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O debate acerca da urbanística: primeiras ações

“A glória do paulista é ser ‘avançado’. Ele despreza os países ‘atrasados’; esses que somam menos trilhos, menos estações, menos mobiliário vienense em madeira recurvada, menos eletricidade nas luminárias das lojas, mais casas antigas cor-de-rosa, azuis, marrons e brancas com arcadas, mais cadeirões em jacarandá maciço e entalhado, mais igrejas azuis e brancas de dois sinos e com amplos pórticos em estilo jesuíta, mais passantes de ponchos, chapéus de feltro, lenços púrpura, botas de cano curto e pregueadas. Toda a tradição e o que dela subsiste é uma injúria lembrar ao Paulista [...]”.

Paul Adam, in: Les visages du Brésil, 1914 : p. 106-107

Desde as últimas décadas do século XIX, São Paulo aderiu ao ideário da modernidade e buscou alinhar-se com os modelos de reforma urbana e social, a exemplo do que ocorreu em capitais européias como Londres, Paris, Viena e Berlim. Analisando este contexto das intervenções urbanas, na modernidade, podemos afirmar que o mais significativo exemplo de reforma urbana é

empreendido por George-Eugène Haussmann para Paris, nos anos 1850. Sob o patrocínio econômico e apoio político do governo francês, Haussmann conseguiu impor um modelo de modernização urbanística em Paris, rompendo em definitivo com seu traçado ultrapassado de cidade medieval. Assim, ele conseguiu empreender o saneamento e canalização do Rio Senna e reconstruir as habitações em cerca de 60% da cidade.

Este movimento de modernização empreendido por Haussmann em Paris, influenciou o debate acerca da urbanística mundial, ganhando ecos na Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, e chegando mais tardiamente no Brasil, pelas mãos dos arquitetos franceses Alfred Agache e Antoine Bouvard, que atuaram tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo. A movimentação dos franceses em importantes cidades brasileiras não demonstra unicamente o eco do urbanismo Haussmanniano, mas sim do alinhamento brasileiro com as idéias internacionais e com a compreensão da necessidade de incorporar no Brasil as técnicas modernas, alinhando-se com o contexto internacional. Porém, cabe-nos dizer que o trabalho urbanístico de Bouvard não está filiado à prática modernizadora de Haussmann, inaugurando espaço para a prática do urbanismo culturalista17.

Assim, São Paulo percebe que para tornar-se de fato uma capital moderna, como quisera na segunda metade do século XIX, era preciso empreender grandes obras de modernização urbana, para garantir o crescimento de seu parque industrial e assim atrair maior capital financeiro e produtivo, além de população para trabalhar na indústria. Abre-se então campo para a atuação dos engenheiros e urbanistas, visando a modernização da cidade. Apresentamos a seguir o organograma da Prefeitura paulistana com a Diretoria de Obras Municipais (ainda chamada de Intendência), instituída por Antonio Prado em 1899.

17 O urbanismo culturalista opõem-se as práticas modernizantes de Haussmann, e estão mais

próximos do modelo espanhol de Ildelfonso Cerda para Barcelona no mesmo período. Já no século XX a prática culturalista será difundida pela Europa por Camilo Sitte e de uma maneira mais contemporânea por Françoise Choay.

Organograma da Prefeitura Municipal de São Paulo em 1900

Fonte: Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, Departamento do Patrimônio Histórico, 199, 1991

Sob a coordenação do engenheiro Victor da Silva Freire, ocorreram importantes ações saneadoras, modernizadoras e de melhoramentos na área central da cidade e, seguindo como exemplo o ideário haussmanniano para Paris, importantes obras de embelezamento foram realizadas. Assim, a Praça da República foi ampliada, o Jardim da Luz reformado, empreendeu-se a abertura de avenidas, entre outras importantes realizações, que incrementaram o debate acerca do urbanismo paulistano.

Além do trabalho de Victor Freire frente à Diretoria de Obras, é importante notar que se instalou em São Paulo um clima de renovação urbana, em que sanear era preciso e também visto como sinônimo de embelezar. Notamos aí a legitimação da segregação espacial em São Paulo, pois a abertura de novos loteamentos por parte de incorporadores imobiliários, bem como a polarização na região das estações ferroviárias, passaram a induzir as intervenções públicas e melhoramentos da infraestrutura urbana, tendo como objetivo final o processo de parcelamento das terras em proximidade a essas obras.

A dinâmica intra-urbana do crescimento paulistano viria a direcionar e transferir os pontos mais valorizados da cidade para os lados do norte e oeste, fazendo

com que se ocupassem as partes planas e salubres situadas entre o vale do Tietê e o espigão do Caaguaçu (onde se construiu a avenida Paulista). [...] Assim, a partir da década de 1880, os investimentos públicos passam a se concentrar nos novos e elegantes bairros de Campos Elísios, Higienópolis e região da Paulista. (Simões Jr: 2004, p. 53-55).

Chamamos a atenção para as práticas urbanísticas implantadas em São Paulo visarem não só os melhoramentos da cidade e seu alinhamento com o debate internacional, mas também aprofundar em São Paulo as condições necessárias à consolidação da cidade enquanto espaço da burguesia capitalista do Brasil. Assim, notamos que o nascedouro da urbanística brasileira, ainda que aliado ao debate internacional e ao ideário da modernidade, fundou-se também numa matriz de dominação burguesa.

Enquanto dominação ideológica, a cidade burguesa não permitia falhas, e por isso era preciso que tudo funcionasse e com eficiência. Não cabia ali os problemas que vigoravam desde a fundação da vila de São Paulo, como falta d’água, ruas tortuosas, dificuldade de locomoção e interligação com os bairros, entre tantos outros problemas de ordem urbanística. Além disso, era preciso disciplinar esta população aos novos ares da capital moderna. Era possível perceber um movimento em curso, que visava a aceleração da vida, e “nesta

operação, cidade e sociedade vão se modificando mutuamente. Mudanças que incluem a aceleração da vida e uma mudança na forma de percepção do mundo” (cf. Janjulio)18.

Assim, além das obras de melhoramentos e embelezamento, também se abriu espaço para a atuação dos engenheiros sanitaristas, visando impor sua visão de cidade higiênica, sem espaço para a sujeira, o rústico, a falta de técnica e o antigo. Nos anos 1880, teve início o trabalho da Companhia Cantareira de Água e Esgotos, dando início à importação dos materiais hidráulicos, inclusive para uso doméstico, e em 1883 passou a funcionar o

18 A autora analisa as transformações urbanas e nos modos de compreender a cidade de São

Paulo, frente à formação de uma elite burguesa na América Latina, no final do século XIX até os anos 1930. JANJULIO, Maristela da Silva. Sinais de modernidade: São Paulo burguesa no início do século XX. In: Anais do X Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. Recife, PE: 2008.

primeiro sistema de esgotos da cidade, beneficiando os moradores da região da Consolação, Higienópolis e Luz.

No anseio destas mudanças, impostas pela hegemonia burguesa, em 1894 foi promulgado pelo governo da Província o Código Sanitário do Estado de São Paulo, e no ano seguinte a prefeitura promulgou o Código de Posturas, dando diretrizes aos paulistas de como deveriam comportar-se e realizar as instalações hidráulico-sanitárias em suas residências. “A ampliação da

capacidade de armazenamento de água e a instalação de um sistema de distribuição domiciliar permitiram que novos empreendimentos imobiliários fossem realizados em áreas afastadas do tradicional centro histórico da cidade, definindo assim uma nova lógica de ocupação nos espaços urbanos” (Simões

Jr.: p. 59). Foi assim, que ocorreu o deslocamento da elite paulistana para a região da avenida Paulista e, mais tarde, para os bairros Jardins, implantados pela Companhia. City, de origem inglesa.

Quando dizemos que as operações de melhoramentos e de implantação de infraestrutura legitimaram a segregação sócioespacial em São Paulo, buscamos explicitar que o discurso e a prática urbanística atrelam-se a uma noção de ideologia e não são pura retórica tecnicista. Assim, Andrade afirma que:

As operações de reforma da cidade, que marcaram de modo decisivo a história urbana capitalista, redefinindo periodicamente sua forma, vão se caracterizar pela introdução de algo novo na cidade. Expressão de uma nova classe que ascende ao poder, manifestação de interesses econômicos emergentes ou de inovações técnicas, as reformas urbanas pioneiras são constitutivas do próprio processo de formação da cidade capitalista. (1992, p. 66).

Desse modo, era preciso impor de forma definitiva o ideário da modernidade burguesa, implantando os equipamentos urbanos presentes nas capitais européias, como Teatros, Bibliotecas, Mercados e lojas de artigos importados. Porém, apesar das obras iniciadas e empreendidas desde os anos 1880, muito ainda era preciso fazer para dar a São Paulo este aspecto de capital moderna brasileira. Assim, é possível afirmar que a mentalidade e o

ideário moderno, impostos ao longo do XIX, permitiram a construção de uma imagem de cidade moderna, mas na prática, as intervenções ainda se distanciavam muito de tal conquista.

Na primeira década do século XX, uma gama de projetos marcou o debate acerca da questão urbana. Coincidentemente, os projetos discutidos localizavam-se na área central da cidade, decorrentes da polarização do setor oeste e propostas para a região do Anhangabaú. No caso do Anhangabaú, a discussão sobre um projeto de melhoramentos para o local teve início após a construção do Teatro Municipal, projetado por Ramos de Azevedo, também autor do Mercado Municipal e de outros importantes edifícios públicos em linguagem eclética, imitando o neoclássico europeu. Diante de exuberante obra arquitetônica, não cabia mais um fundo de vale que interrompia19 a ligação entre

um lado e outro da cidade. E assim, entre 1911 e 1913, São Paulo discutia, segundo Freire, seu mais importante projeto urbano: a urbanização do Vale do Anhangabaú.

Surgem, a partir daí, propostas abrangentes de remodelação para a área: inicialmente, a do vereador Augusto Carlos da Silva Teles, em 1906; depois da Diretoria de Obras da Prefeitura, apresentada em fins de 1910, ao se encerrar a gestão do prefeito Antonio Prado; e, por fim, a do governo estadual, sob a coordenação de Samuel das Neves. (Simões Jr: 2004, p. 81).

Esta discussão polêmica atravessou a década, culminando com o convite por parte de Freire, para o urbanista francês Antoine Bouvard, que no período se encontrava em Buenos Aires. Apesar da polêmica levantada, é importante atentar para a importância do debate e da construção da urbanística paulistana, através deste projeto para o Anhangabaú. Até então, as obras de melhoramentos eram discutidas por foros ligados à Intendência Municipal, sendo baixa a influência de técnicos alheios ao poder público. Visando uma solução conciliatória, “Freire sugere que seja examinada com atenção a

19

Neste período o vale já não era mais um impedimento na ligação entre a São Paulo antiga e a nova centralidade urbana, pois já contava com o Viaduto do Chá, implantado nos primeiros anos do século XX.

experiência do país nosso vizinho, a Argentina, que pouco tempo antes, em 1907, havia passado pela fase de renovação de sua capital” (idem, p. 125).

O projeto de Bouvard para o Vale do Anhangabaú, foi influenciado pelo urbanismo de Camilo Sitte, que tinha um viés mais preservacionista que a modernização haussmanniana, visando assim não romper com o passado e não realizar grandes rasgos na estrutura urbana paulistana, propondo uma rua de traçado artístico no fundo do vale (quer dizer, acompanhando as sinuosidades do relevo existente – da tradição pitoresca, utilizada pelos ingleses), além da construção de alguns edifícios palacianos, que incrementariam o local enquanto cartão de visitas de São Paulo. Verifica-se aí um rompimento com o ideário Haussmanniano de abertura de grandes avenidas, dando lugar a um urbanismo mais culturalista e menos agressivo à história da cidade.

O incremento do debate acerca da questão urbanística em São Paulo, na primeira década do século, só cessou após a contratação de um urbanista internacional para conciliar um projeto de reformulação urbanística, fazendo com que a opinião pública, através de sua cobertura midiática, contagiasse parte dos moradores e a burguesia de São Paulo sobre a importância do urbanismo, bem como do estilo arquitetônico internacional. E como era impossível somente o poder público alterar a imagem da cidade através de obras de melhoramentos, abriu-se espaço para a arquitetura, sobretudo a eclética, embelezando e modernizando as casas paulistanas. Assim, consolidou-se a imagem da cidade enquanto capital industrial moderna e ampliou-se a discussão sobre os melhoramentos urbanos na região central.