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“... a experiência do trágico é a própria experiência metropolitana” Manfredo Tafuri (1985, p. 56)

À luz da razão, as grandes cidades são objetivamente estruturadas como máquina funcional, reproduzindo-se pelos próprios mecanismos de condicionamento, à realidade dos modos de produção industrial. Esta máquina funcional é estruturada, assim como a fábrica, para a extração de mais valia, ou seja, no caso da grande cidade, capacidade de sempre expandir mais sua produção, o capital excedente, seu domínio e seu poder. E este foi o desafio imposto a São Paulo nos anos 1940, para alinhar-se ao contexto econômico e urbanístico internacional.

Analisando a constituição das metrópoles no contexto europeu e norte- americano, podemos entender que estas são resultados de ações tomadas desde o século XVIII e consolidadas ao longo do XIX, em decorrência da implantação do capitalismo industrial como novo modo de produção econômica. Porém, para Simmel, Benjamin e Engels, além da questão econômica, há também a questão da cientificidade presente em seus estudos, fazendo assim alusão à idéia de razão, que, por sua vez, está intimamente ligada à idéia de poder. Deste modo, podemos entender que uma forma de expressão de poder no capitalismo se dá pela quantidade de dinheiro que a atividade de produção é capaz de gerar e assim movimentar a cidade, local onde está instalado o ‘motor da sociedade’.

O discurso adotado pela elite paulistana, a partir da década de 1940, após o enriquecimento obtido pela indústria, em decorrência da Segunda Guerra Mundial, era de ambição. Entretanto, muito antes disso, já desde a segunda metade do século XIX, São Paulo se preparava para tomar a dianteira do desenvolvimento nacional e tornar-se a referência brasileira no que diz respeito às grandes cidades industriais, atrelando-a um projeto burguês.

Libertada de seu passado colonial, São Paulo vai aos poucos conquistando sua imagem de cidade grande e moderna, vinculando ainda mais os seus movimentos urbanísticos à economia capitalista. E como o capital produtivo não conhece fronteiras para sua capacidade de expansão, assim como o aumento do capital excedente não leva em consideração as condições geográficas do local, a cidade rompe com os limites da territorialidade física e expande o domínio e importância de seu território. Expande seus limites territoriais, ignorando as barreiras naturais geográficas, abrindo espaço para a suburbanização. Assim, São Paulo, enquanto metrópole, consolida uma imagem que se assemelha com a da máquina, figura simbólica e predominante no período de consolidação do capitalismo industrial no mundo.

Figura 7 Foto: Alice Brill

O rápido crescimento paulistano atraiu a curiosidade de estudiosos sobre as bases para tal organização. Num estudo sobre a cidade de São Paulo, o geógrafo Pierre Deffontaines aponta que “a forma desta cidade é devida, não

tanto a causas geográficas, mas a um passado histórico, orientado por atos de vontade do homem” (1939, p. 4). Já Preston James (1946) enxerga

semelhanças no crescimento de São Paulo com o de Chicago e Detroit, o que o leva a afirmar que “trata-se de uma cidade americana”. Da mesma forma que Vidal De La Blache (1922, p. 285) diz que “quem percorre a capital paulista e,

principalmente, quem a sobrevoa, sente imediatamente que tem diante de si uma grande cidade, comparável a muitas das que se encontram nos Estados Unidos. São Paulo é bem uma cidade americana e, como tal, uma perfeita expressão do americanismo”.

Esta discussão de autores estrangeiros sobre São Paulo só demonstra a importância que a cidade tomou frente à questão urbanística no Brasil. Embora ainda menor em população, que o Rio de Janeiro, as ações empreendidas anteriormente e o enriquecimento da indústria projetaram São Paulo, ao final dos anos 1940, à condição de metrópole industrial brasileira. Porém, percebemos que é ausente das esferas de planejamento urbano uma discussão sobre as benesses desta condição. Enquanto na elite industrial burguesa se instaurava um discurso comemorativo sobre o desenvolvimento econômico atingido, a ponto de celebrar a perda dos limites físicos da metrópole. Não se percebe o distanciamento do subúrbio em relação aos bairros centrais. Este discurso comemorativo deixa os olhos dos homens públicos inebriados e os impede de perceber que:

Como acontece em todas as grandes cidades, os contrastes existentes dentro do ‘mosaico’ paulistano chegam a ser chocantes. De um lado, as alamedas ensombradas e os amplos espaços ajardinados do Jd. América ou do Jd. Europa, de outro, os quarteirões compactos, densamente povoados, do Brás ou da Mooca. Que diferença entre as mansões senhoriais da Avenida Paulista e Higienópolis e as habitações estandardizadas das ‘vilas’ operárias de muitos trechos da área periférica. Ou, ainda, entre o conforto dos edifícios de apartamentos e a sordidez dos porões mal arejados ou dos ‘cortiços’ onde

impera a promiscuidade. Estes são o preço doloroso, mas inevitável, das grandes aglomerações urbanas (idem, p. 19).

De acordo com os dados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, a partir dos anos 1940 verifica-se que o crescimento populacional passa a ocorrer de forma mais intensa nos bairros suburbanos e nota-se o início de perda de população em bairros mais próximos do centro. São Paulo tinha em 1940, 1.580.300 habitantes, saltando em 1950 para 2.688.901, um crescimento de 66%, que se intensificou ainda mais na década seguinte. Este fato mostra que o crescimento populacional estava vinculado à população de menor renda, trabalhadora da indústria ou não, prestadora de serviços à elite burguesa.

Através das tabelas apontadas pelos Censos de 1940 e 1950, é possível compararmos a evolução populacional de São Paulo em uma década e verificarmos o forte crescimento das áreas periféricas (cidades vizinhas) e suburbanas em São Paulo (bairros afastados do centro).

CENSO IBGE – 1940

PESSOAS PRESENTES EM DOMICÍLIOS SITUADOS NOS QUADROS INDICADOS

MUNICÍPIOS E DISTRITOS

TOTAIS Quadro Urbano Quadro

Suburbano

Quadro Rural Total Homens Mulhere Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres

SÃO PAULO 1.326.261 655.673 670.588 569.647 592.246 49.683 46.906 36.343 31.436 Santo André 89.874 46.488 43.386 35.237 34.216 4.595 3.512 6.656 5.658 São Bernardo do Campo 11.685 6.555 5.130 3.217 3.006 1.177 440 2.161 1.684 Guarulhos 13.439 6.991 6.448 2.737 2.637 687 599 3.567 3.212 * São Bernardo do Campo ainda estava vinculado a Santo André, bem como Mauá, Paranapiacaba e Ribeirão Pires, e a população aferida é parte integrante do total do Município de Santo André. (para saber somente Santo André, subtrair, São Bernardo)

Tabela 2 Fonte: CENSO IBGE, 1940, p. 559 – Quadro 63

CENSO IBGE – 1950 Zonas Fisiográfica s, Municípios e Distritos População Presente

Totais Quadro Urbano Quadro Suburbano Quadro Rural

Total Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres São Paulo 2.198.096 798.527 837.470 210.995 205.150 76.443 69.511 Santo André 127.032 36.663 36.380 17.777 17.113 10.191 8.908 São Bernardo do Campo 29.295 8.418 8.013 2.670 2.532 4.121 3.541 Guarulhos 34.683 5.128 4.902 3.229 3.002 9.841 8.581 Tabela 3 Fonte: CENSO IBGE, 1950, p. 160 – Tabela Mostra por domicilio.

E deste modo, São Paulo apresentava prestes a completar seu quarto centenário de existência (1954), um cenário muito mais caótico que o verificado nas décadas finais do século XIX, ao mesmo tempo em que apresentava significativo saldo na balança comercial e crescimento econômico jamais visto em outro momento de sua história23. É importante mencionar que São Paulo não

era a única cidade brasileira, na primeira metade do século XX, a deter atividades industriais, passar por transformações urbanísticas e receber em grande quantidade população como força de trabalho. Quase que da mesma forma, havia “movimento” semelhante também nas capitais de Estado, como o Rio de Janeiro (então capital federal), Recife e Salvador, além de cidades localizadas no interior do território brasileiro.

No caso de São Paulo, podemos dizer que desde os anos 1930 ocorria, de forma cada vez mais clara, a vitória da cidade burguesa sobre a cidade real, formada pelo trabalhador, até então operário industrial. Mas como é possível perceber, esta vitória do projeto burguês para a cidade de São Paulo não se

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Por ocasião do complexo cafeeiro, o desenvolvimento econômico esteve atrelado não só à cidade de São Paulo, mas ao estado como um todo. Já nos anos 1950, pós-guerra, o maior crescimento foi exclusivo da cidade de São Paulo, sede da indústria.

dava sem ônus algum e não se mostrava finalizado na primeira metade do século XX. Permanecia e se intensificava a cada ano, de forma que o sonho de consolidar-se enquanto metrópole industrial brasileira era o novo degrau a ser conquistado pelo projeto burguês no final dos anos 1940.

Assim, com o perverso processo de metropolização ocorrido em São Paulo, novos males eram gerados e velhos problemas agravados, de modo que é possível afirmar que a cidade se fragmentava em duas: uma em proximidade à área central, onde estavam os inebriados pela modernização, e outra localizada nos arredores do centro e próximo às cidades vizinhas, como Santo André, São Bernardo do Campo, Guarulhos e Mauá. Porém, “com tudo a cidade

oficial não ‘via’ a cidade popular que surgia a seu lado. Mais do que isso: as intervenções realizadas no centro buscavam encobrir tais discrepâncias, ocupando o campo visual dos espectadores dominantes” (Campos, 2002, p. 91),

num movimento de expulsão, desdém e desconhecimento, face àquilo que não combinava com as conquistas modernas advindas do progresso capitalista industrial.

E assim, a propaganda sobre as conquistas rumo à metrópole cresciam entre a população, enquanto o cenário permanecia sendo um canteiro de obras, cada vez mais empreendidas pelos investimentos imobiliários privados, e vários edifícios arranha-céus eram inaugurados no centro da cidade, como marca dos novos tempos. Já na periferia, só o pó em dias de sol, o barro em dias de chuva, o breu total à noite, nas ruas sem luz destes bairros, de onde era possível contemplar a visão noturna de São Paulo, que já vislumbrava alguns de seus arranha-céus, num quadro de total descaso ou desconhecimento por parte dos administradores e também dos urbanistas.

Mas, não havia tempo para assimilar estes problemas e demandas, pois isto denunciaria a incompetência do poder público e o descaso dos chamados homens bons para com os trabalhadores mais pobres. E por isso, neste período, estas áreas não faziam parte dos planos e projetos de melhoramentos urbanísticos para a cidade.

Neste sentido, chamamos a atenção para o trabalho do então prefeito Wladimir Toledo Piza, em sua gestão entre 1956 e 1957, quando criticou o tratamento empírico que fora dado pelos engenheiros e urbanistas à cidade de

São Paulo e chamou à responsabilidade de realizar um diagnóstico, a fim de conhecer as reais demandas da metrópole, solicitando ao Padre Louis-Joseph Lebret que coordenasse através da SAGMACS, um trabalho de pesquisa urbana para apontar tais demandas.

2.0. Introdução

No capítulo anterior, percorremos a formação histórica do urbanismo em São Paulo, até os anos 1930 e 1940, finalizando este período com uma alusão à imposição de um projeto de metropolização em curso a partir da década de 1930, e consolidado nos anos 1950 e 1960, na capital paulista. Cabe a este capítulo a continuidade e aprofundamento da discussão sobre estes aspectos, bem como a elucidação sobre o processo de periferização da metrópole, intensificado a partir dos anos 1930 e reconhecido pelas autoridades na década de 1950, período que coincide com a eclosão do fenômeno da metropolização.

Desde o final do século XIX, com o fortalecimento econômico através do complexo cafeeiro, sobretudo nas duas últimas décadas, até os anos 1930, São Paulo tomava a dianteira no desenvolvimento industrial brasileiro. É neste período que a economia paulista se prepara para a consolidação de sua posição no mercado nacional, que segundo Cano (1977, p. 15) “se daria após a ‘Grande

Depressão’”. Neste capítulo discutiremos esta vinculação da indústria ao projeto

de metropolização empreendido pelos paulistanos na primeira metade do século XX e as conseqüências destes projetos, como a eclosão da periferia paulistana e a centralização de São Paulo frente às cidades próximas, como Santo André, Guarulhos, Mauá, Mogi das Cruzes e Suzano que passaram a exercer o papel de cidades dormitório, reafirmando a configuração espacial paulistana enquanto resultado de um desenvolvimento econômico concentrado.

Lembrando que a fundação da cidade de São Paulo, no século XVI, vincula-se à ação dos padres da Companhia de Jesus, com destaque principal para José de Anchieta, que impôs um método de intervenção na cultura local indígena, culminando com a aculturação deste povo nativo e transformando-os em homens urbanos, chamamos a atenção para dois aspectos – a forte vinculação com o estilo de vida europeu e católico, e a presença de um padre introdutor de modos de vida e, assim, de uma reforma social. O percurso deste capítulo é finalizado com um outro padre ligado à igreja católica. Séculos mais tarde, o francês dominicano Louis-Joseph Lebret, introdutor de novas ferramentas de pesquisas sociais, que foram incorporadas ao planejamento urbano brasileiro, sobretudo na cidade de São Paulo.

2.1.

O Planejamento Paulistano: