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2 A (R) EVOLUÇÃO DO PODER DE PUNIR

2.2 A ABERTURA DIALÓGICA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA

2.2.3 O Delito Não Existe Fora da Linguagem

O cidadão que comete um fato descrito como criminoso é visto atualmente como um homem mau, alguém que rompeu com o pacto social, desobedecendo, portanto, as regras postas, sendo tais dispositivos necessários para a vida em coletividade, pois com força vinculante e abstrata que demanda observância geral.

Assim, aquele que ofendeu um bem jurídico penalmente protegido, é visto sempre como um criminoso, alguém que merece a sanção penal descrita pelo Estado, e que esta intervenção, sempre, devolverá a paz social, alcançando, por consequência, a justiça (utopia).

O Estado acredita nisso. Supõe que toda sociedade deseja a punição aflitiva de maneira isolada pelo Poder Judiciário. Esta forma de sancionar atende a certos delitos, mas a outros tantos não, devendo se ampliar a possibilidade de encaminhar estes problemas para uma via alternativa, extrajudicial, oportunizando a efetiva participação dos envolvidos na solução das suas contendas, e, uma vez se alcançando o acordo, o mesmo deve ser submetido à homologação judicial para surtir efeitos.

Efetivamente, muitos cidadãos aceitam, sem pestanejar, esta construção, porém, porém é preciso entender, e alertar, que outras formas de responder aos conflitos penais são plenamente possíveis e, em diversos casos, muito mais adequadas.

Frise-se que essa crença aparente, qual seja, a de que aquele cidadão que se portou de modo a praticar uma conduta rotulada como criminosa é um agente mau

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e, portanto, merece ser encarcerado, é muito mais uma banalização e domesticação da opinião pública (ou apenas publicada, na medida em que os veículos de comunicação, muitas vezes, manipulam interesses) do que atos científicos que merecem ser esclarecidos e reproduzidos.

Esta constatação aparentemente banal e óbvia é fundamental na construção do pensamento desenvolvido nesta pesquisa, na medida em que se acredita com tanta fidelidade que o criminoso é, em regra, um ser deplorável, diferente, bizarro, asocial, amoral, medonho e estranho, logo, precisa ficar longe, muito longe da sociedade considera boa, honesta, portanto, e “inocente”.

Alerte-se, ainda, que grande parcela da sociedade brasileira, encara o apenado como um ser irrecuperável, alguém que não faz parte do seu mundo, apontando como delinquente àqueles que recebem uma sentença penal condenatória, independente da qualidade da pena e da tipificação do delito. Este sentimento peculiar precisa ser registrado, pois se torna um fator essencial nesta defesa de apresentar métodos alternativos à resolução de conflitos penais117.

Não há o puro e o impuro. O bom e o mau. O certo e o errado. Ninguém é totalmente bom ou absolutamente mau. O ser humano é uma composição de valores, ideias, traumas, crenças, somado àquilo que lhe dizem que ele é, acrescentado, ainda, àquilo que ele viveu. Não há, portanto, essa separação rígida, como acredita uma significativa parcela da sociedade brasileira. São apenas construções sociais, aquilo que o homem constrói a partir de outros conhecimentos adquiridos.

Assim, grande parte da sociedade, e também o Estado, acredita que os bons precisam ser defendidos dos maus, e que este seria um papel estatal. Nas palavras de René Ariel Dotti:

os defensores desse pensamento partem do pressuposto maniqueísta de que a sociedade está dividida entre bons e maus. A violência destes somente poderia ser controlada através de leis mais severas, impondo

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Isso porque, em uma sociedade que enxerga o apenado como um não cidadão se torna ainda mais importante se evitar o máximo possível a condenação oficial, e o consequente lançamento do nome deste agente no rol dos culpados. Isso porque, o conhecido “ficha suja” efetivamente será, pelo tempo conhecido como depurador (aquele que o registro fica consignado), reconhecido como alguém não confiável, reduzido à característica de alguém que cometeu crime e apenas a isso.

Alerte-se, ainda, que não é todo caso que será encaminhado a essas formas alternativas de solução de conflito, e, dependendo da gravidade do delito, nem todos que forem encaminhados eximirão o agente da sanção penal oficial. Essa definição será a seguir delineada.

longas penas de prisão, quando não a morte118.

Não pode ser este o pensamento reduzido e arcaico com que devem atuar os juristas, aqueles que fazem o Direito.

Sobre a subjetividade inerente ao ser humano, ensina, mais uma vez, Calmon de Passos:

O saber não é algo passível de ser dado a alguém. É algo que exige, sempre, sua elaboração pelo próprio sujeito. Somente eu sou capaz de produzir o meu saber, mesmo quando para isto me utilize de informações sobre o conhecimento de outros sujeitos. Não há, por conseguinte, um

conhecer desvinculado do homem que sabe, porque todo saber é mera

tentativa humana de compreensão do que pensamos ser e do que pensamos que as coisas sejam 119.

Assim como é o saber, o delito não existe essencialmente, é sempre o que se diz que é, seja o legislador, quando elabora abstratamente a lei, seja quando o magistrado decide, subsumindo a ação humana a um tipo penal e aos demais elementos do crime (antijuridicidade e culpabilidade).

A eleição de conduta, bem como a verificação de moldagem, não pode ser realizada sem a subjetividade própria do ser humano, que é capaz de associar conhecimentos naturais, mas, também, é capaz de criar o conhecimento.

É o que defende, em continuidade, o autor, citando que o sol existe independente da vontade e da atuação do homem, porém, outras coisas não: “diversamente ocorre quando o objeto de nosso conhecimento é aquilo que só existe porque existe o homem e por força de sua decisão sua e de seu operar”120

.

Neste diapasão, não há o delito, cientificamente o crime não existe, como durante séculos tentaram demonstrar alguns estudiosos, em uma batalha pela verdade absoluta.

Aliás, o crime, assim como o mundo, não se constitui de fora para dentro, é antes de tudo, aquilo que se conhece, ou, nos dizeres de Merleau-Ponty: “O mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável”121

. Dito isso, pode-se afirmar que, antes de ser classificado como crime, aquele

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DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 13.

119

PASSOS, 2003, p. 7.

120

PASSOS, 2003, p. 8.

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MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 18.

comportamento é um fato social, verificado em toda sociedade e em qualquer época. Nos dizeres de Émile Durkheim:

Com efeito, o modo como os fatos são assim classificados não depende dele, da propensão particular de seu espírito, mas da natureza das coisas. O sinal que possibilita serem colocados nesta ou naquela categoria pode ser mostrado a todo o mundo, reconhecido por todo o mundo, e as afirmações de um observador podem ser controladas pelos outros. É verdade que a noção assim constituída nem sempre se ajusta, ou, até mesmo, em geral não se ajusta, à noção comum. Por exemplo; é evidente que, para o senso comum, os casos de livre pensamento ou as faltas à etiqueta, tão regularmente e tão severamente punidos numa série de sociedades, não são vistos como crimes, inclusive em relação a essas sociedades. Assim também, um clã não é uma família, no sentido -usual da palavra. Mas não importa; pois não se trata simplesmente de descobrir um meio que nos permita verificar com suficiente certeza os fatos a que se aplicam as palavras da língua corrente e as ideias que estas traduzem122.

Logo, é delito aquilo que, mediante uma decisão política, o Poder Legislativo rotulou como tal. Pode-se afirmar, nesse contexto, que para uma conduta ser considerada delituosa, faz-se imprescindível a verificação da natureza da lei que prevê aquele comportamento, sendo a sanção prevista no dispositivo de natureza penal, pode-se auferir que o caráter daquela ação ou omissão é criminoso, já que o crime, onticamente, não existe.

Situação que pode ser identificada, mais uma vez, pela ideia de Durkheim, quando defende que: “não é a pena que faz o crime, mas é por ela que ele se revela exteriormente a nós, e é dela, portanto, que devemos partir se quisermos chegar a compreendê-lo”123

.

Por isso, antes de sancionar determinados agentes, por terem cometidos certas condutas, definidas como crimes, antes de discutir, oportunamente, qual sanção será aplicada pela prática de um delito, é necessário ter em mente essas ponderações, pois esta intervenção precisa ser justificada, antes de ser simplesmente imposta, na medida em que o que se vai retirar desse individuo é a liberdade.

Nos dizeres de Boaventura de Sousa Santos:

É necessário voltar às coisas simples, à capacidade de formular perguntas básicas, questionamentos que, como Einstein costumava dizer, só uma criança pode fazer, mas que, depois de feitas, são capazes de trazer uma

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DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. In: ______. Durkheim. 2. ed. Tradução de Margarida Garrido Esteves. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 30-31.

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luz nova à nossa perplexidade.124

Assim, pode-se aduzir que o crime guarda certas características que lhes define como tal, como a previsão legal que o define como ilício penal. Esta tarefa redutora acaba limitando o atuar do intérprete e aplicador125 do Direito, que, ao ouvir a descrição de determinado fato, começa, quase que inconscientemente, uma empreitada cartesiana de dedução, ao tentar imputar ou não àquela conduta uma definição de crime.

Feita a necessária ressalva em relação à inexistência de crime fora da comunidade e da linguagem, oferece-se uma nova abordagem na construção de uma resposta estatal aos fatos enfrentados como delituosos.

Pontuar esta situação é importante, pois é baseando-se nesta ressalva, de que o crime é uma construção social, que a resposta a estes eventos pode ser diversificada, já que tais comportamentos podem ser analisados sob um novo enfoque, o cultural, cabendo, portanto, a diversificação do seu tratamento.