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2.1.1) A institucionalização da atividade científica

Embora a iniciativa da OCDE tenha representado um passo importante, o ponto de inflexão que daria origem ao processo de institucionalização da atividade científica e tecnológica já havia sido demarcado duas décadas antes, com o advento da Segunda Guerra Mundial. Foi a partir dali, primeiro por razões estratégicas, e depois em nome do crescimento econômico e da competitividade, que estabeleceu-se nos países desenvolvidos uma drástica mudança no papel do Estado ante a Ciência.

Com o bem-sucedido Projeto Manhattan (1943-45), que resultaria na primeira bomba atômica do mundo, o governo norte-americano incluiu definitivamente Ciência e Tecnologia em sua agenda política, dando início a ações estratégicas que subsidiaram uma significativa mudança de escala nos empreendimentos científicos, com impactos diretos no desenvolvimento econômico e social (MOVERY e ROSENBERG, 2005). Com isso, a inteligência científica não seria mais uma objetivação unicamente dos cientistas, mas a expressão de uma doutrina administrativa que fundamentaria o discurso político do Estado.

O direcionamento da atividade científica pelo Estado, de maneira planejada e organizada, estabeleceu arranjos científicos e tecnológicos envolvendo universidades, institutos de pesquisa e laboratórios privados, o que levou à institucionalização da Ciência norte-

47 americana e estabeleceu as bases da Big Science, que passaria a servir de modelo para os países desenvolvidos.

Surgiriam desse cenário muitas das novas tecnologias desenvolvidas com objetivos militares durante a Segunda Guerra, mas que em seguida migrariam para o mercado de consumo civil, onde estabeleceriam a vanguarda do desenvolvimento econômico norte- americano. Entre elas, destacam-se os semicondutores, energia nuclear, satélites de comunicação, circuitos integrados, computadores, telecomunicações por microondas, radares, antibióticos, pesticidas, novos materiais, etc (BROOKS, 1986).

O ápice desse modelo ocorrerá em plena Guerra Fria, com a criação da Agência Espacial Norte Americana (NASA) e a missão que levaria o homem pela primeira vez à Lua, em julho de 1969. A partir dali, porém, começa a surgir uma crescente crítica ao gasto público em atividades com a finalidade de expandir a fronteira tecnológica. No início dos anos 1970, o Congresso dos EUA corta verbas do programa espacial e a crise do petróleo fará surgir novas urgências para a sociedade americana.

Nas décadas de 1980 e 1990, a crença de que Ciência e Tecnologia deveriam estar integradas em um sistema de planejamento abrangente para a administração da sociedade seria substituída pela noção de que Ciência, Tecnologia, Governo e Indústria deveriam estar ligados por sistemas de inovação complexos e multi-institucionais. Esse novo desenho provocaria uma drástica mudança na definição dos montantes e na repartição dos gastos entre setor público e privado.

O setor público, que em 1965 representava 67% do financiamento de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) nos Estados Unidos, irá despencar progressivamente até chegar a 27% em 2000, ao passo que o financiamento de origem empresarial ocupará o espaço deixado pelo Estado. O maior desafio das economias ocidentais, agora, será enfrentar a concorrência entre as nações capitalistas, principalmente a japonesa, que irá derrubar as vantagens competitivas dos Estados Unidos e da Europa em setores de média e alta tecnologia (FURTADO, 2005).

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2.1.2) O coração da máquina capitalista

Nesse novo cenário, o modelo linear de inovação, implantado no pós-guerra pelo governo norte-americano, passará a ser questionado por considerar a descoberta científica algo isolado, como se a Ciência fosse exógena à Tecnologia, sem se importar quão múltiplos e indiretos possam ser os caminhos que as ligam (STOKES, 1997). Em seu lugar, serão propostos novos modelos, como o elo de cadeia (KLINE e ROSENBERG, 1986), que identifica a empresa como o centro da inovação.

Em contraposição ao antigo modelo de produção científica, conhecido como Modo I, predominantemente acadêmico, impulsionado pelo pesquisador e ancorado em disciplinas bem delimitadas, surgiria agora um outro modelo, o chamado Modo II, muito mais pragmático, interdisciplinar e profundamente influenciado por interesses comerciais (GIBBONS, 1994).

Desde então, o avanço do conhecimento nos países centrais passou a estar associado ao poder econômico; o laboratório de pesquisas tornou-se o coração da moderna máquina capitalista; e a inovação consolidou-se como o motor do crescimento a partir dos esforços das instituições de pesquisa e das empresas na busca de novos mercados (NELSON, 2006).

Nesse contexto, o Estado passa a desempenhar papel indutor – e não mais de liderança - por meio de políticas que permitam a articulação entre a área de pesquisa com o setor produtivo, visando o desenvolvimento de inovações tecnológicas, tanto nas universidades como nas empresas, tendo em vista a competitividade entre as nações num ambiente crescente de incertezas.

Atualmente, conforme destaca Velho e Souza-Paula (2008, p. 10-11), em termos de conteúdo as políticas de CT&I nos países desenvolvidos buscam atender, principalmente, os seguintes objetivos, ainda que por meio de uma gama variável de instrumentos: ―fortalecimento e ampliação de uma base de conhecimento ampla e socialmente relevante; fortalecimento da interação entre os diversos atores do sistema de inovação; e descentralização das atividades de produção e uso do conhecimento, desenvolvimento regional e local das políticas para o setor‖.

49 Embora a perspectiva econômica, preconizada por diversos organismos internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), venha balizando boa parte dos debates sobre Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I), Schwartzman (1980), olhando pelo viés sociológico, argumenta que a política científica não pode ser orientada unicamente pela racionalidade econômica, dado que em algumas frentes de atuação, a exemplo da pesquisa básica, é impossível prever o tempo e os custos necessários para chegar a algum resultado. O autor destaca:

Política científica, na realidade, não é o mesmo que planejamento, e muito menos administração da Ciência. Política científica é, essencialmente, política. É necessário lembrar, ainda que rapidamente, o que significa ―política‖ para que um melhor entendimento das possibilidades de uma política científica possa surgir. Política é, em resumo, o processo pelo qual recursos escassos são distribuídos pelos diversos setores sociais pelas autoridades (SCHWARTZMAN, 1980, p. 64).

Os recursos a que Schwartzman se refere não são apenas financeiros, mas incluem outros fatores igualmente valorizados, como prestígio, facilidades e, sobretudo, poder. Segundo o autor, são os sistemas de poder que estabelecem quais são as autoridades do circuito em que se insere CT&I. Por essa razão, a regra de relacionamento entre Ciência e poder não obedece à lógica dos valores do discurso científico, e sim às pressões contingentes, partidárias e conflitivas do processo político (SALOMON, 1972, apud SCHWARTZMAN, 1980).

Corroborando essa abordagem, Rattner (In: SANT‘ANNA, 1978, p.13-14) argumenta que a escolha dos objetivos no campo da Ciência e Tecnologia não pode configurar um ato de racionalidade funcional-instrumental, mas deve ser encarada como um ato político, uma manifestação de poder, por mais que seus agentes procurem legitimar suas ações com a respeitabilidade e a neutralidade da Ciência, hoje já revista. ―Ciência e Tecnologia, na melhor das hipóteses, podem informar em termos de uma racionalidade formal e instrumental, respondendo à pergunta ―como‖ fazer, sem contudo alcançar o nível de racionalidade substancial, em que se indaga sobre o ―por que‖ e a validade dos próprios fins‖.

50 Se, conforme aponta Schumpeter (1942), o crescimento econômico resulta da articulação entre o sistema de Ciência com o setor produtivo para a geração de inovação tecnológica, é preciso lembrar que essa articulação depende em boa medida de atos no campo político, onde se confrontam posições ideológicas, interesses os mais variados e ambigüidades de todo tipo.

Como bem lembrou Sant‘Anna (1978), as condições favoráveis à incorporação da Ciência ao sistema produtivo só foram possíveis nos países industrializados por que os donos dos instrumentos de produção possuíam capacidade real de decisão no tocante à inserção da infraestrutura científico-tecnológica no sistema produtivo, capacidade esta proporcional à força dos lobbys estabelecidos com outros grupos de poder e prestígio social.

Kuhlmann (In: VELHO e SOUZA PAULA, 2008), por sua vez, observa que, até certo ponto, o desenvolvimento histórico e a configuração atual de um sistema nacional de inovação refletem as características do sistema político no qual está inserido. Exemplificando, o autor diz que, enquanto o sistema de inovação da França reflete a configuração centralizada do país, os sistemas de inovação de federações como Alemanha e Estados Unidos são fundamentados em forte infraestrutura, mecanismos de governança regionais e alto grau de autonomia para as instituições de pesquisa.

Para o autor, na prática, as políticas de CT&I envolvem uma gama de objetivos, efeitos esperados, lógicas subjacentes e premissas funcionais – que às vezes se sobrepõem ou competem entre si – refletidos nos diversos instrumentos da política. Ao mesmo tempo, cada vez mais as intervenções no setor visam a propósitos distintos e a atores heterogêneos, simultaneamente.

Isso não significa, porém, que as decisões sobre CT&I estariam sujeitas a um jogo de forças isolado da sociedade. Conforme observa Schwartzman (1980), quando o processo político é aceito como legítimo, a política científica pode ser feita de forma explicita e aberta, através da confrontação de valores, preferências e capacidade de influência dentro de regras estabelecidas. Quando, no entanto, a atividade política é considerada indigna, menor, processando-se de forma oculta e camuflada, resulta na manutenção de grupos que monopolizam as decisões.

51 Numa tentativa de evitar os modelos centralizadores, iniciou-se em meados dos anos 1990, no âmbito da Comunidade Européia, uma discussão sobre a crise de legitimidade que os formuladores de políticas de CT&I vinham enfrentando. Os debates transcorriam justamente no momento em que novos modos de governança, que proporcionavam maior transparência e prestação de contas, começavam a substituir os modelos centralizadores e a atuação de lobistas, burocratas e especialistas que influenciavam as estruturas de decisão (DAGNINO, 2007).

A partir dessas discussões, consolidou-se uma preocupação cada vez maior, por parte dos países europeus, com a democratização do saber e o sua aplicação pelo governo, o que resultaria em normas para seleção e uso baseadas no aumento da participação dos cidadãos nos processos de decisão, antes monopolizados pelos especialistas e pelos formuladores de políticas públicas. Essa nova configuração ainda não faz parte da realidade dos países periféricos, como o Brasil.

Diante do exposto, conclui-se que, se por um lado, os estímulos econômicos vêm moldando a Ciência (ROSENBERG, 2006), por outro, CT&I não são variáveis independentes do jogo político, capazes de, por si só, moldarem a estrutura e o desenvolvimento de uma sociedade. Ao contrário, sua organização e evolução dependem de um projeto social exposto de forma explicita e submetido à aprovação da sociedade.

Como observava Rattner (In: SANT‘ANNA, 1978, p. 14) desde o final da década de 1970, se esse projeto resultar de um contexto pluralista e de ampla participação democrática, o que implica na circulação de informações em volume e qualidade suficientes, o saber e o controle sobre suas aplicações permanecerá nas mãos de toda a coletividade. Ou, como diz o autor, citando Clemenceau: ―Ciência e tecnologia são assuntos sérios demais para serem deixados exclusivamente nas mãos dos cientistas e tecnocratas‖ (In: Rattner, 1978, p.14).

2.2. O sistema nacional de CT&I

Marcado por uma industrialização tardia, até recentemente o Brasil não contava com uma política de Estado destinada a conectar a área de CT&I ao setor produtivo. Com isso, em que pese o grande esforço empreendido nos últimos 50 anos para consolidar sua

52 capacidade científica e tecnológica, o país ainda não amadureceu as condições necessárias para converter conhecimento em riqueza de maneira sistematizada.

Apesar do aumento no número de mestres e doutores, bem como da crescente publicação de artigos científicos em periódicos indexados,que saltou de pouco mais de 3.000 em 1989 para mais de 19.000 em 2007 (Thomson-ISI, 2009), esta produção científica não dialoga com o setor produtivo. Em 2008, por exemplo, foram depositadas apenas 131 patentes brasileiras no Escritório de Marcas e Patentes dos Estados Unidos, contra 8.410 da Coréia, que tem uma produção científica equivalente à brasileira (UNITED STATES PATENT AND TRADEMARK OFFICE - USPTO, 2009).

Conforme observa Furtado (2005), uma das causas desse cenário deriva do fato de o sistema de CT&I brasileiro ainda estar muito concentrado no Estado, seu principal financiador. Para o autor, a iniciativa privada e o setor produtivo têm uma participação minoritária tanto do lado do financiamento como da execução da P&D. Além disso, enquanto nos países centrais as políticas de CT&I ocorrem de baixo para cima, no Brasil, a exemplo de toda a América Latina, há uma tradição de efetuar esse movimento de cima para baixo (SUTZ, 2000). São medidas pontuais, que variam de governo para governo, o que acarreta descontinuidade nos programas e incertezas nos investidores.

Como resultado desta distorção, 70% dos cientistas em atividade no Brasil estão concentrados em instituições acadêmicas, ao passo que nos países desenvolvidos 50% ou mais atuam em laboratórios industriais (CRUZ, 2006). A baixa capacidade de inovação das empresas nacionais traz conseqüências perversas não apenas para o país, que vê aprofundar o seu grau de dependência tecnológica em relação às nações desenvolvidas, mas também aos próprios cientistas. Não raro, empresas estrangeiras se apropriam do conhecimento gerado nas universidades brasileiras para patentear produtos sobre os quais passam a deter

direitos.

As razões para esse descompasso têm raízes históricas. Do período colonial até 1950 o país cresceu praticamente sem conhecer uma política de Estado voltada para CT&I (SANT‘ANNA, 1978; MOREL, 1979). Com uma economia baseada principalmente na exportação de produtos agrícolas, o Brasil formou sua força de trabalho a partir de

53 escravos, imigrantes europeus e japoneses. Nenhuma atenção era dada à Educação, muito menos à formação científica. Limitados a uma visão de curto prazo, os governantes acreditavam que a imigração eliminava o problema de treinamento e que a produção agrícola dispensava conhecimento especializado (FERNANDES, 1990).

Conforme relata Morel (1979), a herança colonial impôs uma série de entraves ao estabelecimento de uma cultura científica, que iam desde a proibição para instalação de indústrias até a deficiência no sistema escolar, passando pela inexistência de universidades e ausência de mecanismos de intercâmbio entre as instituições de ensino da colônia e as da metrópole. As raras ações contrárias a essa tendência eram empreendidas por pequenos grupos em condições de realizar seus estudos no exterior, ou pela presença esporádica de pesquisadores estrangeiros. Nesta fase, ações de estímulo ao desenvolvimento científico e tecnológico eram pontuais, quase sempre motivadas por fatores externos e em decorrência de problemas imediatos.

A situação só começaria a mudar em 1808, com a instalação da corte portuguesa e a elevação da colônia à condição de Reino Unido de Portugal. Para tornar o Brasil apto a desempenhar esse papel, a administração de D. João VI revogou o alvará que impedia a implantação de indústrias e autorizou o funcionamento da imprensa. De forma análoga, a necessidade de contar com um corpo técnico e profissionais liberais motivou a criação da Escola de Anatomia e Cirurgia na Bahia e da Escola de Anatomia, Cirurgia e Medicina no Rio de Janeiro. Além disso, foram instituídas a primeira biblioteca pública do país; a Academia da Marinha; e a Academia Militar, que posteriormente se transformaria na Escola Central, precursora da Escola Politécnica, dentre outros núcleos educacionais.

A passagem do século 19 para o século 20 marcaria uma importante mudança de cenário, principalmente na região Sudeste. Já no período Republicano, o sucesso da lavoura cafeeira paulista, impulsionado por fazendeiros de mente capitalista e burguesa, promoveu a modernização e a industrialização do país, valendo-se, sobretudo, da substituição de importações (MOTOYAMA, 2004). Cresce, então, a demanda por Ciência e Tecnologia, o que abre campo para a criação de importantes instituições de pesquisa.

54 A algumas entidades fundadas no final do século 19, como o Museu Paraense (1885), Museu Paulista (1893), e Instituto Agronômico de Campinas (1887), viriam somar-se outras, como o Instituto Bacteriológico de São Paulo (1893), Instituto Butantã (1899) e o Instituto Soroterápico de Manguinhos (1900), que em março de 1908 se tornaria Instituto Oswaldo Cruz, transformando-se numa instituição científica independente. Mais uma vez, porém, nenhuma destas iniciativas resultava de uma política deliberada para promover a Ciência. Tratava-se do mero atendimento às demandas imediatas, limitadas a ações isoladas na área de Saúde Pública e Agricultura, sem apoio do Estado, o que reforçava o caráter passivo e reativo da Ciência brasileira.