• Nenhum resultado encontrado

A Igreja Católica na manutenção da Ordem Social vigente

Fundador do Mouvement Économie et Humansisme

3.3. A Igreja Católica na manutenção da Ordem Social vigente

Analisando a “Encíclica Rerum Novarum”, publicada em 1891 pelo papa Leão XIII, observamos a intenção da igreja católica em apaziguar os ânimos dos trabalhadores e minimizar os conflitos e tensões sociais da luta de classes. Entretanto, ao mesmo tempo em que chamava a atenção para a necessidade dos patrões e empresários cederem aos direitos trabalhistas e não serem tão truculentos com seus empregados, legitimava e reconhecia o direito à propriedade privada dos mais ricos e, a nosso ver, pregava uma sociedade quase estamental, sem mobilidade dos mais pobres, que deveriam respeitar seus patrões e a riqueza destes, criticando o que pregavam os socialistas sobre “violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e

tender para a subversão completa do edifício social” (Leão XIII: 1891).

Mas, e isto parece ainda mais grave, o remédio proposto está em oposição flagrante com a justiça, por-que a propriedade particular e pessoal é, para o homem, de direito natural. Há, efectivamente, sob este ponto de vista, uma grandíssima diferença entre o homem e os animais destituídos de razão. [...] O que em nós se avantaja, o que nos faz homens, nos distingue essencialmente do animal, é a razão ou a inteligência, e em virtude desta prerrogativa deve reconhecer-se ao homem não só a faculdade geral de usar das coisas exteriores, mas ainda o direito estável e perpétuo de as possuir, tanto as que se consomem pelo uso, como as que permanecem depois de nos terem servido.” (idem).

Segundo a visão católica, esta carta Encíclica trazia avanços sociais para os trabalhadores, pois pregava a caridade dos mais ricos e o respeito aos mais pobres, que deveria ser garantido através de direitos e deveres dos patrões e dos Estados. Porém, ao analisarmos com mais profundidade, é possível afirmar que a “Rerum Novarum” consolidava o apoio da igreja ao Estado Liberal e com isso aderia de forma mais oficial ao capitalismo industrial, defendendo a propriedade privada dos mais ricos e o direito ao enriquecimento como fruto do trabalho.

Lebret, apesar de seu engajamento na leitura marxista, refutava em aceitar a teoria da luta de classes, pois, segundo ele, esta não contribuia com uma cultura de paz e harmonia entre os homens, uma vez que visava a aniquilação da classe dominante em detrimento de mais liberdade para a classe trabalhadora, que passaria a administrar o processo histórico. Assim, nos anos 1940, Lebret adotou em seu discurso a dinâmica do bem comum, ao invés de luta de classes, e que mais tarde seria atualizada para desenvolvimento harmônico.

A dinâmica do bem comum, apropriada por Lebret, a nosso ver, também era extraída da própria “Rerum Novarum”, numa crítica aos socialistas, apontando para o que Leão XIII chamava de “Concórdia de Classes”, segundo a qual:

O homem deve aceitar com paciência a sua condição: é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível. É, sem dúvida, isto o que desejam os Socialistas; mas contra a natureza todos os esforços são vãos. Foi ela, realmente, que estabeleceu entre os homens diferenças tão multíplices como profundas; diferenças de inteligência, de talento, de habilidade, de saúde, de força; diferenças necessárias, de onde nasce espontaneamente a desigualdade das condições. Esta desigualdade, por outro lado, reverte em proveito de todos, tanto da sociedade como dos indivíduos; porque a vida social requer um organismo muito variado e funções muito diversas, e o que leva precisamente os homens a partilharem estas funções é, principalmente, a diferença das suas respectivas condições.

Desta forma, a “Rerum Novarum” insistia em combater a luta de classes, afirmando que:

O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado. Isto é uma aberração tal, que é necessário colocar a verdade numa doutrina contrariamente oposta, porque, assim como no corpo

humano os membros, apesar da sua diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos outros, de modo que formam um todo exactamente proporcionado e que se poderá chamar simétrico, assim também, na sociedade, as duas classes estão destinadas pela natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente em perfeito equilíbrio. Elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital.

Guiado por estas diretrizes, o pe. Lebret substituiu as críticas rancorosas de Leão XIII aos socialistas, no final do século XIX, suavizando o discurso contrário a estes e absorvendo elementos críticos aos defensores do capitalismo e do desenvolvimento econômico a qualquer custo, passando a pregar o desenvolvimento harmônico, na tentativa de unir trabalhadores e empresários. Assim, tornando-se um crítico do liberalismo econômico, passou a pregar maior regulação, afirmando que “a política do desenvolvimento

harmônico é controvérsa à acumulação sem ordem” (Perroux: 1967: p. 547)48.

Desta forma, Lebret apontava, já no final dos anos 1930, que crescimento e desenvolvimento não eram sinônimos, e que mais importante do que crescer economicamente a qualquer custo, era desenvolver a sociedade, perpassando áreas além da economia, como saúde, educação e cultura.

Se por um lado Lebret vinculava-se aos estudos marxistas que criticavam o capitalismo, por outro, seu vínculo de sacerdote com a igreja católica o tornava crítico do socialismo. Em 1937, a carta Encíclica “Divini Redemptoris” reafirmou a hostilidade da igreja católica ao comunismo e ao marxismo. Porém, segundo Pelletier (1996: p. 115), existia uma conexão de Lebret com Marx, de forma que “une analyse (celle Marx) et une expérience (celle du père Lebret) se

rencontrent dans une meme indignation devant le système capitaliste“ 49.

48

O conceito de desenvolvimento harmônico foi criado pelo economista François Perroux, parceiro de Lebret na fundação do Mouvement Économie et Humanisme que passou a difundir esta doutrina por uma economia humana.

49

Tradução nossa: A análise (de Marx) e a experiência (de Lebret) se encontram na mesma indignação sobre o sistema capitalista.

Unindo sua experiência prática em pesquisas e enquetes sociais com seus estudos teóricos, Lebret buscou adeptos e companheiros que pudessem colaborar numa perspectiva de humanização da economia, e François Perroux foi um dos principais auxiliares que contribuiu com a fundação do Mouvement Économie et Humanisme, na França. Porém, sua constituição formal ocorreu somente em 1941, mais próximo do fim da Segunda Guerra e durante o governo de Vichy, pois, apesar da efervecência intelectual dos anos 1930, conforme já apontamos, Lebret não foi capaz de ultrapassar os limites do pensamento, devido ao avanço do nazismo, culminando com o estouro do período de guerra50.

Conforme apontamos anteriormente, além de Perroux e Lebret, participaram da composição inicial do Movimento o filósofo Gustave Thibon, Jean-Marie Gatheron, René Moreaux e Alexandre Dubois. Todos católicos praticantes e com certa influência no meio intelectual e político francês. Porém, conforme já colocamos, o avanço do nazismo atrapalhou o lançamento do Movimento no final dos anos 1930, retardando-o para o ano de 1941, numa perspectiva de recuperar a economia francesa quando a guerra terminasse e engajando-se no governo de Vichy.

Ainda que Lebret discordasse do conceito de luta de classes, difundido por Marx, sua primeira idéia de concepção de um movimento de estudos de economia humana baseava-se no interesse em fundar um centro de estudos marxistas, pois acreditava que, assim, poderia contrapor os males do capitalismo e ao mesmo tempo do socialismo. Para ele havia uma:

Position d’antithèse massive et brutale entre la thèse débordée qu’était lê capitalisme et la synthèse equivoque dont le national-socialisme se masquait. Centrer son effort sur le marxisme, c’etait em réalité analyser et juger lê trois

50

Além desses fatores econômicos e políticos, 1939 marca a igreja católica com a ascensão de um novo papa, o Cardeal Pacelli assume a liderança do Vaticano adotando o nome de Pio XII. Seu papado tem duração de cerca de quinze anos e é marcado por forte retrocesso social da igreja, condenação do diálogo com o Marxismo, alinhamento com os Estados Capitalistas e duras críticas ao envolvimento de padres e bispos com questões políticas e sociais, num período que deu início à Guerra Fria.

mystiques conquérantes qui, ensemble, partaient à l’assaut du monde. [...] Mon désir était seulement de travailler à partir du marxisme, sur l’objet nouveau détecté par lui dans le champ des sciences humaines et selon la méthode d’expérimentation objective préconisée ou du moins rêvée par son inspiration première: ce faisant, meilleur nom, j’appelais – l’Économie humaine. Par ailleurs, il s’agissait moins d’étudier historiquement une doctrine théorique que de la confronter avec les deux faits dont elle proclamaiet et dont j’apercevais la solidarité: le fait économique et le fait humain.“ (In: Revue Économie et Humanisme nº 17, janv.-fév. 1945)51.

L’économie humaine n’est ni pour le marxisme, ni contre le marxisme ni au-delà du marxisme. Elle part de la réalité économique que Marx, parmi tous les économistes, a le mieux cernée dans toutes ses dimensions et elle aplique à cette réalité une méthode originale : l’enquête socio-économique impliquant les acteurs concernés dans son processus, c’est-à-dire dans la collecte des données, l’analyse des structures, la découverte des mesues à prendre pour passer d’une situaton inhumaine ou mais humaine à une situation plus humaine. (Puel, 2004: p. 72) 52.

51

Tradução nossa: Posição de antítese maciça e brutal entre a tese liberalizante que era o capitalismo e a síntese equivocada sobre o que se encobria nacional socialismo. Centrar seu esforço sobre o marxismo, era na realidade, analisar e julgar os três místicos conquistadores, juntos se lançavam no mundo. [...] Meu desejo era somente trabalhar a partir do marxismo, sobre o objeto novo detectado por ele no campo das ciências humanas e segundo o método de experimentação objetiva preconizado ou ao menos visto em sua primeira inspiração: pensando num nome melhor, eu o chamaria – a economia humana. Por outro lado, tratava-se menos de estudar historicamente uma doutrina teórica do que confronta-la com os dois fatos que ela proclamava e que eu percebia como a solidariedade: o feito econômico e o feito humano.

52 Tradução nossa: A economia humana não é a favor do marxismo, nem contra o marxismo e

nem à margem do marxismo. Ela parte da realidade econômica que Marx, entre todos os economistas, melhor a perseguiu em todas as suas dimensões e ela aplicava a esta realidade um método original: a pesquisa sócioeconômica compreendendo os atores envolvidos no processo, quer dizer, na coleta de dados, análise das estruturas, descoberta de medidas a tomar, para passar de uma situação inumana ou menos humana para uma situação mais humana.

Desse modo, a Economia Humana reconhecia o marxismo enquanto um método científico, desenvolvido por Marx para a interpretação sócioeconômica e seus desdobramentos, ainda que o papa Pio XII houvesse proibido seu vínculo com o catolicismo, em 1940.

Para Pelletier (1996), o projeto de Lebret remonta a 1928, na tentativa de reencontro da tradição católica com as ciências humanas, a exemplo do que ele havia realizado com a juventude marítima de Saint-Malo, e salienta que “L’économie humaine doit être une discipline de synthèse, lê point de rencontre

de toutes lês sciences de l’homme et de la societé“ 53 (idem : p. 42). No entanto,

percebemos que o engajamento de Lebret no diálogo com o Marxismo só ocorreu no final da década de 1930, pois o Mouvement de Saint-Malo ainda trazia uma visão mais conservadora por parte do padre dominicano, cujo objetivo principal era, o de combater o avanço da simpatia pelo socialismo.

Já em 1941, momento de constituição do Mouvement Économie et Humanisme e fundação da Revue Économie et Humanisme, o padre Lebret, após ter dialogado com o Marxismo e demais pensadores econômicos, havia ampliado sua visão de mundo e sua maneira de interpretar a realidade social e humana presente na Europa. Mantendo a tradição católica, que havia proibido o diálogo da igreja com o marxismo (1937), Lebret passou a usar o marxismo enquanto ciência e método para interpretação econômica e social. Tem se aí a conotação do Mouvement Économie et Humanisme enquanto um núcleo de estudos sobre Marx, como era a idéia original de Lebret, que foi sendo alterada à medida que os demais colaboradores se aproximaram do Movimento.

É importante situar os colaboradores que fizeram parte do ato de fundação de Economia e Humanismo em 1941, em Lyon, pois se trata de pessoas ligadas à elite intelectual e com certa influência e prestígio no governo francês. Neste sentido, fazemos menção, de modo especial, ao economista François Perroux, autor da teoria sobre o desenvolvimento harmônico e um dos principais intelectuais a contribuir na formação econômica de Lebret. Em 1941, ano de fundação de Économie e Humanisme, era professor na Faculdade de Direito de Paris e já tinha muita reputação como economista. Segundo Pelletier

53

Tradução nossa: “A economia humana deve ser uma disciplina de síntese, o ponto de encontro de todas as ciências do homem e da sociedade.”

(1996: p. 34), foi o principal intelectual a introduzir na França o trabalho da escola marginal vienense, rompendo com a tradição “Durkheiniana” na sociologia francesa. Ligado ao governo francês, atuou como membro da Comissão de Constituição para Vichy, e no mesmo período lançou a Revista Cahiers Communautaires, com estudos sobre a população francesa.

Outro militante atuante foi René Moreaux, que já havia colaborado com Lebret no Mouvement de Saint-Malo e participou da reforma dos pescadores. Ligado à Marinha, como Lebret em seu início de carreira, nos anos 1930 dirigiu a Revista da Marinha Mercante. Coube a ele presidir o Mouvement Économie et Humanisme até 1944, durante a transição para o pós-guerra.

O Movimento também contou com o apoio do filósofo Gustave Thibon, chamado de filósofo dos agricultores, devido ao seu trabalho nas regiões agrícolas da França, e de membros do governo francês. Além de Perroux, um alto funcionário fez parte da fundação, o agrônomo Jean-Marie Gatheron, ex- chefe de Gabinete do sub. Secretário de Estado da Agricultura (1936-1938). Também o empresário católico Alexandre Dubois, dirigente do Centro dos Jovens Patrões, considerado de idéias avançadas e progressistas, que implantou em sua usina um sistema de remuneração comunitária e durante o fim da segunda guerra participou da Legião Francesa de Combatentes, fez parte do EH.

Além destes participantes, uniram-se ao grupo os padres Loew e Moos que, juntamente com Lebret e os demais participantes, foram responsáveis pela redação do ato de fundação, chamado de “Manifeste d’Économie et Humanisme”, publicado em fevereiro de 1942.

No manifesto, os autores pregavam EH como um Movimento em busca da esperança de uma ordem social cristã capaz de conciliar o ideal comunitário e a organização corporativa dos profissionais. O rigor ideológico contido no manifesto, pregando uma cultura de paz e tecendo duras críticas ao liberalismo econômico, constituiu, para Pelletier (1996) e Puel (2004), uma virada política um tanto modesta, porém um tormento teórico capaz de municiar a intelectualidade francesa contra o regime de Vichy.

Neste primeiro momento, sob a presidência de René Moreaux, a principal tarefa do EH foi a edição da Revue Économie et Humanisme, com tiragem

mensal. Seu conteúdo trazia artigos e ensaios sobre economia e críticas políticas ao regime de Vichy, além de análises sociológicas sobre ações do empresariado e do Estado francês, além do avanço do nazismo durante a segunda-guerra. Sobre a revista editada pelo Mouvement, é importante salientar que o Brasil começou a recebê-la a partir da 4ª edição, graças a assinatura feita pelo Prof. Luiz Anhaia Mello, então diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.