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3 A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO RESPOSTA ADEQUADA A

3.3 O PROCESSO RESTAURATIVO

3.3.2 Princípios Relacionados ao Tema

A Justiça Restaurativa se orienta por certos princípios, que determinam a sua forma de atuação e os métodos a serem adotados por ela. Entretanto, inexiste na doutrina um consenso sobre a totalidade desses princípios, de modo que os autores, ao abordarem a temática, frequentemente, indicam princípios diversos, apesar de não se constituírem divergentes entre si.

Nesse prisma, Francisco Amado Ferreira, aponta oito princípios como orientadores da Justiça Restaurativa, sejam eles: o voluntarismo, a consensualidade, a complementaridade, a confidencialidade, a celeridade, a economia de custos, a mediação e a disciplina.

O voluntarismo implica na atuação livre e esclarecida dos sujeitos envolvidos a

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respeito dos seus direitos, da natureza do procedimento e das suas consequências no processo de composição, inexistindo uma atuação impositiva própria do sistema judicial. Por meio desta voluntariedade, seria propiciado desenvolvimento de uma maior compreensão, internalização e responsabilidade do agressor frente às consequências de suas condutas.

Contudo, o autor ressalva a adoção dos procedimentos da Justiça Restaurativa como obrigatória em alguns modelos:

[...] há quem entenda que os mecanismos restaurativos se devam tornar obrigatórios e como parte integrante do processo criminal, tal como se sucede em algumas experiências lançadas na Bélgica, Alemanha, Áustria, Holanda, Inglaterra, Canadá e EUA, entre outros países, ainda que limitadas a domínios jurídicos específicos e a uma determinada circunscrição territorial. Alguns destes modelos funcionam como uma espécie de antecâmara do processo judicial, como condição de procedibilidade ou como regime de prova antecipado [...]. Noutros casos, tal procedimento integra-se num conjunto de injunções e regras de conduta, permitindo a suspensão ou o arquivamento de um de um processo criminal em curso. Em casos mais greves, a mediação vítima-agressor funciona de forma adjacente ao sistema convencional de justiça criminal, em memento pós-condenatório e contexto prisional, frequentemente como regime de prova, com efeito de permitir uma determinação progressiva do conteúdo da pena171.

Essa obrigatoriedade é criticada por ir de encontro ao fundamento de que o agressor deve assumir a responsabilidade dos seus atos e pela impossibilidade de se coagir o indivíduo a assumir a autoria de atos puníveis e participar de uma composição, eis que tal coação poderia ensejar a nulidade do procedimento, ou mesmo fazer com que o acordo celebrado não seja cumprido. Do ponto de vista da vítima a obrigatoriedade também é prejudicial, uma vez que esta pode não desejar o contato com o agressor e/ou temer o mesmo ou terceiros.

Assim, o voluntarismo é defendido pelo autor como um princípio necessário à Justiça Restaurativa, por não se pode realizar a mediação penal sem que haja o interesse das partes envolvidas.

Outro princípio apontado é o da consensualidade. Por conta do procedimento de composição envolver o estabelecimento pelas partes de uma espécie de contrato que determina as regras de conduta a serem adotadas por elas, como uma forma de reconstrução das relações sociais violadas, é necessário o consenso para que tal pacto seja formado.

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FERREIRA, Francisco Amado. Justiça restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra: Coimbra, 2006, p. 30-31.

Por ser este acordo o responsável por orientar o relacionamento futuro entre agressor e vítima, o jurista espanhol Daniel Dana pontua que o acordo firmado deve ser:

a) Equilibrado, o que significa atribuir benefícios proporcionais para ambas as partes;

b) Pormenorizado, o que significa definir claramente os pormenores de quem haverá de fazer o quê, quando, durante quanto tempo, em que condições e com que garantias;

c) Reduzido a escrito e assinado pelas partes e pelo mediador. Ainda que não absolutamente imprescindíveis, tais elementos podem revelar-se úteis em termos de certeza, garantia jurídica e de segurança interpretativa; d) Renunciante di recurso a outros meios – adversativos ou não –, desde que se prefigurem direitos disponíveis e o acordo firmado entre as partes se mostre pontualmente cumprido172.

Para que a Justiça Restaurativa, efetivamente, apresente resultados se faz necessário, desse modo, o entendimento entre agressor e vítima, e tal situação somente é possível por meio de um consenso entre estas partes, de modo que a consensualidade se mostra como um princípio realmente necessário a essa opção penal.

A confidencialidade constitui outro princípio da Justiça Restaurativa de acordo com o autor português. Por conta deste princípio, o conteúdo dos contatos estabelecidos durante a mediação devem permanecer confidenciais, incluindo os fatos revelados e afirmações ditas, não sendo aproveitáveis ao Juízo penal no caso de fracasso da composição do conflito.

Em razão deste princípio, as declarações das partes não devem ser reduzidas a termo, somente sendo documentados o contrato de mediação e o acordo final, caso obtido. Pelo mesmo fundamento, não deve haver publicidade no processo de mediação, não se permitindo a abertura das sessões de mediação para pessoas estranhas ao procedimento.

Este princípio fortalece a tentativa de mediação, haja vista que as partes expõem claramente todo seu posicionamento, sem haver a preocupação com a influência que isto trará para o processo penal propriamente dito ou com as opiniões de terceiros.

O quarto princípio apontado é o da complementaridade, segundo o qual, ainda que os mecanismos da Justiça Restaurativa não evitem a continuidade do processo

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DANA, Daniel. Adiós a los conflitos. Madrid: McGraw-Hill, 2001, p. 77-79 apud FERREIRA, 2006, p. 34-35.

penal, o procedimento de composição do conflito complementa as práticas penais convencionais.

Essa complementaridade decorre da circunstância de que a mediação pode resultar na desistência ou renúncia da ação penal ou mesmo no abrandamento da pena do agressor que, porventura, venha a ser condenado, quando houver tentativa de mediação e este se mostrou predisposto a se reabilitar diante da vítima, sua família e da comunidade. Outra situação que demonstra a aplicabilidade de tal princípio é a de que as partes podem requerer, até a publicação da sentença no primeiro grau, a suspensão do processo para que se proceda à mediação.

Diante disto, o supracitado autor conclui pela existência, em verdade, de uma dupla complementaridade:

Poder-se-á falar, portanto, numa dupla complementaridade entre o sistema de Justiça “oficial” e os mecanismos da Justiça Restaurativa. Se em sede geral devem coexistir como mecanismos de prevenção e administração de conflitos, no caso concreto, nada impede que eles funcionem em simultâneo e em satisfação dos interesses públicos e privados suscitados em uma mesma ofensa173.

A celeridade, de igual modo, é apontada como um dos princípios da Justiça Restaurativa, isto porque este sistema possibilita uma resposta mais célere e eficaz na busca de uma solução quanto ao conflito existente, tornando, assim, os atos mais simples, uma vez que este procedimento busca evitar a adoção de medidas desnecessárias ou evitáveis.

Há que se destacar, contudo, que mesmo esta simplificação e a busca pela celeridade não ensejam a inexistência de normas regulamentadoras da mediação, mas, tão somente, a sua restrição a aquelas que, efetivamente, mostram-se necessárias para a condução do procedimento, de forma adequada.

A economia de custos, por conta do contexto de crises institucionais no qual a Justiça Restaurativa surgiu, constitui também um princípio deste sistema. Ainda que alguns modelos adotados exijam a participação estatal, há uma diminuição dos gastos, por conta do processo criminal ser muito mais dispendioso, como demonstra Francisco Ferreira Amado, ao ressaltar os aspectos benéficos desta redução:

A opção por mecanismos de Justiça Restaurativa traduz-se numa redução de custos materiais tanto para o Estado – que não acciona a máquina judiciária, libertando importantes recursos que poderão ser canalizados para atacar outras frentes mais graves ou complexas da criminalidade – como

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para os concretos implicados nos problemas trazidos pela ofensa, a título direto ou indirecto174.

Como sétimo princípio, o autor traz o da mediação. A razão de este ser considerado basilar na Justiça Restaurativa é a de que a administração e gestão dos instrumentos deste sistema se utilizam, na maioria das vezes, dos procedimentos de negociação e mediação.

Apesar da opção doutrinária, na verdade, a mediação é um dos métodos propostos pela Justiça Restaurativa, já que constitui um dos meios através do qual as partes encontraram (ou não) a melhor solução para o seu problema.

Por serem estas formas de autocomposição de interesses, estão diretamente ligados aos ideais defendidos pela Justiça Restaurativa, que se preocupa em restabelecer175 as relações envolvendo agressor, vítima e comunidade.

Por fim, o jurista indica como último princípio de destaque o da disciplina, haja vista que a efetividade da Justiça Restaurativa demanda a obediência das partes às medidas acordadas entre elas, havendo uma responsabilização dos sujeitos que acaba por favorecer a credibilidade desses métodos, já que a não intervenção estatal estará condicionada ao cumprimento do acordo celebrado.

Tem-se, desse modo, os oito princípios indicados pelo doutrinador português Francisco Amado Ferreira. Contudo, conforme anteriormente sustentado, inexiste um consenso na doutrina, tanto é assim que o jurista brasileiro Marcelo Gonçalves Saliba indica quatro princípios distintos que congregariam os ideais norteadores deste sistema: o do processo comunicacional, o da resolução alternativa e efetiva dos conflitos, o do consenso e, por último, o do respeito absoluto aos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana.

O processo comunicacional implica em uma ética da solidariedade176. Entende-

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FERREIRA, 2006, p. 41.

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Importante delinear que, apesar dessa pesquisa se destinar a demonstrar que esses métodos são muito adequados a resolver problemas oriundos de relações já existentes, pois a violência domestica ocorre entre pessoas que já se conhecem e convivem, salutar deixar registrado que a aplicação dos seus métodos atende também a conflitos entre pessoas que não se conhecem, pois, muitas vezes, a vontade da vítima é bem mais modesta do que a do Estado (anseio retributivo), além da gravidade do delito não implicar em interesse público. Aliado a tal consideração, deve-se, ainda, recordar que essa univocidade da sanção penal também não atende aos fins preventivos eleitos como os adequados a justificar a punição.

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Recordando a Revolução Francesa, parece que o terceiro pilar de sustentação do movimento foi esquecido: a fraternidade, preferindo a liberdade e a igualdade à ela. É retomando esse sentimento fraterno que se baseia, também, a defesa dos processos restaurativos.

se que qualquer modelo de justiça exige uma relação com a comunidade, uma vez que o conflito penal afeta, ainda que de maneira indireta, os membros desta, sendo necessária a aproximação deles para a resolução do conflito pelo diálogo, conforme propõe o modelo da Justiça Restaurativa.

O princípio do consenso diz respeito à necessidade das partes entrarem um acordo para que seja possível a resolução do conflito. Por se basear no diálogo, se aproxima do princípio anterior, conforme se pode observar nas considerações estabelecidas pelo autor:

O princípio do consenso exige, primeiro, respeito entre as partes e pelas partes, novamente com observância da ética da solidariedade. O rompimento com o distanciamento social a que parece todos estarem condenados na pós-modernidade só se faz com o diálogo e, dentro da justiça penal, o mesmo é apresentado como valor irrenunciável para a pacificação do conflito social. O respeito pelo multiculturalismo, sem imposições ou exclusões, é uma barreira intransponível, e um valor a ser difundido pela justiça restaurativa; [...]177.

O princípio da resolução alternativa e efetiva dos conflitos, por sua vez, possui relação com a finalidade da Justiça Restaurativa, haja vista que determina que este modelo apresente alternativas ao Direito Penal retributivo, no que concerne ao interesse jurídico e à restauração das partes, uma vez que sua resposta ao crime não possui, como principal figura, a pena.

Por fim, o princípio do respeito absoluto aos direitos humanos e a dignidade da pessoa humana atua como guia para a atuação da Justiça Restaurativa, ao servir como parâmetro, para a efetividade de todos os demais princípios deste modelo.

Exatamente por inexistir um consenso quanto aos princípios que regem a Justiça Restaurativa, o autor brasileiro aponta os princípios defendidos por Jan Froestad e Clifford Shering178, que seriam: focalizar a atenção nas opções para a paz futura mais do que em questões de restauração e re-integração; estender os canais para a indicação dos “casos” para além do sistema de justiça criminal; forjar uma ligação mais forte entre a administração de conflitos individuais e a abordagem de problemas genéricos; organizar processos restaurativos de tal modo que as responsabilidades, os recursos e o controle sejam levados do profissionalismo restaurativo patrocinado pelo Estado para as comunidades locais e os leigos; e estabelecer regras, procedimentos e mecanismos de exame que são necessários

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SALIBA, 2009, p. 154.

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para assegurar que a prática local respeite os valores centrais da Justiça Restaurativa.

Refletindo esta ausência de consenso na doutrina, os documentos oficiais, ao se pronunciarem e estabelecerem os princípios desse sistema, do mesmo modo, não apresentam uma lista única, apesar dos indicados não serem conflitantes entre si.

A Resolução 2002/12 do Conselho Econômico e Social da ONU estabeleceu princípios básicos para serem adotados pelos países no que concerne à Justiça Restaurativa, quais sejam:

1. Programa Restaurativo – se entende qualquer programa que utilize processos restaurativos voltados para resultados restaurativos. 2. Processos Restaurativos – significa que a vítima e o infrator e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, participam coletiva e ativamente na resolução dos problemas causados pelo crime, geralmente a ajuda de um facilitador. O processo restaurativo abrange a mediação, conciliação, audiências e círculos de sentenças. 3. Resultado Restaurativo – significa um acordo alcançado devido a um processo restaurativo, incluindo responsabilidades e programas, tais como reparação, restituição e prestação de serviços comunitários, objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e logrando a reintegração da vítima e do infrator.179

Por outro lado, no Brasil, a Conferência Internacional de Acesso à Justiça por Meios Alternativos de Resolução de Conflitos ratificou os princípios estabelecidos no I Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa por meio de documento denominado de Carta de Brasília. O referido documento indica como princípios os seguintes:

1. Plenas e precedentes informações sobre as práticas restaurativas e os procedimentos em que se envolverão os participantes.

2. Autonomia e voluntariedade na participação em práticas restaurativas, em todas as suas fases.

3. Respeito mútuo entre os participantes do encontro; 4. Co-responsabilidade ativa dos participantes.

5. Atenção às pessoas envolvidas no conflito com atendimento às suas necessidades e possibilidades.

6. Envolvimento da comunidade, pautada pelos princípios da solidariedade e cooperação.

7. Interdisciplinaridade da intervenção.

8. Atenção às diferenças e peculiaridades sócio-econômicas e culturais entre os participantes e a comunidade, com respeito à diversidade.

9. Garantia irrestrita dos direitos humanos e do direito à dignidade dos participantes.

10. Promoção de relações equânimes e não hierárquicas.

11. Expressão participativa sob a égide do Estado Democrático de Direito. 12. Facilitação feita por pessoas devidamente capacitadas em

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PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato Campos Pinto; ______. (Org.). Justiça restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005, p. 24.

procedimentos restaurativos.

13. Direito ao sigilo e confidencialidade de todas as informações referentes ao processo restaurativo.

14. Integração com a rede de políticas sociais em todos os níveis da federação.

15. Desenvolvimento de políticas públicas integradas.

16. Interação com o sistema de justiça, sem prejuízo do desenvolvimento de práticas com base comunitária;

17. Promoção da transformação de padrões culturais e a inserção social das pessoas envolvidas.

18. Monitoramento e avaliação contínua das práticas na perspectiva do interesse dos usuários internos e externos180.

Ainda no aspecto relativo à adoção de princípios da Justiça Restaurativa no âmbito nacional, a Comissão de Legislação Participativa, na Sugestão nº 99, de 2005, elaborou projeto de lei cujo objeto consiste na adoção de procedimentos da Justiça Restaurativa no sistema de justiça criminal, no qual constam como princípios a serem adotados:

Art. 9º – Nos procedimentos restaurativos deverão ser observados os princípios da voluntariedade, da dignidade humana, da imparcialidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da cooperação, da informalidade, da confidencialidade, da interdisciplinariedade, da responsabilidade, do mútuo respeito e da boa-fé.

Parágrafo Único - O princípio da confidencialidade visa proteger a intimidade e a vida privada das partes181.

Em que pese a diferenciação existente entre os princípios defendidos pelos doutrinadores, ou mesmo pelos documentos oficiais, permanece a ideia central de que a Justiça Restaurativa deve ser baseada em um consenso entre as partes, o qual deve decorrer de um diálogo para que se seja possível restabelecer as relações entre as partes e com a própria comunidade.