• Nenhum resultado encontrado

Caindo aos pedaços

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 138-147)

Em um livro que recopila um conjunto de crônicas publicadas em Il Corriere della Sera, o escritor italiano Claudio Magris diz que o viajante descobre a sua própria verdade atravessando o mundo. No confronto que propicia (consigo e com o mundo), a viagem transformaria essa latência em realidade. Uma frase do trecho chama a atenção: “O sujeito na visão clássica, ainda extraviado frente à vertigem das coisas, acaba por encontrar-se a si

568 Ruffato. Op. Cit., p. 186.

569 Manuel Bandeira, 50 poemas escolhidos pelo autor, São Paulo: CosacNaify, 2006, p. 71. 570 Ruffato. Op. Cit. 186.

139

mesmo no confronto com esse vertigem”572. Para o protagonista da última história de O

mundo inimigo, o retorno ao passado (que, de fato, se materializará em uma viagem) será exatamente isto: uma vertigem. Com esse substantivo Luiz Ruffato encerrará o segundo volume de Inferno provisório.

A última história do livro, então, recupera a vida de Amaro. No retorno a Cataguases, a personagem se reencontrará com a cidade natal. O que definirá a sua própria verdade -nos termos de Claudio Magris- será o confronto com a deterioração de tudo o que ele conhecia. O que de entrada seria um exercício exploratório (um círculo amplo) se tornará logo um descenso à ruína. Diagnosticado medicamente, o idoso Amaro sofre de vertigem. Tudo indica que se trate de uma condição física que o leva a sentir mãos e pés gelados, dedos esticados, apertada a testa e músculos trêmulos573. Com a passagem dos

diferentes episódios de sua vida, os desfalecimentos são compreendidos também como uma sensação metafórica acionada por situações desconfortáveis. Na reconstrução da vida de Amaro há elementos comuns a outras histórias de Luiz Ruffato: uma viagem, uma comparação, a sensação de ruína (alastrada agora até a loucura de outra personagem), a tentativa de recuperar o tempo perdido (de resgatar chances que não foram aproveitadas) e a conexão com outras personagens importantes do livro.

O lugar de moradia de Amaro é São Paulo. Treze das catorze páginas da história traçam um perfil sem nome, como se o apelativo final coincidisse com algum tipo de descoberta. No centro da queda, a revelação. A dúvida e a menção a referências mais ou menos conhecidas, fazem com que (de entrada) o leitor conjecture mais de uma possibilidade para o homem da vertigem. Será Jorge Pelado que retorna? Será o “alemão” (esposo da púria), dono da única bicicleta Monark até agora mencionada? O primeiro detalhe curioso é a nostalgia não-admitida que Amaro sente do conhecido. Ignoram-se as razões pelas quais ele se muda para São Paulo, mas as sensações que o regresso desperta são finamente colocadas:

(...) acordava na divisa do Estado de Rio de Janeiro com Minas Gerais, sacolejo num buraco, asfalto estragado, e, abertos, os olhos pastejavam adivinhando montanhas ao longe, do outro lado do Rio Paraíba, fosse inverno, verão, e um cheiro penetrava em suas narinas, capim serenado, mel das matas, lenha esfumando em café, em caldeirão de feijão, mugidos longínquos, ê boi, ê boi, e o corpo espreguiçava espantando o sono574.

572 Claudio Magris, El infinito viajar, 2005. Lê-se no original: “El sujeto en la visión clásica, aun extraviado

frente al vértigo de las cosas, acaba por encontrarse a sí mismo en la confrontación con ese vértigo”, p. 13.

573 Ruffato. Op. Cit., p. 189. 574 Idem ibidem.

140

Uma completa recusa ou uma total aceitação pelo lugar de origem seria menos ambíguo. Tão humano quanto qualquer indivíduo, Amaro é presa de uma forte contrariedade entre a urgência de retornar (saudade do que foi seu) e a consciência de uma espécie de fim se aproximando (possível motivo da peregrinação). Em um ensaio sobre a enfermidade, Susan Sontag diz que “metáforas de doença são usadas para julgar a sociedade não como desequilibrada, mas como repressiva”575. Apesar de não mencionar a

doença de Amaro (o final faz pensar que seja “labirintite”576

), a idéia de Sontag ajuda a entender o que acontece ao redor da personagem de Ruffato. A ruína que ele percebe pode ser entendida como um signo de repressão (não político, mas social) onde a idéia de bem- estar ficou em um planeta diferente ao do possível. “Um outro mundo”, por exemplo, chega ao fim com Zé Pinto na beira dos setenta anos. Em “Vertigem” -onde tudo se desmorona sem controle- o antigo dono do beco é descrito como um ancião no abismo do desamparo:

No quarto escuro, abafado, fedendo a mijo recente e azedo de restos de comida, imbecilizadamente sentado numa cadeira-de-rodas, abandonado a um canto, móvel sem utilidade, um cobertor imundo a lhe cobrir os gravetos de pernas, Zé Pinto, baba no canto da boca, o corpo penso, inerte577.

Tendo advertido que não seria cuidado por familiar algum, que nada deixaria de seu haver aos parentes, o cuidado de Zé Pinto ficou a cargo de um sobrinho. Mulato jovem, o sobrinho recebe ao viajante o dia em que este passa pelo barraco do antigo dono do beco. Bem antes da visita, o protagonista acorda na rodoviária e pega um táxi até o Hotel dos Viajantes. Entrando no veículo sofre o primeiro episódio de desequilíbrio. Na lembrança (propiciada pela instabilidade), um ponto de ônibus em São Paulo é o cenário do primeiro acesso de vertigem da sua vida. A entrada no hotel define o tom da narrativa: o prédio é

antigo, a madeira carcomida das portas e janelas da fachada, o assoalho gasto, o tecido

das poltronas rasgado, as paredes mofadas, o tecido das cortinas descorado, um relógio

parado e até o recepcionista aparece “carreando um forte cheiro de umidade, um sorriso

verde-musgo pintado no rosto”578. A chegada no hotel é seguida de um parágrafo quase

paradigmático nos textos de Ruffato:

575 Susan Sontag, Doença como metáfora, São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p. 64.

576 No último parágrafo de “Vertigem”, se lê: “(…) as pernas do homem caminharam rapidamente em

direção à porta, seus olhos buscaram nos labirintos de corredores a saída do prédio (…)”. A menção da palavra “labirintos” e o fato de ser a vertigem um de seus sintomas, reforça a possibilidade de que esta seja a doença de Amaro.

577 Ruffato. Op. Cit., p. 192.

141

Da janela do quarto via a estação ferroviária desativada, carroças de aluguel cheiro de mijo de cavalo o trem cortando a cidade como uma cobra minério-de-ferro escapando dos vagões Lá vai a riqueza do Brasil pro estrangeiro uma vergon carros ziguezagueiam buzinas, camelôs apregoam contrabandos, caixeiros chamam os passantes, Vamos entrar!, A senhora não quer dar uma olhada?, A princesinha não está necessitando de, motocicletas circunvagueiam barulhos, onde termina a cidade? A cidade termina logo ali atrás daquelas, tudo tão mudado!, as distâncias na infância, longas caminhadas até a Praça Rui Barbosa, atravessando a estreita calçada da Ponte Nova, o pneu da bicicleta desgastando paralelepípedos irregulares, derrapando em pés-de-moleque, láááá atrás acaba a cida, as casas brotando cogumelos nos pastos a cada ida para visitar a tia Eustáquia, na Vila Reis, a solteirona que o criou, coque no cabelo, vestido assembléia-de-deus, olhos baços, desilusão amorosa coitada o noivo parece que fugiu no dia do casamen, cada vez enxergando menos, até ser internada num asilo de velhos, um salário-mínimo por mês enfermeiros médicos todos os cuidados preocupa não (...)579.

A linguagem entrecortada que começa com as perguntas do taxista, se repetirá uma e outra vez. Um começo de explicação aparecerá mais na frente em palavras de Josemar, sobrinho de Zé Pinto: “as coisas estão tudo embaralhadas”580. O trecho acima, então,

reúne traços próprios do Inferno provisório. As idéias assemelham um tronco desmembrado. Não pertencem ao mesmo plano de consciência, nem à mesma voz, nem ao mesmo tempo... mas estão dotadas de sentido na composição de um único corpus . A primeira frase (para fins desta análise, a “principal”) é atravessada por uma lembrança em itálico. A terceira frase se apresenta em outra fonte e é, talvez, uma referência ao incremento (e venda para outros países) de produtos manufaturados com incentivos governamentais, na década de 1970. A idéia principal inaugura uma enumeração de natureza tripla (sujeito, verbo, complemento): carros ziguezagueiam buzinas, camelôs apregoam contrabandos, caixeiros chamam os passantes. A fala dos vendedores de rua intervém em negrito. O trecho citado recria a vida em movimento. Na superfície as ações são interferidas por pensamentos, no fundo (porém) se tem a impressão de um não-reconhecimento.

Amaro foi criado na Vila Reis por uma tia chamada Eustáquia. Estudou no grupo escolar do bairro do Matadouro com Silas, mais tarde seu compadre. Tia e amigo partiram “para o além”. Dia seguinte, depois do almoço e de atravessar a Rua do Comércio, o visitante decide dar uma olhada no principal beco da cidade. O cuidado de outrora foi substituído pela impressão de um “fedor que parecia emanar do chão, como se em um pântano de bosta”581

. Nada da dona Bibica, nem da dona Olga da lembrança. Ver Zé Pinto o faz lembrar do tempo em que era repreendido por “raptar” uma couve ou levar mangas

579 Op. Cit., p. 191. 580 Op. Cit., p. 193. 581 Op. Cit., p. 192.

142

sem aviso. Nada da tia, nada de Silas. O Zé Pinto que lhe apresentam não é nem a sombra daquele homem que impunha respeito. A fala de Josemar ajuda a entender o processo que consumiu ao tio e à Vila Teresa:

O beco mesmo, nós só estamos esperando ele morrer pra derrubar as casas... Não sei na época do senhor, outros tempos, mas agora é só marginal... barra-pesada... até na polícia metem medo... Eu é que não enfrento os caras! Gente que não tem nada a perder... (...) Se quiser, depois a gente volta lá, o senhor vai ver, uma miséria só, tudo caindo aos pedaços, porque ninguém quer perder tempo nem dinheiro consertando aquilo (...).582

Cai tudo aos pedaços porque o compromisso para fazer com que as coisas funcionem (como no tempo áureo do tio) se desvaneceu. Outra população ocupou o assentamento industrial. Pessoas sem emprego, provavelmente sem estudos, sem família sólida, nem “nada a perder”. A visita ao beco leva Amaro à lembrança de Margarida, a vizinha morena dois anos mais nova, que cantava “em cima” da música do rádio (no tempo em que a rádio impunha sucessos). O colorido da descrição da casa da moça é uma evidência de alegria na lembrança: “Na casa geminada, a janela onde Margarida debruçava suas negras tranças interrogativas era azul, a porta, zarcão, e a espremida faixa da parede

ocre”583. Márcia e Toninha, personagens apresentadas em “A decisão”, compartilham o tempo de mocidade com a vizinha da lembrança colorida. Na sua festa de quinze anos, Amaro lhe diz ao ouvido que ainda casará com ela. Mas São Paulo se interpõe no caminho e Margarida casa com outra pessoa, cria uma família, faz a sua vida.

Um novo acesso da doença leva Amaro a procurar um lugar onde beber. O álcool apenas acentua o mal-estar provocado pela visão das deteriorações: “o que restava de seu corpo mirrado desmoronava, esmigalhado pelas lembranças”584. Até as lembranças entram

em uma sorte de declínio. O pedido inicial de uma cerveja e uma dose de cachaça, transformam-se na desproporção de duas garrafas em questão de horas. Por volta das seis da tarde retorna à hospedagem. A caminhada até o hotel e a observação do que acontece na rua, levam-no a repensar a ausência dos filhos e da ex mulher. E revelam (isto apenas ao leitor) a enorme distância que o separa dos que teoricamente são seus seres próximos.

Antônio Português -dono da mercearia e pai biológico de Marquinho- é o seguinte destino de Amaro. Com noventa anos cumpridos e fama de memorioso, o vizinho do beco dá uma “luz” ao visitante. A conversação “acontece” em negrito. Amaro sabe que Margarida é filha de dona Tita e seu Crispim, sabe que um dos irmãos se chama Jacinto.

582 Op. Cit., p. 193.

583 Idem ibidem. Os destaques são nossos. 584 Op. Cit., p. 195.

143

Enquanto isso, o esforço de Antônio Português é colocado nos seguintes termos: “olhos fechados, descendo o poço escuro do antes”585

. Depois de quase um século de vida, o ato de “lembrar” equivale ao ingresso no negrume de um túnel. É uma pena infernal. A preocupação agora não é quem vai lembrar de um fato em específico, senão quem lembrará. A “descida” leva ao retirado dono da mercearia a uma Margarida que mora em Taquara Preta, casada com um sobrinho da Filhinha (esposa de Antônio). Encontrar em idade avançada as figuras da juventude, leva Amaro a se perguntar se “esse” será seu fim586

. É óbvio que prefere um fim diferente. Do beco, o viajante faz uma nova volta até se deter no endereço indicado. O caminho físico se desdobra mentalmente na época em que reparou pela primeira vez na jovem mulata: debutante, retraída, acompanhante da mãe na missa dos domingos e longe de obséquios-pretendentes (pipoca, maçã-do-amor, quebra- queixo). Esses traços acordam no jovem Amaro “o ainda inominado sentimento, (...) já prenhe de tristeza que o acompanharia amarrada ao calcanhar pelo resto dos dias”587

. Desde então este homem se sente escravo de uma tristeza.

Frente ao portão da casa assinalada sofre uma nova queda e pela primeira se vê no Inferno provisório uma elipse gráfica. Trata-se de uma tarja escura, literal, na quinta linha da página. Não deve ser um acaso a coincidência entre o nome do lugar em que se encontra (Taquara Preta) e o borrão no texto (tarja preta, omissão, desmaio, remédio de alto risco... efeitos colaterais da lembrança?). A descrição que segue o sinal esclarece a dúvida sobre o acontecido: uma mulher oferece um copo de água-com-açúcar, as pernas estão em alto, a visão embaçada, o suor frio, músculos frouxos... sintomas conhecidos. Rapidamente se entende que o acesso foi causado pela iminência do encontro com Margarida. A moça que atende o doente não é quem este procura, mas sabe quem é Margarida e infunde esperanças para uma nova busca.

Amaro pega um ônibus em direção a Ibraim. A visão da paisagem aponta um processo de decadência, de queda: “um carro-de-boi agoniza, um rancho destelhado, (...) a poeira ressecando a graxa das correntes operárias, as árvores ruças”588. Ao descer na parada

final, pergunta no botequim, no armazém, no orelhão e no posto de saúde pela chácara de dona Margarida. A procura da enfermeira finaliza com um grito de sucesso e uma ficha na mão: “Margarida de Souza Zoccoli!”589. O extenso prontuário denota fraqueza de saúde.

Dali do posto, aos poucos, Amaro descobre que o amor de sua juventude é conhecido na 585 Op. Cit., p. 196. 586 Idem ibidem. 587 Idem ibidem. 588 Op. Cit., p. 198. 589 Idem ibidem.

144

redondeza como “Margarida, a do Chicão”, e que esta se encontra internada em Juiz de Fora. O leitor (pela sua parte e sem atingir algum tipo de especificidade) ata os fios sangüíneos ao lembrar que Maria Zoccoli590 é a parteira da Micheletta velha na primeira

história de Mamma, son tanto felice. Embora sobrenome nas histórias do “Inferno”, em algumas regiões da Itália a palavra “zoccola” tem a acepção de dama-da-noite.

Parado frente ao endereço que deve ter obtido com a enfermeira, Amaro sofre os sintomas. Prestes a esboçar uma pergunta, interrompe a caminhada frente a um quadro inquietante: uma mulher grávida e jovem, envelhecida, ferve roupas em uma lata de óleo. Três crianças rondam-na, todos em farrapos, um com feridas nas costas. Apesar da dificuldade para respirar, Amaro se manifesta. A moça estranha o interesse e ele se identifica como parente distante de Margarida, vindo de São Paulo. Convencida, a jovem explica que a “dona” está em um hospício em Juiz de Fora e que todos os anos é internada três ou quatro vezes por causa das crises nervosas. O breve monólogo da mãe elucida as filiações: ela e Laércio (filho mais novo de Margarida e Chicão) são os pais de Clayton, Shirley e Piriá (os três meninos). O sogro, Chicão, era um sol de pessoa exceto quando bebia. O álcool é problema de família. Laércio não bebe, mas gosta de jogar buraco no botequim. Já o Baiano, irmão de Laércio, faleceu. Do “arbusto genealógico”, o leitor identifica o Baiano com o moço que tentou (sem resultados) salvar o alemão do desaparecimento no Rio Pomba (em “O alemão e a púria”) e com o vizinho que salvou Marquinho de um afogamento (em “A mancha”). Enquanto a esposa de Laércio faz uma atualização para Amaro, este sofre um desmaio. Os brancos que em outras narrativas aparecem literalmente na página, em “Vertigem” são experimentados pelo protagonista. Dona Olinda (possivelmente uma vizinha) assiste à mãe com o desmaiado.

Um ônibus une o trajeto de Cataguases a Juiz de Fora. Distante, mas de forma poética, o narrador conta que antigamente os tuberculosos eram enviados para Santos Dumont e os loucos para Barbacena591. Quem dá curso a esta lembrança deve ter nascido depois da década de 1930, pois entre 1890 e 1932 o município mineiro de Santos Dumont chamava-se Palmira. Já no município de Barbacena, o primeiro hospital psiquiátrico foi criado em 1903592, dando lugar por lei (e depois de muitas reformas) ao Centro Hospitalar

Psiquiátrico de Barbacena em 1977. Não é ali que acontece o restante da história, mas o dado ajuda a contextualizar o comentário do narrador.

590 Ruffato, Mamma, son tanto felice. Vol. 1 de Inferno provisório, p. 15. 591 Ruffato, O mundo inimigo. Vol. 2 de Inferno provisório, p. 200.

592 Disponível em: http://www.museudapsiquiatria.org.br/predios_famosos/exibir/?id=1.

145

De Margarida, então, Amaro sabe que é viúva, que tem ao menos quatro netos, que a sua saúde acusa grande sofrimento e que se encontra em um hospício em Juiz de Fora. Na rodoviária de Cataguases, o viajante engole um “dramin com café”593. Considerando

que tais comprimidos se utilizam como tratamento para labirintites e “estados vertiginosos de origem central” (como indica a bula) é facilmente perceptível a ansiedade do paciente. Entre a observação de que será a sua primeira vez em Juiz de Fora e a chegada ao internado (durante quase uma página), Amaro mistura lembranças de São Paulo com momentos em Cataguases. O tom das recordações assinala um espírito em desassossego. A associação inicial é com as impressões de sua chegada à Estação da Luz. Enquanto internamente sente medo, aos demais dá a impressão de ser um “menino com tino”594. Ali acaba São Paulo. Em algum momento da vida em Cataguases, o homem testemunhou o assassinato de um gato. A recordação parece isolada, mas deixa perceber uma preocupação do Amaro-observador pelo entorno/destino de pequenas grandezas:

(...) um gato desfilava garboso pela estreita estrada do muro, pelagem preta-branca, amestiçado de persa, e todos os dias passeava sua majestade, ignorante do mundo, só ele, o cimento, a altura e o azul, pum!, pum!, pum!, o corpo inerte, ensangüentado, dentes à mostra, e a cabeça do seu Zé Pinto subiu num latão, espiou, Merda, estragou o couro! 595

O pensamento volta a São Paulo, parece que não mais ao dia de sua primeira chegada. A quantidade e diversidade das pessoas atrai seu olhar. Encontra-se diante de indivíduos desempregados, travestis e mães de família. A fala solta de uma prostituta, que menciona a palavra “viagra”, assoma uma datação pois a pílula azul foi sintetizada e patenteada por um laboratório estadunidense em meados da década de 1990. Apesar então do volume transcorrer (em grande parte) na década de 1970, o detalhe do fármaco e a menção de um veículo da década de 1980 na história de Zé Pinto596, são indícios das dobras que se estenderão nos volumes restantes do romance. Ainda por via das dúvidas, mais uma lembrança confirma esta interpretação e fecha o parêntese da memória: ter visto de longe a Quim, o filho caçula, vendendo música regravada na Rua Santa Ifigênia.

A entrada de Amaro no Hospital São Marcos, em Juiz de Fora, interrompe a torcida de um enfermeiro pelo Tupi no Campeonato Mineiro. À pergunta implícita sobre o quarto da paciente, o torcedor dá uma indicação e explica que uma visita “nessa fase do

593 Op. Cit., p. 201. 594 Idem ibidem. 595 Idem ibidem.

146

tratamento é importante”597. A única advertência que recebe o visitante é tocar a campainha

se a senhora ficar exaltada. No cômodo, Amaro encontra um corpo para lá de magro que respira com dificuldade. Está deitado, com as mãos e as pernas atadas à cama, de costas à porta e com o olhar em direção à parede598. Na cama, ela confunde o visitante com alguém

de sobrenome Pereira599 e chama por ele oito vezes. Amaro esclarece que não é Pereira e relembra de seu medo do escuro, existente desde a infância. A associação não é casual. Nas visitas a Zé Pinto, Antônio Português e agora a Margarida, o fator comum tem sido a treva (outras personagens do “Inferno” padecem a mesma condição). O negror e a ruína, que também pode ser entendida como uma espécie de escuridão. Por outra parte, segundo a etimologia grega, o nome Mefistófeles significa “inimigo da luz”. A associação infernal é inevitável. Dar-se conta de que o visitante não é Pereira coloca a paciente em um estado de

No documento Uma fábula no compasso da História (páginas 138-147)