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Fruto de uma reação explicita da comunidade científica ao autoritarismo do governador Ademar de Barros, a SBPC, desde a sua criação, em 1948, tem procurado manter a postura de sentinela em relação aos movimentos do Estado. Até meados da década de 1980, a entidade se firmaria não apenas como porta voz dos cientistas, mas também como contestadora dos atos autoritários do Governo, principalmente durante a ditadura militar. Suas reuniões anuais transformaram-se em locus privilegiado e um dos raros espaços públicos para a fomentação de ideias e de debate nacional sobre temas políticos.

De acordo com Fernandes (1990), a SBPC representou a luta da comunidade científica por participação no processo de tomada de decisão do Estado na área de C&T. Com o tempo, a entidade alcançaria notoriedade pública, passando a cumprir importante papel no cenário político. A razão de ser da SBPC era defender a independência do cientista brasileiro, como expressam os seguintes itens de seu estatuto:

I) contribuir para o desenvolvimento científico e tecnológico do País; II) promover e facilitar a divulgação e a cooperação do conhecimento científico entre os pesquisadores; III) zelar pela manutenção de elevado padrão de ética entre os cientistas e em suas relações com a sociedade; IV) defender os interesses dos cientistas, tendo em vista o reconhecimento de sua operosidade, do respeito pela sua pessoa, de sua liberdade de pesquisa, de opinião, do direito aos meios necessários à realização do seu trabalho; V) promover a disseminação do conhecimento científico por meio de ações de divulgação da ciência; VI) estimular a melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis; VII) estimular a criação de instrumentos adequados que possibilitem a melhoria da qualidade da educação em todos os níveis; VIII) lutar pela remoção dos empecilhos e incompreensão que embaracem o progresso da ciência; IX) lutar pela efetiva participação da SBPC tomando posição em questões de política científica, educacional e cultural e programas de desenvolvimento científico e tecnológico que atendam aos reais interesses do país.

Um dos instrumentos mais efetivos para a realização dos objetivos da SBPC foram as reuniões anuais da entidade. Seguindo o modelo de instituições congêneres no exterior,

164 estes encontros eram considerados fundamentais para promover a troca de ideias entre cientistas de várias áreas e também com o público em geral. A primeira reunião ocorreu em Campinas, em outubro de 1949, e contou com 104 participantes. Desde então, o evento se tornaria um importante fórum para discussão não apenas de temas científicos, mas também de questões políticas, sociais e econômicas.

A entidade também ficaria conhecida por elaborar documentos e cartas de protesto ao Governo ou outras autoridades, habitualmente sob a forma de resoluções tiradas das reuniões anuais. Já em 1949 a Sociedade enviou uma carta ao governador de São Paulo contendo um ―Apelo em favor das bibliotecas científicas do Estado‖. O documento protestava contra a medida governamental que incluía as revistas científicas na categoria de material permanente que não podia ser importado.

Em 1953, a diretoria da SBPC enviou uma carta ao ministro da Educação criticando o novo currículo de história natural para as escola secundárias e, em 1958, aprovou uma moção para ser enviada ao presidente da República, protestando contra a nova lei que restringia a importação de livros, revistas e boletins estrangeiros. Em seguida, na década de 1960, a entidade moveu uma campanha contra a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Aos poucos, as críticas da SBPC à medidas governamentais sairiam de um círculo mais restrito para voltar-se a questões de maior abrangência.

Conforme relata Fernandes (1990), na décima segunda reunião, em 1960, realizada em Piracicaba, a SBPC abordou a controversa questão de ciência pura versus ciência aplicada, expondo críticas à política de financiamento da pesquisa no país. No mesmo ano, a SBPC propôs a criação de uma comissão para supervisionar a Comissão Supervisora dos Institutos de Pesquisa (Cosupi), subordinada ao Ministério da Educação. Além de não estar representada na Comissão, a comunidade científica protestava contra a importância dada à tecnologia em detrimento da ciência básica, bem como o volume do orçamento atribuído à Cosupi em comparação ao CNPq e Capes.

Em 1961, a SBPC reagiu duramente contra um decreto do então presidente Janio Quadros, que criava uma assessoria técnico-científica para o Governo Federal. O físico José Goldemberg, secretário da SBPC na época, declarou que o presidente deveria ter

165 consultado a comunidade científica. De imediato, a Sociedade nomeou uma comissão para estudar a assessoria e elaborar uma lista de nomes na qual seriam apontados ―assessores qualificados‖. Essa comissão produziu um documento inédito, intitulado ―Uma política para o desenvolvimento científico do Brasil‖.

A ideia, entre os cientistas, de que a única solução para as esporádicas ações governamentais seria a formulação de uma política científica, atingiu maturidade em 1963, durante a décima quinta reunião da SBPC, em Campinas. No encontro, a direção da SBPC apresentou moção sugerindo ao Governo a expansão do Ministério da Educação e Cultura para um Ministério da Educação, Ciência e Cultura. Também foram apresentadas outras duas moções alternativas, uma propondo a criação do Ministério da Ciência e da Pesquisa Tecnológica, e outra sugerindo a criação de um Ministério da Ciência. Nenhuma delas foi acolhida.

Com o golpe militar de 1964, a SBPC, num primeiro momento, entrou em compassou de espera. Segundo Fernandes (1990), quando o presidente Costa e Silva começou a referir-se à importância da Ciência e da Tecnologia, os cientistas se sentiram encorajados, mas também desconfiados. Havia uma clara contradição no discurso governamental. Ao mesmo tempo que implementava uma operação retorno para trazer de volta cientistas que trabalhavam no exterior, o Governo aposentava alguns dos mais eminentes pesquisadores por razões políticas.

Isso ficou claro nos episódios envolvendo a Universidade de Brasília (UnB), na capital federal, e o Instituto Manguinhos, no Rio de Janeiro, que tiveram parte de seus professores e pesquisadores afastados compulsoriamente pelo regime militar. Embora haja evidências concretas da reação da SBPC a essas medidas, expressas em moções e comunicados defendendo os cientistas aposentados por razões políticas, até o início dos anos 1970 a instituição, segundo Fernandes (1990), não ofereceu oposição direta aos militares. Uma das razões para isso eram os crescentes financiamentos à Ciência e à Tecnologia, que pela primeira vez contavam com uma política específica para o setor.

Em 1974, porém, com o fracasso do milagre econômico, os cientistas perderam o status que desfrutavam dentro do Governo e o debate sobre qual o modelo político que o país deveria

166 adotar tornou-se público. É nesse contexto que a SBPC assumirá uma vigorosa atividade política de crítica ao regime militar. Adotando o que chamava de sua ―função crítica‖, a instituição deu início a um extenso debate sobre temas econômicos, sociais e políticos.

Através destes debates, a SBPC criou um foro para a exposição de ideologias que se contrapunham à do bloco dirigente. Ademais, num país como o Brasil, onde o bloco dominante dominou ―mais pela força que pela fraude‖, a SBPC de fato contribuiu para o fortalecimento da sociedade civil, que tinha sido severamente debilitada pelos longos anos de ditadura militar. Os membros da SBPC consideravam sua atividade política extremamente importante, que os fez sentir que fortaleceu a comunidade científica brasileira e que contribuiu para a relativa liberalização da década de 70 (FERNANDES, 1990, p. 37).

A reunião anual da SBPC de 1976, realizada em Brasília, teve desdobramentos importantes no cenário político. Não só pelo fato de acontecer na capital federal, centro do poder, mas também porque dobrou o número de participantes, com grande destaque para estudantes e cientistas sociais. O modelo econômico vigente foi dura e abertamente criticado. Na época, a SBPC foi considerada como o único foro para o debate político existente no país.

Assim, o público mais diretamente afetado pelo progresso ou pelo retrocesso da ciência acha-se, no Brasil, praticamente desprovido de habituais formas de participação, de corriqueiros canais de comunicação. O que acontece? Acontece que, quando – graças a uma tradição que a SBPC tem louvavelmente sabido preservar e ampliar – abre-se, a todo esse público, a oportunidade de expor e debater uma filosofia de vida, uma formulação política, essa oportunidade é aproveitada ao máximo (ABRAMO, 1976 apud FERNANDES, 1990, p. 209) O ápice dessa efervescência política ocorreu em 1977, quando o Governo tentou primeiro adiar e depois impedir a reunião anual da SBPC, em São Paulo. A reunião não apenas foi realizada como também se transformou num fato político e passaria para a história como a ―reunião do povo‖. O evento obteve ampla repercussão na imprensa, que apoiou a postura política da Sociedade. Ficava claro, a partir daquele momento, que as reuniões anuais da SBPC representavam muito mais que um encontro de cientistas. Constituíam, também, um fórum de debates sobre o país.

As grandes mudanças na sociedade brasileira, durante este período, foram divulgadas criticamente. Mesmo sendo aquele momento o do começo do processo de abertura, a imprensa ainda estava sujeita à censura e outras liberdades civis estavam suprimidas, e a SBPC aparecia quase como o único foro de debate dos problemas econômicos, políticos e sociais brasileiros. A SBPC tornou-se o local onde o modelo econômico vigente no Brasil foi primeiro criticado, onde sugestões e

167 demandas foram feitas pela democratização e por participação (FERNANDES, 1990, p. 209)

Essa imagem, que combinava contestação e independência, seria mantida até meados da década de 1980. A partir daquele momento, com o fim do regime militar e inicio da redemocratização do país, a entidade daria início ao processo que ficaria conhecido como ―retorno às origens‖. Segundo Fernandes (1990), a ideia de uma nova definição implicava a supressão ou ao menos o controle do conteúdo político da reunião. Esta exigência era frequentemente expressa de maneira elegante e convincente, como sendo uma conseqüência de mudanças que ocorriam na sociedade brasileira, particularmente o desenvolvimento do processo de abertura e a criação de outros canais ou foros para que grupos organizados expressassem suas reivindicações.

A relação entre a abertura e o caráter da reunião da SBPC era considerada tão direta que alguns grupos mais pessimistas quanto ao futuro da Sociedade prediziam que o progresso da abertura tornaria áridas as reuniões subseqüentes. Se o papel e o curso de ação da SBPC se deviam à natureza fechada do regime, uma vez que este se abrisse, a SBPC perderia muito do seu papel público. (FERNANDES, 1990, p. 249) Entretanto, conforme observa a autora, no contexto de um Estado democrático e de uma sociedade civil forte, com grupos organizados participando da vida pública, era inimaginável que a SBPC voltasse a ser uma associação científica fraca. Certamente, a eliminação da censura à imprensa poderia tornar a cobertura das reuniões menos atraentes, já que os assuntos ali debatifos seriam discutidos em outros eventos ou por iniciativa da própria mídia.

Isso, porém, não significava o afastamento da SBPC das grandes questões nacionais. A Sociedade continuou vinculada aos grandes movimentos envolvendo Estado e sociedade, entre eles a Campanha pelas Diretas, em 1984; a Constituinte, em 1988; e o impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992.

Na última década, sua ação junto ao Estado tem se concentrado nas questões relacionadas às políticas de CT&I. De certa forma, isso confirma o discurso da ex-presidente da Sociedade, Glaci Zancan, na abertura da 54ª reunião anual, em 2002. Naquela oportunidade, ela defendeu uma correção de rota, alegando que a entidade não era um

168 partido político, ideia confirmada logo em seguida durante entrevista ao Jornal da Unicamp:

Na realidade, o que eu desejei salientar é que a SBPC é uma entidade voltada para o avanço da ciência. Logo, o debate acadêmico foi e sempre será sua principal preocupação. No passado, quando a liberdade de pesquisa e de expressão esteve ameaçada, a SBPC lutou por ela. Com isso ela se tornou um foco de resistência ao regime militar, tendo, portanto, um papel político relevante na defesa das liberdades civis. Hoje, a imprensa é livre, o sindicalismo é plural, o Congresso é atuante, os partidos congregam as várias tendências políticas. Logo, não há por que a SBPC ser principalmente um fórum de discussão de política, menos ainda de política partidária (ZANCAN, 2002, p. 10)