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3 A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO RESPOSTA ADEQUADA A

4.3 A NECESSIDADE DE DIVERSIFICAR AS RESPOSTAS AOS DELITOS QUE

4.3.1 A Mulher como Agente Transformador

É preciso empoderar a mulher, vítima de violência doméstica, porque a mulher que age de forma igualitária, não deixa a violência acontecer, pois trata o homem de igual para igual, não havendo desequilíbrio entre os laços que unem ela ao seu companheiro, marido, noivo ou namorado.

A mudança de perspectiva é nesse sentido. Dentro de uma sociedade que trata globalmente a mulher de maneira discriminatória, como dito alhures, é preciso inverter o modo de encarar e de cuidar dessas mulheres, substituindo a figura paterna (pai, marido, Estado), para oportunizar que ela, mulher, retome (ou tome) a direção da sua vida.

No mesmo sentido, aduz Vera Regina Pereira de Andrade, alertando que a passagem da mulher pelo controle social acionado pelo sistema da Justiça Criminal:

implica, nesta perspectiva, vivenciar toda uma cultura da discriminação, da humilhação e da estereotipia. Pois, e este aspecto é fundamental, não uma ruptura entre relações familiares (pai, padrasto, marido), trabalhistas ou profissionais (chefe), e relações sociais em geral (vizinhos, amigos, estranhos, processos de comunicação social), que violentam e discriminam a mulher, e o sistema penal que a protegeria contra este domínio e opressão, mas um continuum e uma interação entre o controle social informal exercido pelos primeiros (particularmente a família) e o controle social formal exercido pelo segundo288.

Trazer a mulher para o palco da discussão é fundamental no trato com o problema da violência de gênero. A esse processo dá-se o nome de empoderamento, visto como a possibilidade de tomada de decisão. Mas, para isso, é preciso que haja intervenção estatal, mas de forma a incluir a mulher no processo de decisão, especialmente no debate acerca da resposta à infração penal que violou seus direitos, ao invés de tomar pra si o problema, e aplicar, de forma hermética, a sanção penal, atitude que mantém a ofendida em um papel secundário e submisso.

Nesses termos, Ana Lúcia Sabadell alerta que:

Os reflexos da cultura patriarcal podem ser percebidos na lei 11.340 e também na própria atuação do poder judiciário em matéria de violência doméstica. Há muitos anos venho insistindo ser necessário dar “voz” às vítimas. Tanto a definição de violência doméstica como os métodos de intervenção e solução do conflito, no âmbito jurídico, necessitam levar e consideração a perspectiva e as necessidades das vítimas Infelizmente, no que tange às inovações em matéria penal, o legislador optou por silenciar as mulheres289.

Verifica-se, com efeito, que não só a Lei Maria da Penha calou as mulheres vítimas dessa violência doméstica, mas também a mais alta corte do Poder Judiciário desse país lançou a última pá de cal sobre esta possibilidade no dia 09 de fevereiro do corrente ano, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade registrada sob o número 4424 em conjunto com a Ação de Declaração de Constitucionalidade tombada sob o número 19, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, que teve a seguinte decisão:

O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação direta para, dando interpretação conforme aos artigos 12, inciso I, e 16, ambos da Lei nº 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta,

288

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Soberania Patriarcal: O Sistema de Justiça Criminal no

Tratamento da Violência Sexual Contra a Mulher, artigo publicado na revista Sequencia, n. 50, jul.

2007, p. 76

289

praticado contra a mulher no ambiente doméstico290.

Esclareçam-se os nuances da decisão.

Em 1995, atendendo a programação constitucional prevista no artigo 98, inciso I da Carta Magna, a Lei 9.099 criou os Juizados Especiais Criminais, regulando o procedimento sumaríssimo aplicável aos delitos de menor potencial ofensivo, estes conceituados pelo artigo 61 da mencionada lei como sendo aqueles que a pena máxima em abstrato não ultrapasse dois anos, cumulada ou não com pena de multa291.

Além de regular o processamento dos crimes e das contravenções de menor gravidade, a Lei 9.099/95 alterou a classificação do crime de lesão corporal leve previsto no artigo 129 do Código Penal brasileiro, vez que o artigo 88 prevê que “Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas”292.

Com efeito, a Lei 11.340/06, expressamente, afastou a incidência da Lei 9.099/95, ao determinar no seu artigo 41 que: “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995”293.

O texto da lei era claro. Ao afastar a incidência da lei 9.099, tornava a ação penal, no crime de lesão corporal leve, incondicionada, dispensando representação da vítima para ser instaurado o processo penal, bem como o inquérito policial.

Porém, a interpretação não foi simples, nem unânime, pois pela dicção do artigo 16 da mesma lei, que determina uma forma especial de se processar a retratação da representação nos delitos de ação penal pública condicionada, a retratação da representação, nos delitos abarcados pela referida lei, deveria ocorrer

290

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4424/DF. Relator: Min. Marco Aurélio. Tribunal Pleno. Brasília, 09 fev. 2012. Diário da Justiça Eletrônico, n. 35, 16 fev. 2012c. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=4424&classe=ADI&orige m=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 16 jul. 2012.

291

Cf. BRASIL. Lei nº. 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 27 set. 1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm>. Acesso em: 16 jul. 2012.

292

Ibid.

293

em uma audiência designada especialmente para tal fim294.

Ato processual mais rígido do que o previsto no Código de Processo Penal, que, no seu artigo 25, não reveste de formalidade tal desistência, disposto apenas que esta deve ser apresentada até o oferecimento da denúncia, logo, mera manifestação de vontade da vítima, pessoal ou através de seu defensor com poderes especiais para a prática de tal ato.

A exegese era simples. Se a Lei 11.340/06 afasta a Lei 9.099/95 e é este diploma que condiciona a acusação pelo crime de lesão corporal leve à representação, as retratações referidas no artigo 16 da Lei Maria da Penha só seriam aplicadas aos delitos que prevejam tal necessidade no Código Penal, ou ainda, nas demais legislações especiais, excluída, por óbvio a Lei dos Juizados Especiais295.

Porém, o debate era salutar em relação à amplitude do artigo 16 da Lei 11.340/06, ou seja, se ele se alcançava ou não o delito de lesão corporal leve. E a importância social era imensa. Pois, se admitida a interpretação sustentada na ADI 4424 (o que ocorreu), considerando que este delito era de ação penal pública incondicionada, qualquer um do povo poderia registrar uma ocorrência contra um agressor que praticava o crime de lesão corporal leve (caput do art. 129 do Código Penal), e mesmo que a vítima rogasse pela não instauração de inquérito ou deflagração de processo penal, o Estado teria (pelo princípio da obrigatoriedade que rege o atuar policial e ministerial) que investigar e acusar.

Mas o problema maior não é este. Até porque tal iniciativa poderia ser adequada, na medida em que a mulher estivesse envolta em um ambiente de violência, imersa em sentimentos de medo e angustia, razões que justificariam a intervenção estatal nos moldes propostos.

294 Cf. Ibid. Artigo 16 tem a seguinte redação: “Nas ações penais públicas condicionadas à

representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade.”

295

Por oportuno, registre-se que o anteprojetado do novo Código Penal, apresentado ao Senado Federal no fim do mês de junho do corrente ano, previu, expressamente, a espécie de Ação Penal quando o delito de Lesão Corporal, leve ou culposa, envolver violência doméstica, determinando que a mesma será pública incondicionada, o que acaba com qualquer dúvida a cerca da necessidade de representação da ofendida para se instaurar Inquérito Policial e deflagração de processo penal. A redação foi apresentada da seguinte maneira: “Art. 129 Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem [...] §11º. Nos casos de lesão corporal leve ou culposa, somente se procede mediante

representação, exceto se se tratar de violência doméstica contra a mulher, caso em que a ação penal será pública incondicionada.”

O grande prejuízo está na vedação ao duto da comunicação, pois não importa se aquele casal se reconciliar, ou encontrar uma solução diversa do que o enfrentamento do processo penal. A possibilidade da retratação da representação em delitos é um caminho alternativo à instauração de processo, que impossibilita a intervenção penal e a apropriação de conflitos por parte do Estado e alheamento em relação à realidade fática, podendo se imaginar uma audiência de instrução e julgamento, onde as partes entram e saem juntos, aos beijos e abraços, e essa realidade não poder interferir em nada no deslinde do processo, mantendo-se, o Poder Judiciário, autista em relação ao mundo real.

O Estado deveria incentivar o diálogo, a possibilidade de composição e restauração de elos, a participação efetiva nos envolvidos em encontrar a melhor resposta para aquele problema que é deles, principalmente quando os envolvidos tiveram (e tem) filhos.

Com efeito, muitas vezes, a solução para o problema almejada pela vítima é completamente diferente daquela ofertada pelo Estado. Muitas vítimas querem entender, falar, dizer o que sentem, fazer que o agressor entenda e pare de agredi- las, até porque ela tem uma história com ele, filhos com ele, fotos com ele, teve amor por aquele homem e hoje nutre, muitas vezes, carinho, preocupação, quando não paixão e desejo.

E o mais importante a ser dito, continuará a conviver com este homem, que na grande maioria das vezes (83% nos termos do relatório da Presidência da República de março de 2012) é pai de seus filhos. O encontro entre o Estado e o agressor é pontual, a visão estatal sobre este cidadão também é esporádica, incompleta. Entre a vítima e o ofensor a relação é perene, e para ela, ele é muito mais do que um delinquente que precisa de sanção, de condenação definitiva e todas as suas consequências, como lançamento do nome do rol dos culpados. A lente através da qual esta mulher enxerga este homem é convergente (amplia o objeto de visão), já a utilizada pelo Estado é divergente, na medida em que reduz aquele cidadão ao fato descrito como criminoso por ele praticado.

E o Supremo perdeu, quando do julgamento das referidas ações, a oportunidade de estender, também nos delitos de lesão corporal leve, esse reencontro, esse processo de participação dos envolvidos na construção da resposta aos seus problemas, mantendo-se superficial na análise das causas e

consequências da possibilidade de retratação da representação como hipótese de extinção da punibilidade, nos termos do artigo 107 do Código Penal296.

É manter o poder total e hermético nas mãos do Estado, mesmo que ninguém se favoreça dessa forma de atuação.

Vozes contrárias à incidência da Lei 9.099/95 nesses delitos podem surgir, aduzindo que o pagamento das chamadas “cestas básicas” era uma forma de manutenção de impunidade o que incentivava a prática desses delitos.

Com razão, porque o instrumento poderoso que existe na Norma dos Juizados Especiais, a multicitada Lei 9.099/95, deve ser aplicada de forma a encontrar a solução mais adequada para aquele problema penal, e não mecanicamente pelos atores que compõem estes órgãos especializados. A falta de preparo e discernimento por parte dos conciliadores causam situações de extrema inutilidade e desvirtuamento dos institutos previstos nesta Lei. Porém, estes problemas de forma adequada de gerenciamento de audiência é um problema a parte, que precisa ser resolvido, com treinamento e capacitação adequados.

Corroborando esse entendimento, Ana Lúcia Sabadell, ainda, pondera:

A Lei 9.099/95 antes aplicada aos casos de lesão corporal leve e ameaça, com o advento da lei 11.340, passou a ser expressamente proibida em situações de violência doméstica. Em palavras simples. Em 1995, visando facilitar o acesso à Justiça, foi criada uma lei que permitia a realização de acordos (com a interrupção do processo penal) para delitos castigados com pena não superior a dois anos. Muitas mulheres que chegavam à delegacia da mulher (vítimas de violência doméstica), sofriam agressões (lesão corporal leve, ameaça) castigadas com pena inferior a 2 anos de prisão. Por isso, apesar da Lei 9.099 não ter sido criada com o intuito de “resolver” o problema da violência intrafamiliar, acabou se transformando em um instrumento empregado na solução desse problema. Ocorre que devido à falta de preparo do operador jurídico (que insisto desconhece a problemática do patriarcalismo), surgiam sentenças que indicavam a ineficácia social da lei.

Juízes ordenavam, como forma de solução de conflitos, aos maridos o pagamento de cestas básicas, compra de flores para as esposas, oferecimento de jantares e até tinta para a impressora do tribunal!297

Restando claro que o movimento não é ampliar a incidência do Direito Penal, mas a mentalidade arcaica da sociedade como um todo, incluindo nela o Estado e seus prepostos.

Assim, a política de prevenção e contenção da violência, em sentido amplo,

296 Cf. BRASIL, 1940. “Art. 107. Extingue-se a punibilidade: [...] VI - pela retratação do agente, nos

casos em que a lei a admite.”

297

contra a mulher, deve ser no sentido de empoderá-la, trazendo-a para o centro da discussão, para que, assim, ela efetivamente saia do papel de coadjuvante e transforme-se em agente.

Não basta decidir por trazer bem-estar às mulheres. É preciso mais. Faz-se indispensável ampliar essa possibilidade, incorporar e enfatizar o papel ativo da condição de agente das mulheres298.

É preciso trocar a lente através da qual se enxerga a mulher, mudar de atitude, entender que essa postura patriarcal afeta de maneira ilimitada não só a mulher, mas também toda a sociedade.