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3 A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO RESPOSTA ADEQUADA A

3.3 O PROCESSO RESTAURATIVO

3.3.4 O Processo como Caminho e Não como Fim

Implicando em uma verdadeira e adequada abertura no processo de resposta aos problemas criminais, importante salientar que, em um encontro restaurativo, o mais importante é o seu desenvolvimento, não se revelando questão central o resultado desse consenso.

Fundamental registrar que, em uma audiência restaurativa, a oportunidade do diálogo, do enfrentamento e do entendimento entre os envolvidos é o que efetivamente importa, pois fortalece os laços sociais e a participação concreta na construção da solução dos seus problemas.

Nesse sentido, é preciso lembrar a relação entre Direito e Processo, esclarecendo que tal ligação não pode ser encarada como meramente instrumental. Isso porque: “o Direito é produzido a cada ato de sua produção, concretiza-se com sua aplicação e somente é enquanto está sendo produzido ou aplicado“. E nesse sentido o direito tem caráter integrativo, tornando-se tão fundamental como “dizer o próprio Direito”219

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Entendendo essa dinâmica e integração entre Direito e Processo, pode-se perceber, com clareza, que o mais importante é o encontro em si nas práticas restaurativas, muito mais relevante do que o seu resultado final.

Com efeito, é esta oportunidade de troca de sentimentos, de contato, mediado, entre os envolvidos na situação problemática, quando cada um deles irá expor suas impressões e diferentes abordagens sobre o fato ofensivo, desfazendo, assim,

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sentimentos negativos que brotaram, trilhando o caminho inverso ao do delito, que será decisivo para o sucesso do procedimento restaurador.

Nesse sentido, são, de novo, as palavras de Calmon de Passos as mais adequadas para defender que o resultado do acordo restaurativo não é tão importante como o processo restaurativo, pois este: “não é algo que opera como mero instrumento, sim algo que integra o próprio ser do Direito” e acrescenta que a relação entre Direito e Processo não é uma relação de meio/fim, instrumental como se proclama: “porém orgânica, integrativa”220

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É preciso, de uma vez por todas, aceitar que se as formas atuais de intervenção estatal nos conflitos rotulados como criminosos não vem surtindo os resultados esperados, pois não previne, nem soluciona os problemas, outros modos de resolução precisam ser testados, através de uma politica criminal voltada ao encontro de uma efetiva pacificação social, oportunizando que outros espaços sejam criados sem as formalidades e ritos estanques e frios dos existentes hoje em dia.

Pensar em opções com a participação ativa e decisiva da comunidade, torna-se adequado no contexto atual de ululante desencontro entre a teoria e a prática das instituições oficiais penais, por isso, é necessário abrir as portas do aparato estatal, que regula e aplica o Direito Penal, para que, havendo integração entre diversos núcleos, os problemas sejam concretamente solucionados.

Não admite-se mais a centralização hermética do poder, esse sistema já provou que não é capaz de solucionar a totalidade dos conflitos, pois os cidadãos a ele submetidos não estão retornando à sociedade da maneira esperada, pois o sistema prisional mantém, ou potencializa, a criminalidade.

É por isso que a proposta é diminuir a intervenção estatal, aumentando os espaços comunitários para ampliar as possibilidades de solucionar os conflitos sem as marcas da justiça criminal oficial e, especialmente, do cárcere, ou de qualquer outra forma de punir oficialmente, pois todas elas estigmatizam e criam mortos sociais221, porque uma vez inscrito no rol dos culpados, sair de lá é algo

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Ibid., p. 74.

221Eugenio Raúl Zaffaroni, no livro “A Palavra dos Mortos, conferências de criminologia cautelar”,

com a coordenação de Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini, São Paulo: Saraiva, 2012, propondo o que ele chama de Criminologia Cautelar, aduz que os aqueles submetidos ao Direito Penal, especialmente a mídia, são, a partir daí, transformados em cadáveres, pois excluídos para sempre da coletividade dita “livre”. Assim, dando voz também a esses mortos (porque os biologicamente mortos

absurdamente custoso.

Assim, através da participação da vítima, do ofensor e, em alguns casos, da comunidade, no processo de construção da resposta aos delitos: “na busca compartilhada de cura e transformação, mediante uma recontextualização construtiva do conflito, numa vivência restauradora”, que o processo: “atravessa a superficialidade e mergulha fundo no conflito, enfatizando as subjetividades envolvidas, superando o modelo retributivo”222

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Desta forma, entende-se que os métodos apresentados pela Justiça Restaurativa, constituem possibilidades de encontro e de refazimento de elos, abrindo-se, portanto, canais de enfrentamento e entendimento, como meios adequados para solucionar delitos.

também precisam ser considerados e entendidos, logo necessitam ter voz) ele defende uma forma de intervenção penal, pois “o lema político do momento é pretender que todos os conflitos sociais podem ser resolvidos mediante o poder punitivo. Mais fácil que resolver os conflitos é tipificá-lo”.

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4 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: AMPLIANDO O DEBATE PARA ACERTAR NA PROTEÇÃO

Mas uma vida é uma relação com o mundo; é escoIhendo-se através do mundo que o indivíduo se define; é para o mundo que nos devemos voltar a fim de responder às questões que nos preocupam.

Simone de Beauvoir

Atendendo ao recorte temático proposto na presente pesquisa, inaugura-se o estudo sobre a violência contra a mulher em ambiente doméstico223, esta entendida como o conflito ocorrido entre o homem e a mulher que possuem laços de afeto e intimidade, para os fins aqui sustentados.

Antes de analisar as nuances da Lei 11.340 de 2006, apelidada “Lei Maria da Penha”, é fundamental contextualizar essa violência doméstica praticada contra a mulher em uma perspectiva social, situando o leitor no que se refere às construções acerca do gênero feminino, atualmente protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro pela citada norma.

A análise jurídica não pode ser realizada de maneira isolada, vez que o Direito, precisa encontrar consonância com o social, necessitando estabelecer com ele ligações umbilicais, pois serve à sua manutenção, devendo, portanto, alimentar-se dos problemas reais, e suas consequências, para atuar de maneira legítima.

Para tanto, pontuar as peculiaridades a respeito dessa construída dicotomia entre homem/mulher, feminino/masculino, e todos os desdobramentos dessas “classificações” é essencial, tornando-se necessário entender como essas questões são arquitetadas, e como elas influenciam na coletividade, de maneira decisiva, no que se refere à violência contra a mulher.

Assim, a análise, mesmo que perfunctória, é indispensável na área da Sociologia, no tocante à edificação dos contornos em relação aos gêneros feminino e masculino, devendo-se entender esse projeto androcêntrico de poder, que é

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A violência doméstica pode ser conceituada como aquela perpetrada dentro do lar. Logo, não se pratica crime doméstico só contra mulher, mas também contra criança, adolescente, homem, idoso, empregados, etc. Por isso, foi preciso adequar o tema para tratar das agressões dirigidas às mulheres, no seio de sua residência, por parte dos seus cônjuges ou companheiros.

invisível, mas aguerrido e eficaz, onde o homem é o agente central, e a mulher é abjurada, e tem um papel limitadamente determinado pela conjuntura social.

É com essa ressalva paradigmática que se passa a analisar, mesmo de forma tangencial, à criação das categorias de gêneros feminino e masculino, bem como as consequências desse processo, que desembocam na violência contra o feminino, dando o necessário alinhamento à presente pesquisa.

Essa visão é fundamental, pois tal plano ideológico é incutido desde a infância,224 na sociedade e de uma maneira eficiente, já que não há violência, nem sangue, nem armas. Fundamental tal contextualização, para entender a profundidade do problema da violência doméstica, e tratá-lo nas suas bases, já que ela não é uma realidade isolada; muito pelo contrário, pois se situa dentro de um contexto de rechaço ao gênero feminino, sendo uma face dessa agressão estrutural.

Por isso, antes de analisar a Lei e a intervenção estatal não totalmente satisfatória, no que tange à violência doméstica, é importante traçar esse panorama, pois a partir dele, o discurso torna-se desfocado em relação às promessas do Estado mediante o Direito, como exposto no capítulo 2.

Importante pontuar, desde já, que a legislação brasileira atual protege a mulher, de forma especial, quando inserida em determinadas situações (doméstica, familiar e de intimidade com conotações sexuais), porém, a fim de restringir a análise da pesquisa, frisa-se que nem todas essas formas de proteção serão abordadas neste trabalho, mas, apenas, a violência cometida pelo homem, enquanto cônjuge ou companheiro, no ambiente doméstico, exigindo-se, então, a coabitação.

Assim, antes de analisar a história e as nuances da Lei 11.340/06, um passo atrás se torna indispensável para a defesa central deste trabalho, nos termos a seguir.