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3 A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO RESPOSTA ADEQUADA A

3.2 A NECESSÁRIA DIVERSIFICAÇÃO NO SISTEMA PENAL

3.2.3 A Interpretação dos Princípios Penais a partir da Releitura Paradigmática

É por esta razão que, invocando, antes de tudo, a causa de existir do Estado, qual seja, o respeito à dignidade da pessoa humana e o encontro da solução mais satisfatória aos indivíduos na solução de seus conflitos, por meio da substituição das suas vontades, é que se passa a demonstrar a possibilidade de utilização de formas diversas na solução de conflitos jurídico-penais.

Nesse contexto, afirma-se que o Direito Penal só intervirá quando os demais ramos do ordenamento jurídico não forem suficientes para tutelar os bens jurídicos relevantes contra ataques de maior gravidade.

Selma Pereira de Santana elucida: “o princípio da intervenção mínima orienta e limita o poder incriminador do Estado, estabelecendo que a criminalização de uma conduta somente é legitima caso constitua um meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico”162

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Necessário frisar, ainda, que tal vetor, também, deve ser observado internamente ao Direito Penal, ao eleger a sanção penal menos gravosa.

A tipificação de condutas eleitas como criminosas implica em um processo de valoração por parte do Poder Legislativo, que, baseado em certos critérios, decide quais comportamentos são indesejados. O trabalho legiferante considera a importância do bem jurídico protegido e qual a gravidade da lesão perpetrada, ou a

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SANTANA, Selma Pereira de. Justiça restaurativa: a reparação como conseqüência jurídico- penal autônoma do delito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 157.

sua exposição, que implicará em uma conduta não suportável.

Nesse prisma, propõe-se outra função ao princípio da Intervenção Mínima, evidenciando-o quando da tarefa de iluminar os aplicadores do Direito Penal, que devem utilizar esta forma de interferência mínima, também, em uma dimensão interna, ou seja, quando da resposta estatal a esses comportamentos indesejados.

Essa urgência surge da constatação de que o Estado elegeu uma política criminal inadequada, vez que essa resposta unilateral e autista não atende aos fins declarados, quais sejam: reafirmar a vigência da norma violada, desencorajar os membros da coletividade no que se refere à prática de delitos163 e ressocialização do agente.

Esta tarefa não é observada pelos magistrados, que utilizam as penas privativas de liberdade de forma exagerada, obedecendo aos ditames do Código Penal, ao invés de aplicar os postulados que embasam a justiça penal de modo primário.

A atuação através do Direito Penal como um todo é demasiada, e nessa extensão ineficaz, pois não atende de forma plural às necessidades sociais, pois a intervenção é sempre pública e necessária, vez que é o Estado o protagonista desta operação, ao confiscar o problema das partes e, sob uma falsa premissa de obrigação deste modo exclusivo de atuação, resolve o problema da forma que acha mais “justa” e adequada.

É preciso oferecer à política criminal novas leituras dos mesmos contornos constitucionais, até porque a Criminologia e a estatística demonstram que a sanção privativa de liberdade não vem alcançando as finalidades de prevenção.

Beccaria164 já pregava que entre as penas, e na maneira de aplicá-las proporcionalmente aos delitos, é fundamental escolher os meios que devem causar

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Em relação à função geral inibitória do Direito Penal, importante salientar que a crítica a esta vertente educativa é ferrenha, pois não é científica a postura daqueles que acreditam que as

pessoas, pelo menos a maioria delas, deixam de praticar crimes pela existência de uma lei penal. As pessoas que não cometem delitos, assim comportam-se não pela presença de uma ameaça de lei, mas porque outros fatores (educação dos pais, escola, comunidade, religião) o influenciaram nessa decisão. Frise-se, ainda, que o exercício desse poder, através da influência (cf. BOBBIO, Noberto. A

era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992) é muito mais

eficiente do que aquele exercido através da força (Direito Penal). É por isso que acreditar em uma educação através das leis incriminadoras é acreditar que a violência educa mais e melhor do que a influência.

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Cf. BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. Tradução de José Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. rev. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1999.

no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável, e, ao mesmo tempo, menos cruel no corpo do culpado, pois defendia que o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um crime que já foi cometido.

Nesse diapasão, e como já dito anteriormente, o conflito antes de ser problema público importa em uma ofensa a pessoas, devendo a resposta penal ser proporcional ao dano sofrido pela vítima. Por isso, pode o Estado deixar de processar, quando este conflito for resolvido pelas partes, em atenção ao mencionado princípio, que precisa ser mais bem utilizado, sendo imprescindível oferecer a ele novas aplicabilidades diante de uma necessidade social.

Nessa orientação, esclarece Selma Pereira de Santana:

Por outro lado, o princípio impõe um confronto entre as finalidades político- criminais perseguidas através da cominação das penas – efeito positivo -, com o sacrifício imposto aos direitos fundamentais da pessoa, sendo necessária uma proporcionalidade entre ambos165.

Assim, defende a autora que uma forma de obedecer tal diretriz é aquela centrada na proposta de introdução de diversificação nas formas de processos típicas, em especial no que se refere àquelas consensuais.

Esse anseio de diversão parte de uma premissa básica: a sociedade moderna é composta pelas mais variadas necessidades e formas de ver e querer o mundo.

O respeito à diversidade é elemento básico de uma sociedade inserida em um sistema (dito) democrático.

Verifica-se, portanto, que o mencionado princípio direciona-se, atualmente, ao preceito primário do tipo penal, ou seja, contrapõe-se à conduta rotulada como crime à realidade comunitária.

Porém, a defesa que se passa a advogar no presente trabalho é a aplicação do princípio da Intervenção Mínima ao preceito secundário do tipo penal, à resposta às práticas delituosas, naqueles casos em que sejam possíveis e adequadas respostas menos invasivas do que as atuais.

Nesse prisma, a pena privativa de liberdade deve ser, sempre, o último recurso a ser utilizado no sistema penal. Preferindo-se as medidas menos invasivas e dolorosas para se alcançar os supostos objetivos da sanção penal. Da mesma forma que a intervenção sem a participação efetiva dos envolvidos e, sempre, obrigatória

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por parte absolutamente do Poder Público pode ser substituída por um encontro extrajudicial, capaz de resolver o conflito rotulado como criminoso de maneira satisfatória.

Nunca é pouco lembrar que, muitas vezes, a prática de um crime é uma forma de sair da invisibilidade em uma sociedade contemporânea, pois, em diversos casos, uma parcela da sociedade é esquecida não só pelo Estado, que não cumpre com suas obrigações básicas, como saúde, educação, moradia e saneamento básico, mas, também, pela classe “abastecida” da comunidade.

Aqueles que tem acesso às condições mínimas de sobrevivência não querem ou não conseguem enxergar aqueles que não tiveram a mesma sorte.

Por um lado, esses “sortudos” não veem os excluídos. Porque o tom escuro do vidro do carro não lhes permite. Ou porque eles não andam nas ruas, apenas vão da garagem para casa, da garagem para o escritório, da garagem para o cinema, da garagem para a academia, da garagem para o restaurante, da garagem para algum lugar.

Em nome dessa invisibilidade e projeção do outro, Jurandir Costa Freire, citado por Alexandre Morais da Rosa, aduz que:

o modo de tratar esta realidade ‘feia, ‘pobre’, ‘desdentada’ e ‘não-branca’ é fazer como se ela não existisse e, quando isso não é possível, a saída é eliminá-la, fisicamente se preciso for, para que o fantasmagórico mundo global volte a ser o aconchegante ninho dos bem-nascidos166.

Esses incluídos não andam nas ruas. Eles têm um mundo próprio. Diferente do mundo dos excluídos, que pegam ônibus, que andam para chegar e para sair, que ganham pouco, que apenas sobrevivem e assistem o incluído passando, comprando, vivendo...

Assim, analisando o princípio da Intervenção Mínima sob este enfoque, pode- se apresentar como meio hábil a compor problemas penais outras formas de sanções, atualmente não elencadas (ou elencadas) pelo sistema oficial, mas negociadas pelos envolvidos no problema penal.

Talvez, essa forma de solucionar o conflito seja uma (ou a única) possibilidade do incluído enxergar o excluído, que, muitas vezes, mora ao lado, mas não é visto, a

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ROSA, Alexandre Morais da. Decisão no processo penal como bricolage de significantes. 2004. 430 f. Tese (Doutorado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas e Sociais, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004, p. 234.

não ser quando pega um caco de vidro ou uma faca ou uma arma de fogo... e ganha visibilidade. Foi visto, emergindo das sombras, tomando o palco da vida como protagonista, mesmo que o tenha ganho apenas para causar medo no outro, não importa: conseguiu ser visto.