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A dimensão macro sistémica, subjacente às Ciências da Educação, tem como ponto de partida a produção de saberes, prossegue na atenção e questionamento às vicissitudes dos ambientes (a nível micro e macro) e culmina numa conexão simbiótica de proximidade e de influência, junto dos cenários instituídos para a implementação das práticas educativas.

Consequentemente, esta circunstância também desencadeia a necessidade de se estabelecerem pontes entre o saber e os debates ideológicos que o interpretam, para que o delinear de políticas se harmonize em práticas e culturas contextualizadas, face à realidade.

Por outro lado, um dos factores inerentes ao quotidiano da sociedade e das comunidades educativas é, sem sombra de dúvida, a existência da heterogeneidade e da diferença que, para além da sua constatação óbvia, reclama das Ciências da Educação, dos sistemas educativos, dos decisores políticos e dos diversos atores educativos uma mudança paradigmática sustentada pela clarificação de conceitos e pela assunção de políticas e de práticas educativas eficazes e equitativas.

Nesta linha de pensamento Sacristán (2012), no Prólogo à obra “Pensando el futuro de la educación” intitulado “Por qué nos importa la educación en el futuro?”, adverte-nos que:

(...) cada ser humano pode melhorar, independentemente da sua origem, raça, religião (...) o aluno quer aprender quando o orientamos adequadamente, quando o comprometemos, quando o escutamos, quando o responsabilizamos e argumentamos as exigências que tem de superar(p. 5).

Esta imperativa e indispensável preocupação face à diversidade fez despoletar o questionamento acerca da relação intrínseca entre as Ciências da Educação, a educação (dita regular) e a Educação Especial, facto que tem determinado um acérrimo debate e uma inacabada

reflexão acerca das fronteiras, simbiose, modus operandi, ambivalências, convergências e divergências que envolvem estes sectores.

A alimentar o referido debate encontra-se um dos apanágios do presente milénio que é, indubitavelmente, a mudança, presente nos contextos educativos da atualidade que, comparativamente ao que era prática no passado, exibem, cada vez mais, a presença de populações oriundas de todas as origens, classes sociais, minorias e culturas. Estas, em épocas anteriores, viam o seu acesso limitado e eram encaminhadas, natural ou formalmente, para saídas não escolares ou de escolaridade mais reduzida, em termos temporais.

A este propósito, um dos Relatório da UNESCO, datado de 2015, defende:

(...) Inclusão e equidade na e por meio da educação são o alicerce de uma agenda de educação transformadora e, assim, comprometemo-nos a enfrentar todas as formas de exclusão e marginalização, bem como disparidades e desigualdades no acesso, na participação e nos resultados de aprendizagem. Nenhuma meta de educação deverá ser considerada cumprida a menos que tenha sido atingida por todos. Portanto, comprometemo-nos a fazer mudanças necessárias nas políticas de educação e a concentrar nossos esforços nos mais desfavorecidos, especialmente aqueles com deficiências, a fim de assegurar que ninguém seja deixado para trás (p. iv).

Entre o público-alvo, acima referenciado, encontram-se os alunos com necessidades educativas especiais que, sub-repticiamente, fizeram (e continuam a fazer) vacilar políticas educativas plasmadas em normativos magistralmente orientados para o padrão, para o sucesso linear, para o altamente provável, para o excessivamente previsível.

Desta circunstância podemos depreender que é impossível ignorar a existência destas multifacetadas minorias que, uma vez chegados aos estabelecimentos de educação, requerem o redimensionamento de processos, de condições, de contextos e de recursos humanos e materiais para poderem conviver, singrar e realizar o sucesso a que aspiram.

Esta causa tem vindo a juntar defensores dos direitos humanos, investigadores, famílias dos educandos e restantes atores educativos num esgrimir de forças, junto do poder político e da sociedade, no sentido de legitimar os fundamentos conceptuais e o direito à igualdade de oportunidades em políticas públicas percursoras de medidas que se desejam promotoras do respeito e atenção relativamente à diferença.

É no sentido de responder a esta circunstância que a Educação Especial surge, enquanto ferramenta, percurso e processo orientador da inclusão de minorias, tal como constata a UNESCO, em 2005:

A Inclusão, tal como a conhecemos hoje, teve as suas origens na Educação Especial. O desenvolvimento no âmbito da Educação Especial envolveu uma série de etapas durante as quais os sistemas educativos experimentaram diferentes formas de dar resposta às crianças

portadoras de deficiência e aos alunos com dificuldades de aprendizagem. Nalguns casos, a Educação Especial foi ministrada como suplemento à educação em geral, noutros casos aconteceu inteiramente separada. Nos últimos anos, a forma de sistemas separados foi preterida, tanto pela perspectiva dos direitos humanos como do ponto de vista da eficácia (p. 6).

Alicerçada nestes princípios constatamos, então, que a Educação Especial, enraizada e alinhada com os valores da equidade, mas em ofegante contracorrente, em relação ao status quo da norma estabelecida e toldada por múltiplos desafios e impasses, desponta, enquanto área do conhecimento. Depois, a pouco e pouco, de modo autónomo e incisivo, reajusta e reorienta o seu olhar, face à inegável emergência da diversidade que não pode esperar para ser atendida e que urge acolher e integrar, na sociedade e nos diferentes contextos educativos.

No entanto, a presença da heterogeneidade, no seio dos sistemas educativos e das escolas, determinou e continua a alimentar um amplo e constante debate, acerca do conceito de inclusão, bem como ao nível da afiliação e legitimidade da área da Educação Especial, enquanto valência fundamental de conhecimento teórico e prático, relevante para o campo das Ciências de Educação.

Ambicionando ser perspetivada de modo holístico, a Educação Especial estabelece os seus alicerces na atenção e no acolhimento à diferença, na crença de que a inclusão, veiculada nos diferentes domínios da vida familiar, social, económica e cultural, faz emergir o valor e os benefícios de uma sociedade mais justa e solidária para todos, na promoção da igualdade de oportunidades, assente na não discriminação daqueles que apresentam necessidades especiais. Tudo isto, não com o propósito de se enclausurar sobre si própria, mas para devolver ao sistema educativo o dinamismo, o redimensionamento e a adequação dos seus princípios orientadores, numa perspetiva construtivista e de acordo com a diversidade dos sujeitos a que pretende responder, tal como defende Kincheloe (2006): “(...) a experiência dos marginalizados é encarada como um importante meio de ver o todo socioeducativo, não simplesmente como uma curiosidade a declarar (...) mas para formular uma reconstrução da estrutura educativa dominante” (p. 21).

No entanto, ainda que a lógica apresentada anteriormente se revista de significado e pertinência, é notório que, apesar das inúmeras recomendações, iniciativas e slogans defensores da inclusão e protagonizadas pelos idealistas e mentores da Educação Especial, a presença física dos anteriormente marginalizados, nas escolas e na sociedade, ainda não fez cair as máscaras que continuam a esconder, de forma mais ou menos velada, atitudes e olhares de manifesta exclusão.

Muitas das coisas ditas acerca de educação e de reforma (...) não fazem sentido (...) Elas representam o oposto do pensamento crítico, não correspondendo ao que sabemos sobre como e debaixo de que condições os seres humanos adquirem competências específicas. No entanto, elas são repetidas com frequência, mesmo perfilhadas e promovidas negligentemente por académicos e políticos. Esta retórica despropositada produz um efeito negativo profundo na educação. Enjeita-a, desvirtua-a, desfigurando-a até à caricatura. Mutila as práticas educativas, minando os alicerces intelectuais da educação(p. 12). Ainda que expressa em múltiplas publicações e diversos normativos, a implementação de uma educação assente na diferenciação curricular e pedagógica, no seio da escola inclusiva, como resposta ajustada às minorias, evidencia uma grande distância entre as recomendações deixadas pela investigação científica, o plano de intenções dos decisores políticos e educativos e a sua exequibilidade no terreno das práticas.

Deste desiderato nos dá conta Mazzotta (2011) quando atesta: “(…) o processo de pensamento é muito mais ágil do que as transformações sociais que dele derivam, há enorme descompasso entre aquilo que se pensa e deseja e o que deve ser transformado” (p. 387).

Torna-se então necessário e decisivo voltar a repensar a Educação Especial, revisitar o seu conceito, reequacionar os seus princípios, as suas potencialidades e os seus prováveis núcleos dinamizadores, para que a mesma seja catapultada no sentido de práticas eficazes, que desencadeiem, no seio das sociedades, uma cultura verdadeiramente inclusiva e acolhedora da diferença, enquanto valor que urge ser reavivado e conjugado pelos seus diferentes protagonistas.

Ao longo dos tempos, a investigação, a reconceptualização e a eleição de respostas multifacetadas, no atendimento da população com necessidades especiais, revelaram, elegeram e estabeleceram diferentes paradigmas, determinados por razões históricas, culturais, económicas e educativas, acerca dos quais é importante e interessante refletir, de acordo com o que Kincheloe (2006, p. 20) apelida de “conhecimento interpretativo” para, a partir dele, moldar uma visão do mundo, estabelecendo a generalização de vias de progresso e de saberes contextualizados, em que todos, sem exceção, devem tornar-se emissores e receptores do conhecimento.

Olhando para o enquadramento histórico-temporal do atendimento aos deficientes e marginalizados, podemos situar, primitivamente, a exclusão a que os mesmos eram submetidos na Antiguidade e na Idade Média, onde o culto do belo e do bem supremo determinava que se aniquilassem ou segregassem todos quantos apresentavam anomalias físicas ou psíquicas,

frequentemente associados à simbologia do mal ou do demónio e que, por isso, deviam ser erradicados, definitivamente, da presença dos seus semelhantes.

É no início do século XIX que se enceta a tendência de recuperação das pessoas com deficiência, através de respostas meramente assistencialistas oferecidas, maioritariamente, em instituições religiosas e asilos, na tentativa de preservar, ainda que de modo muito precário, o direito à vida.

Perante as dimensões reafirmadas e recomendadas, em 1948, pela Assembleia Geral das Nações Unidas presentes, até aos nossos dias, na Declaração Universal dos Direitos do Homem que, no seu artigo 26º, defende que “(...) todo o ser humano tem direito à educação (...) esta deve orientar-se no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento dos direitos humanos e liberdades fundamentais”, as respostas estritamente assistencialistas, para com os diferentes, começam a ser postas em causa.

Passada uma década sobre a publicação da Declaração, referida anteriormente, Binet e Simon - pioneiros na construção de uma escala psicométrica de inteligência - impulsionaram um novo olhar, relativamente à questão dos esquecidos e/ou escondidos das sociedades.

Fizeram-no através dos estudos pioneiros que desenvolveram, no âmbito da classificação e da avaliação psicológica de crianças com deficiência mental, estreando um modelo de diagnóstico médico, a partir do qual se determinaram categorias de classificação, enquanto patamares diferenciados de análise, compreensão e intervenção, junto das crianças que, em relação aos seus pares, evidenciavam problemas e comportamentos atípicos.

Fruto dessas descobertas e avanços, surgiram as primeiras respostas alternativas ao atendimento, com a organização de estruturas de atendimento, em função da deficiência diagnosticada, que se constituíram na génese de uma intervenção específica e focada nas populações que atendiam.

Estas respostas, oferecidas muitas vezes em regime de internato, e localizadas maioritariamente em aglomerados urbanos que o êxodo rural, desencadeado pela era industrial, ditara, apesar de altamente segregadoras, revelaram-se como respostas de apoio mais benevolentes e justas, comparativamente ao abandono extremo e cruel, verificado em épocas anteriores.

Estávamos perante o período a que Caldwell, referenciado pelo Conselho Nacional de Educação, apelidou de:

Período de despiste e de segregação (...) período das técnicas psicométricas, do modelo médico-diagnóstico que conduz sobretudo à preocupação em classificar e diagnosticar, em vez de educar os alunos (...) A comunidade científica da época pensava que prestava um

melhor serviço às crianças educando-as conjuntamente com outras crianças deficientes, protegendo-as, assim, dos normais. Segregadas, elas seriam educadas de forma controlada,

sendo objeto de diferentes cuidados médicos, psicológicos e sociais (...) utilizando métodos normais, não só não poderiam funcionar autonomamente, como poderiam prejudicar as crianças normais (Caldwell, cit. por CNE, 1999, p. 18).

A pouco e pouco, a consistência do avanço científico nas áreas da medicina, da educação, da psicologia e da sociologia, foi determinando uma maior consciencialização no que se refere à problemática da deficiência e, consequentemente, as respostas de atendimento em estruturas segregadas, começaram a revelar-se inadequadas e inaceitáveis, para muitos dos casos referenciados com problemas, desencadeando movimentos e lutas, na procura de alternativas.

2.5 Do paradigma médico ao paradigma educativo: a emergência da educação