocês”413

. Salvo Gildo (que não pode sair), todos os meninos falam: Paco, Luzimar, Jorge Pelado e Caboré. Por um lado, se dá a conhecer a situação que desencadeia a saída de Jorge de Cataguases (ainda novo). Por outro, todas as personagens se manifestam.

408 Idem ibidem.

409 Idem ibidem.

410 Se este for o objetivo do autor em uma das narrativas, nada indica que não seja o objetivo

do autor com a pentalogia (considerando a linha histórica que passa por baixo do romance).

411 Idem ibidem. 412 Idem ibidem.

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Uma das características que permite compreender os sentidos do silêncio é justamente o estudo do silenciamento. Com este conceito Eni Puccinelli Orlandi evidencia que “há um processo de produção de sentidos silenciados que nos faz entender uma dimensão do não-dito (...) distinta da que se tem estudado sob a rubrica do ‘implícito”414.

Colocando os meninos em posição de falantes durante a preparação do jogo, Ruffato aproxima a personagem do dizer. Todos os atores da história tem voz. O termo em destaque seria, então, “totalidade” (e não “atores”). Uma das mais importantes premissas do “Inferno” (que a idéia do romance não enfraqueça a presença de nenhuma das personagens) é de certa forma retomada na situação do jogo de Jorge. Para Ruffato, a noção de “totalidade” não consistirá apenas na construção de um universo comum aos atores do Inferno provisório. A sua proposta passará pelo crivo do conhecimento profundo da vida de cada personagem. Haverá totalidade se as parte forem apreendidas “por inteiro”.

No afã de materializar o desejo do grupo, Jorge afirma possuir o que falta. O menino sabe aonde procurar. Inventa ter recebido uma bola como presente e pede para os amigos irem até o campinho enquanto ele volta. O estado de agitação é tal que a narrativa retorna ao começo da história. Os momentos tensos dialogam entre si: o da bola no passado com o que se avizinha no presente. O cansaço, as falas dirigidas a Bibica e os olhos de Jorge-adulto (que se abrem e fecham) emergem como linhas-condutoras do fim vindouro. Mais uma situação conflui nesta interseção de acontecimentos: “Todos os domingos, Jorge Pelado ia para a rodoviária espiar o ônibus de Cataguases. Ensaiava o dia em que compraria uma passagem e, todo lorde, na primeira poltrona, cumprimentaria os conterrâneos”415.

Desde muito afastado da própria cidade, Jorge se imagina voltando realizado. Enquanto outros como ele sonham com abandonar o lugar de nascença para “subir na vida”, Jorge sonha o retorno como compensação da saída precipitada de Cataguases. Longe do lugar que pode chamar de seu, o protagonista sente vontade de sumir no mundo, gostaria de estar em “um lugar onde pudesse deitar e dormir, nunca mais acordar”416. A sua

saída foi forçada e o retorno não acontece.

Uma nova lembrança surge com delicadeza. A vontade de desaparecer se dissolve na vermelhidão da noite e a cor rubra remete ao bordel onde o moço trabalha quando menino. Como acontece com o beco de Zé Pinto, numerosas personagens de Ruffato tem em comum a Ilha, não necessariamente por ser clientes. Quando criança, Jorge recebe uma

414 Eni Puccinelli Orlandi. As formas do silêncio, Campinas/SP: Editora Unicamp, 2007, p. 12. 415 Ruffato. Op. Cit., p. 92.

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soma irrisória por encerar os quartos das trabalhadoras. O ganho lhe franqueia as portas da vida “em sociedade”: acesso ao sorveteiro, filmes no cinema, certas roupas, um detalhe para a mãe e a revista Combate417, própria de uma época no Brasil. A perspectiva também

muda. De fato, lembrar a emoção de ter recebido um presente do caçula conduz Bibica à dor de ter perdido Jorge fora de Cataguases. Desde então nem se comunicam, nem sabem se o outro existe. Nessa espécie de extravio há um tom de óbito, e no óbito uma conexão clara entre lembrar e viver (ou esquecer e morrer).

O reproche hipotético da carta que a mãe nunca recebe é o recurso utilizado pelo narrador para informar que Bibica não sabe ler e que o menino aprendeu medianamente o alfabeto. Qual a utilidade do que se ignora? Destacado no negrito-menor, o episódio a seguir talvez seja o mais determinante da “Agonia” (visto que arrasta uma preocupação assomada em “A mancha”). No tempo do delírio, o caçula pergunta para a mãe em mãos de quem fica a responsabilidade de lembrar os que já não estão. Mais uma surpresa aguarda o leitor quando se descobre que o estilo não assinala uma voz única.

Ninguém mais lembra do Marquinho... Eu alembro, meu filho. E você também... Você alembra, não alembra? E o Zunga. Mas... quando a gente morrer, eu, você, o Zunga, quem vai lembrar do Marquinho? E quem vai lembrar da gente, Bibica? Quem? Ô raio! Não sei daonde esse menino tira essas conversas! Parece gente grande, sô!418

No trecho citado se observa como acontece o diálogo entre mãe e filho. Mais um sinal da angústia do autor pelo direito à fala. Em “A mancha”, o mundo interior de Bibica constata a preocupação pelo tema da memória:

(...) os poucos farrapos mantinham ainda a febre do seu corpo. Mas: como era o feitio do seu rosto?, o formato e a cor dos seus olhos?, a costura da sua boca?, o desenho do seu nariz?, o contorno do seu queixo?, o rasgado das suas orelhas? Tudo isso se esfumara419.

Para Ruffato os acontecimentos tem uma lógica orgânica. Por um lado, “falar” (ou “dizer” ou “ler” ou “escrever”) equivale a “lembrar”. “Lembrar” a “reviver”. “Reviver” a “não deixar morrer”, e todas estas relações à noção de “memória” (inclusive quando a discussão gira em torno do possível apagamento de uma existência). Por outro, recordar é também uma responsabilidade (neste caso, de uma realidade conhecida/pesquisada pelo autor). Preocupado pelo movimento histórico, o autor mineiro detém o olhar em vidas

417 Impressa pela editora Taika e popular no final da década de 1960, Combate reconstruía -em quadrinhos- a

história da II Guerra Mundial.

418 Ruffato. Op. Cit., p. 93. 419 Op. Cit., p. 76.

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desimportantes (não difundidas massivamente420), que existem e de fato são condicionadas

pelas circunstâncias históricas. O desfecho da pelada o demonstra.

Jorginho aparece com a bola no campo. Ato seguido, um par de soldados chega de súbito ao Beco do Zé Pinto. Uma bola e uma bicicleta desapareceram da Rua do Comércio e o filho mais novo da Bibica é automaticamente “indiciado”. Enquanto a autoridade se manifesta, a mãe sofre um acesso violento. Uma vizinha enfia um pano na sua boca. Antes de partir, os soldados se referem a Jorginho como “mau elemento” e “ladrãozinho”421

. A incógnita do que aconteceu não se despeja. Quando Zunga é apresentado (este sim preso várias vezes, apostador de plantão e assíduo jogador de baralho na Ilha), o descrédito de Jorge se desmancha. Na esperança de salvar o filho mais novo, Bibica recorre a Zunga: “Por que você não experimenta falar com o doutor Normando?”422. Só

quando o “empregador” do filho mais velho intervém, revela-se o conflito da primeira parte da história: corre na rua o rumor de que Jorge (quase na atitude do santo de seu nome) profere ameaças contra os que pretendem prendê-lo, punhal em riste. Bibica recusa a maledicência. Incentivado por Normando, Zunga chega em casa com uma passagem e explica que ir para o Rio de Janeiro é a única saída do irmão. Com a polícia no encalço e com Normando pronto para testemunhar contra, Jorge fica sem opção. Da noite para o dia, Zunga aparece ao telefone combinando a movimentação com Barreto, motorista do ônibus: “Tem problema não (...). Se algum fiscal parar, falo que é parente meu. No fundo, pobre é tudo parente mesmo, não é não? Pode ficar sossegado: está comigo, está com Deus”423. Um segmento da fala de Barreto (“pobre é tudo parente mesmo”424) ilumina uma das linhas de força dos cinco livros do romance.

No final da primeira parte, ninguém intercede por Jorge. Tem-se a impressão de que ninguém se atreve. A viagem precipitada adquire traços de fuga. A que outra época pode remeter esta incapacidade de resposta, esta espécie de coação, senão ao último período de coerção política no Brasil (1964-1984)? Se “no fundo, pobre é tudo parente mesmo”, por que ninguém se manifesta em favor de Jorginho? Tudo aponta à punição de uma postura irreverente.

A defesa do filho de Bibica -apenas um menino travesso- é desconsiderada porque se assume como briga perdida. Mas a história não fornece os detalhes. A “Agonia” encerra

420 No hipotético caso de que a imprensa tentasse colocar em prática tal empreendimento, seria pouco

provável o registro de cada existência apenas nos jornais. As obras literárias -vista a sua imensa carga simbólica- propiciam o retrato da diversidade.

421 Ruffato. Op. Cit., p. 95. 422 Idem ibidem.

423 Op. Cit., p. 96. 424 Idem ibidem.

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com uma imagem enigmática que fusiona a figura da mãe na cozinha (a sós) com a de um fuzil425 que é disparado. Como acontece com dois metais quando se fundem (que passam do estado sólido ao líquido), a mãe avivando o fogo se prolonga no disparo de um fuzil426.

A frase é obscura porque não revela nem o autor nem o alvo do disparo e porque é seguida de um silêncio dramático que assinala um fim trágico.

(...) Bibica estumava o fogo, assoprando com força, com força, com força, com força, até que fagulhas espargidas pela boca do fuzil sapecaram a escuridão, alastrando na madrugada. Depois, bem devagar, um silêncio imenso assentou sobre todas as coisas427.

A segunda parte de “Jorge Pelado” acontece bem depois do sumiço do caçula e retoma um questionamento pontual: por que Bibica concordou com a decisão, sem pé nem cabeça, de “salvar” o filho afastando-o? Naquele momento a sugestão de Zunga pareceu a melhor forma de livrar Jorge do perigo. Passados os anos, a sensação de não ter feito o correto tortura Bibica. No fundo, ela sabe que o moço era um “menino bom, atencioso”428

, “simples, ingênuo”429. Os adjetivos são reiterados ex professo para sublinhar a inocência que

a lavadeira não viu no passado.

No texto de “Lamentação” se transpira um ar de religiosidade nas referências à imagem de São Jorge e nos pedidos de ajuda celestial, em prol da proteção do moço. Em um artigo acadêmico intitulado O culto a São Jorge: um estudo das representações do santo a partir das orações430, Paulo Henrique da Silva Bossi e Solange Ramos de Andrade afirmam que as

preces são um ato e como tais implicam “um gasto de energia física e moral”431 que visa

certos efeitos: “Mesmo que a prece não seja uma fórmula mágica, pois fica a cargo da divindade atender o pedido, (...) é eficaz no sentido de incitar a divindade a agir nesta ou naquela direção”432

. A descrição dos pesquisadores se ajusta ao que Bibica sente durante o momento de “Lamentação”: “Sagrado Coração de Jesus, derrame luz sobre o meu filhinho,

425 As associações fuzil/insurreição, fuzil/luta armada ou fuzil/resistência são comuns em regimes

autoritários. Observe-se a referência contida em uma estrofe de “Alegria, Alegria” (1967), de Caetano Veloso: “Por entre fotos e nomes/Sem livros e sem fuzil/Sem fome, sem telefone/No coração do Brasil”. Há na música um apelo direto à contramão. Fala o compositor de “caminhar contra o vento”, de “guerrilhas”, de andar sem documento. Na história de Ruffato, o fuzil é um enigma. Tanto pode ser um sinal de resistência, como um recurso apenas literário para fundir as faíscas da cozinha com a situação de Jorge.

426 A palavra “fuzil” se emprega, por extensão, para referir armas de cano longo como o rifle ou a espingarda.

Inicialmente, porém, descrevia a peça de metal que produzia a faísca na hora do disparo.

427 Ruffato. Op. Cit., p. 97. 428 Op. Cit., p. 101. 429 Idem ibidem.

430 Paulo Henrique da Silva Bossi e Solange Ramos de Andrade. Disponível em:

http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/rbhr/o_culto_a_sao_jorge.pdf. Acesso em: 05 jan. 2010.

431 Op. Cit., p. 3. 432 Idem ibidem.

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São Jorge proteja meu Jorginho, tão sofrido”433. Invocando a santidade, a lavadeira invoca

também a presença do filho.

As idas e vinda desta segunda parte acontecem no sentido temporal e na ponte entre o mundo espiritual e o material. Talvez por isso a lavadeira retome experiências sofridas da própria vida até então desconhecidas. Salvar Zunga do tifo quando pequeno, por exemplo, acarretou o atendimento de quatro “clientes” em uma jornada de trabalho. Sem dinheiro para comprar a medicação, nem possibilidade de cuidar do menino, resolve pedir auxílio a Zulmira. Inclusive no bordel, alguns elementos levam a pensar no santo: “(...) e volta para a penumbra do salão, alumiado por lâmpadas de quarenta velas envolvidas em papel celofane vermelho”434

.

No segundo trecho (seis ao todo, os cinco primeiros sem ponto final), Bibica sugere ter sido Zunga o responsável e entrevê algo que o leitor suspeita desde o texto da “Agonia”: o doutor Normando fez o possível para se livrar de Jorge. Entendendo o ato de Normando como um sofrimento infligido, o simbolismo do fragmento propicia a imagem de um Jorge-mártir. Toda vez que o caçula vem à tona, Zunga desconversa. Com o caminho liberado, o irmão mais velho faz o que bem entende: volta bêbado, vende “jogo do bicho” (contratado por Normando, esposo de uma Prata), passa noites na cadeia e gasta o pouco que ganha na Ilha jogando buraco.

O “sono profundo”435 de Marquinho, “o sumiço”436 de Jorge e as confusões

aprontadas por Zunga encaminham o triste final de Bibica. A moça abandona a Ilha (e a vida que o prostíbulo exige), aluga um cômodo no Beco do Zé Pinto e acata as normas da nova moradia (pagar o aluguel, a pena d’água e não causar confusão). Saber que Jorge passou parte da infância sem roupas porque não havia nem para comprar comida, dá uma dimensão do tipo de pobreza que suportam os moradores destes barracos.

A lembrança dos quatro clientes é significativa porque delimita a gestação de Jorge. No tempo assinalado pela narrativa, tomar banho com vinagre era o mecanismo empregado pelas meretrizes para evitar gravidezes indesejadas437. Na noite do paratifo,

Bibica esquece da precaução. Ciente do menino que virá e testemunha de uma visão

433 Ruffato. Op. Cit., p. 101.

434 Idem ibidem. Se bem própria deste tipo de locais, a repetição da cor vermelha também pode ser entendida

como uma alusão ao santo. São comuns as imagens de Jorge trajado com capa da mesma cor (reminiscência do tempo romano talvez). As velas votivas e a cruz que serve de emblema aos países que o adotaram como patrono (no tom rubro), confirmam a possível carga simbólica. Por último, na mitologia iorubá São Jorge equivale à divindade de Ogum (orixá dos metáis, guerreiro como Jorge), cujas cores são o vermelho e o branco.

435 Ruffato. Op. Cit., p. 103. 436 Idem ibidem.

437 O livro das impossibilidades e Domingos sem Deus apresentam dois casos (Vilma e Lívia, respectivamente)

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especial (um corisco e o conseqüente céu estrelado na noite prévia ao parto438), sabe que o

menino será um indivíduo “diferente”439

. Para confirmar o pressentimento, visita Sá-Ana e recebe da curandeira o nome do rebento: “Jorge, como São Jorge, o santo guerreiro, porque essa vai ser a sina do meu afilhado, lutar contra os dragões do mundo, Bibica”440. Feita a revelação, o leitor a perguntar-se: que razão

podia ter Normando (única figura que encaixaria como dragão) para livrar-se de Jorge? As falas dos vizinhos, anônimas porém presentes, também são consideradas por

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 101-109)