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Capítulo 6: Apresentação e discussão dos resultados

6.1. Narrativa I: da história e dos lugares

6.1.1. A génese

De regresso ao nosso primeiro objetivo específico, em que nos propúnhamos- Conhecer

o que deu origem ao modelo organizacional subjacente ao modelo de Educação Especial na Madeira ao longo de quatro décadas e meia, ao qual justapusemos a questão de investigação Que acontecimentos e propósitos originaram o atendimento à Educação Especial na Madeira? - sentimos necessidade de aprofundar, analiticamente, o fenómeno em estudo, no

sentido de sermos capazes de enquadrar a historicidade, em que o mesmo surgiu e se edificou, de acordo com a recomendação que Cardoso (2005) nos faz, ao alertar: “(...) é preciso saber o que individualiza o acontecimento para torná-lo digno da história” (p. 107).

Deste modo, olhando a História, qual nó górdio que sustém o passado, abraça o presente e reserva o futuro, ousámos revisitar os marcos históricos da Educação Especial na Madeira, que remontam à época longínqua de 1965, ano que determinou o seu ponto de partida, desde logo, sob a alçada de um serviço público, com características muito próprias, enquanto organismo administrativamente autónomo, o qual viria a assumir, posteriormente, o formato de uma Direção Regional, tendo vigorado com essa estrutura orgânica até à sua extinção, no ano de 2011.

Entretanto, para melhor compreendermos a História de uma região torna-se indispensável expandir, profusamente, o olhar pelos acontecimentos de ordem mundial, no sentido de, melhor informados, podermos estabelecer elos comparativos com o locus da nossa realidade. Neste âmbito, apercebemo-nos de que a referida leitura da realidade revelava que, em matéria de Educação Especial, a época de 1950/1960 evidenciava um mundo que votava ao esquecimento e à ocultação as pessoas com deficiência que, mesmo tendo sido referenciadas com algum diagnóstico, eram, maioritariamente, atendidas em instituições asilares de caridade.

A propósito desta circunstância de exclusão e de segregação, a nível global, o Conselho Nacional de Educação (1999), numa resenha histórica acerca desta temática, reportando-se à situação das pessoas com necessidades especiais, na segunda metade do século XX, admitia:

“o deficiente era visto como um ser estranho, eventualmente prejudicial, que convinha afastar da vida colectiva (...) as medidas de que era objecto revestiam-se do carácter de ajuda de tipo assistencial e/ou médico” (p. 1).

Esta prerrogativa só começou a ser contrariada, como já afirmámos anteriormente, na era de sessenta, com a intervenção de Binet e Simon quando, com os seus testes, foram, paulatinamente, fazendo catapultar um modelo médico de classificação e de diagnóstico, na tentativa de que, a partir da sistematização das problemáticas, se induzissem respostas, em conformidade com as mesmas.

Por conseguinte, surgiram os internatos e as instituições de solidariedade social e, mais tarde, as escolas especiais que inauguram um modelo de atendimento alternativo àquele que vigorara anteriormente.

Revelou-se interessante constatar, quer na análise documental, quer nos relatos dos nossos entrevistados, que foi também na década de 60 que, sob a influência da conjetura internacional e nacional, elencada precedentemente, desabrochou a história da Educação Especial na Madeira.

A este propósito Aguiar (1996), evocando o ano de 1961, afirma que a Junta Geral do Distrito Autónomo da Madeira, na pessoa do seu Presidente, consciente das dificuldades experimentadas pelos pais de crianças surdas, abandonadas à sua sorte, convidou dois docentes madeirenses para frequentarem, em Lisboa, o Curso de especialização de professores para a educação de surdos e outros deficientes da audição e da fala (p. 4).

Esta referência torna-se deveras importante, na medida em que o regresso destes dois professores - Dina Gomes e Eleutério de Aguiar, no ano de 1963, fez despoletar o início de um intenso trabalho de sinalização e diagnóstico da população surda na Madeira e no Porto Santo a que Aguiar (1996) se refere, ao afirmar: “(...) deste levantamento e despiste, feito em 1963, pelos vários Concelhos do Arquipélago, resultaram 175 casos de pessoas com deficiência auditiva dos 0 aos 65 anos (...)” (p. 6).

Na entrevista realizada a uma ex-aluna surda e atualmente docente de Língua Gestual Portuguesa - E19-MF, escutámos o percurso inicial, enquanto aluna da Educação Especial, narrado nos seguintes termos:

(...) nasci em 1974 (...) entrei no Instituto de Surdos com dois anos e meio (...) fiquei até aos 14 anos (...) até ao quarto ano, entretanto saí do primeiro ciclo com acompanhamento da Educação Especial (...) hoje acho que foi tarde (...) foi muito tempo até ao quarto ano (...) havia muitos surdos, eram muitos surdos mesmo, a turma era só de surdos não havia LGP, eram gestos da Madeira, para se expressar era com mímica, para se comunicar era com gestos, era tudo muito básico, o que

o professor ensinava era tudo muito básico, eram palavras, eu repeti o primeiro ano e depois o segundo ano, repeti sempre os anos todos. Por isso é que só terminei com 14 anos. Fui para o quinto ano com 14 anos e durante o ano fiz 15 anos. Mas perdi muito tempo antes (...)

Era um esforço muito grande ter que olhar para o professor quando ele oralizava. Eu sentia que era um esforço muito grande, não conseguia aprender a 100%, a informação passava, a minha irmã foi uma grande ajuda, a minha irmã sabe comunicar por gestos, os professores da outra escola não sabiam nada, não sabiam gestos nenhuns, não havia intérprete (...)

Era um esforço muito grande para perceber o que o professor estava a oralizar e apanhar algumas coisas, de forma a que fizesse lógica, mas perdia mesmo muita informação, tinha sempre negativa a Português. A Matemática conseguia, Geografia também ia conseguindo aos poucos, mas o Português era horrível, tinha sempre tudo errado, ficava irritada (...) (E19-MF).

A constatação destes acontecimentos terão desencadeado, não só o início de um atendimento sistemático e formal aos surdos da ilha da Madeira e do Porto Santo, mas também uma série de medidas, nas quais os referidos docentes se destacaram, através da assunção de diferentes papéis e cargos, ao longo de várias décadas, no âmbito da Educação Especial.

Posteriormente, ter-se-ão seguido outras ações, desta natureza, dirigidas ao despiste e intervenção junto da população com outras problemáticas.

Foi este dinamismo, liderado pelo Professor Eleutério, coadjuvado pelos primeiros especialistas, em Educação Especial, que chegaram à Madeira, que um dos nossos entrevistados - E7-EF descreveu entusiasticamente:

(...) deu-se início aos trabalhos da Comissão Concelhia de Levantamento e Despiste da Deficiência (CCLDD) para o levantamento e rastreio da deficiência na Madeira (…)

(...) o mais importante foi o rastreio da deficiência, casa a casa e, como se dizia, vereda a vereda, com a colaboração das escolas primárias, dos postos de saúde existentes, das casas do povo, dos párocos (…) isso levou-nos a fazer um planeamento das necessidades futuras (...)

(...) e a classe política rendeu-se e calou-se quando começou a ouvi-lo (ao Professor Eleutério) falar dos deficientes espalhados pela ilha, criados em caixotes de madeira, presos dentro de grutas ou mesmo amarrados, a viver lado a lado com (ou) em arrecadações e chiqueiros, no exterior das casas (...)

(...) ele sabia disto tudo e, nos seus acesos discursos, ia contando aquilo que ninguém queria assumir (...)

(...) era um poeta, um lírico, mas tinha razão e tocava o coração dos mais insensíveis e políticos arrogantes (...) foi mesmo revolucionário! (...) (E7-EF).

Esta informação, reveladora dos esforços no combate à segregação, que grassava na altura em que os serviços da Educação Especial foram lançados, revela-nos que, após a sinalização dos casos, eram definidas a posteriori linhas de atuação, circunstância que também nos foi apontada pela entrevistada E3-ZM, quando afirmou:

(...) isto foi uma luz muito grande para os surdos (...) a Junta Geral disponibilizava um carro para as equipas irem para o campo à procura de alunos deficientes que as escolas não sabiam ensinar (...)

(...) depois, as crianças, alguns adolescentes e até jovens vinham para o Funchal para colocações familiares disponibilizadas pelos Assuntos Sociais para poderem frequentar a escola para surdos (...)

(...) o apoio precoce aos mais pequeninos também não foi esquecido (...) a educadora ia dar apoio a casa (...) só depois dos 4 anos é que as crianças vinham para uma colocação familiar no Funchal (...) (E3-ZM).

Foi neste contexto que, após terem sido diagnosticados os casos de surdez, surgiu, em 1965, a primeira escola para surdos, intitulada Instituto de Surdos do Funchal, que teve como primeiro diretor o Professor Eleutério de Aguiar. O atendimento começou por abarcar 28 crianças, com idades compreendidas entre os 4 e os 12 anos, que apresentavam surdez severa ou profunda, a que se associaram também, nalguns casos, alunos com multideficiência (Aguiar, 1996).