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3 A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO RESPOSTA ADEQUADA A

4.3 A NECESSIDADE DE DIVERSIFICAR AS RESPOSTAS AOS DELITOS QUE

4.3.2 Por um Processo Duplo de Descontinuidade

A violência doméstica praticada pelo cônjuge ou companheiro contra a sua consorte é uma relação paritária, sendo aconselhável299 o encaminhamento para uma mediação. E assim sendo, o processo será deslocado para uma forma de resolução não judicial do conflito.

Isso porque, as partes envolvidas no problema precisam de auxílio externo, no sentido de cessar os processos de estigmatização deflagrados pela violência. Essa efetiva reconstrução de elos é necessária, especialmente quando desta relação advieram descendentes, crianças e adolescentes que precisam que todas as condições necessárias ao seu desenvolvimento sejam respeitadas. Também pensando nisso, nas consequências de um conflito familiar, é que o caso deverá ser encaminhado para mediação, claro que quando adequada à hipótese.

Porém, a razão principal que sustenta tal destino é o desfazimento de dois processos específicos: a vitimização e a delinquência.

A intervenção dialógica, dirigida por um terceiro, na busca de uma construção direta e consensual de uma resposta ao conflito, implica em benefícios muito maiores do que a simples desobstrução do Poder Judiciário ou uma forma mais

298

Cf. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 221.

299

No capítulo seguinte serão delineados os requisitos para se encaminhar o caso para uma mediação extrajudicial.

democrática de fazer justiça. Esse modelo, efetivamente, possibilita que o caminho de sofrimento e de estigmatização seja refeito, uma vez que a vítima, tomando as rédeas da situação, entende o problema de maneira global e de forma realista, deixando de se sentir uma eterna vítima; bem como o agressor, que consciente dos seus atos, tendo enfrentado o problema de forma direta e comunicacional, não receberá o estigma de criminoso. Assim, o caminho anteriormente trilhado, será interrompido, refazendo-se os elos e oportunizando a continuidade da relação (não necessariamente nos moldes anterior).

Essa preocupação com a vítima, até pouco tempo, não era tarefa do Direito Penal, pois, como frisando alhures, na resposta a pergunta “porque punir”, os desejos da vítima não entravam na pauta de discussões, como salientado, quando da apresentação das Teorias da Pena.

Nesse sentido, ao sopesar os elementos da dosimetria da pena, o legislador até lembrou-se da vítima, na medida em que determinou que se leve em consideração as consequências do crime (esfera da vítima), porém tal previsão não implica em preocupação efetiva para com a vítima, pois significa apenas um critério definidor da sanção, que não pode ser aferido de maneira segura pelo magistrado, uma vez que este se mantém distante das minúcias que envolvem o evento danoso, conjecturando, sozinho, no seu gabinete.

Assim, o processo e o julgamento de crimes que envolvem vítimas determinadas, ocorridos diretamente entre pessoas, podem, aliás, devem, ser guiados levando-se em conta os anseios da vítima, os desejos reais do ofendido, e não apenas a valoração distante e abstrata do magistrado.

Para tanto, é necessário travar discussões a respeito dessa construção penal universal e unívoca em relação a todos os delitos por parte do Estado. É preciso levantar a questão da possibilidade de participação efetiva e decisiva da vítima na elaboração da resposta aos seus conflitos, considerando que certos delitos admitem a via alternativa do diálogo e a diversidade do caminho penal.

Essas questões só começaram a ser levantadas após o avanço da Vitimologia, quando os reflexos do delito em relação à vítima foram ganhando interesse dos estudiosos que lhe lançaram olhares e preocupações.

do crime como um enfrentamento do infrator com a lei, diante de uma violação a um bem jurídico ideal enfraqueceu a preocupação com a vítima direta dessa lesão, do modo que: “o Direito não só distancia as partes do conflito criminal, senão também abre um abismo irreversível entre elas e corta artificialmente a unidade natural e histórica de um enfrentamento interpessoal”300

.

Desta forma, pode-se conceituar o processo de vitimização como aquele pelo qual uma pessoa sofre as consequências negativas de um fato traumático, especialmente, de um delito301.

Nesse sentido, pode-se classificar a vitimização em primária, quando do cometido da experiência do fato criminoso. Esses efeitos nocivos derivados do delito: “transcendem, logicamente, os consubstanciais ao bem jurídico ou objeto ideal afetado por cada delito”302

, incluindo-se, nesse âmbito de sofrimento, as consequências psíquicas decorrentes, por exemplo, de uma violência sexual.

Já a vitimização secundária, pode ser classificada como aquela decorrente da intervenção do sistema legal que: “paradoxalmente, incrementam os padecimentos da vítima”303

. Causando-lhe mais sofrimento a intervenção estatal quando faz que ela reviva a cena do crime ao narrar, perante o juiz, os fatos, experimentando um sentimento de humilhação ainda maior quando, por exemplo, os advogados do acusado tentam atribuir-lhe a culpa (ou parte dela) afirmando que a sua conduta provocou o delito (ex: agressão sexual), além das passagens pela polícia e pela submissão dos exames médicos, além do reencontro com o agressor304.

Fala-se, ainda, na vitimização terciária, definindo-a como o “conjunto de custos da penalização sobre quem a suporta pessoalmente ou sobre terceiros, e teria a ver com a premissa lógica de que os custos do delito sobre as pessoas e sobre a sociedade devem ser ponderados.”305

E o processo de estigmatização social da pessoa que sofreu agressão, ou seja, o papel de fragilidade que a sociedade (família, escola, trabalho, comunidade) passa a encarar a vítima.

Esse processo maçante de vitimização mantém a pessoa agredida em uma

300

GOMES; MOLINA, 2008, p. 74.

301

Cf. Ibid., loc. cit.

302

Ibid., p. 79.

303

Ibid., loc. cit.

304

Cf. Ibid., loc. cit.

305

situação subalterna em relação à possibilidade de tomada de decisão, de entendimento e superação desse processo. O sofrimento inaugurado pelo evento criminoso precisa ser desfeito e não fortalecido, como se verifica na forma de resolução do conflito oficialmente apresentada.

Essa conscientização é ainda mais necessária nos conflitos domésticos, pois, nessa seara, a maioria das mulheres entra em um processo de assunção de culpa pela violência suportada, acreditando que contribuiu para a agressão perpetrada.

Assim, é preciso empoderar essa mulher agredida, possibilitando o diálogo assistido, dando voz e desfazendo o processo de inferioridade a que ela foi submetida.

Da mesma forma, o agressor de delitos não graves, e que envolve relações domésticas, muitas vezes, precisa de uma intervenção não punitiva, não havendo necessidade de encarcerar este indivíduo que, muitas vezes, precisa de auxílio do que de penalização.

Nesse sentido, o processo de violência precisa ser desfeito, com uma atitude inclusiva, que permita que esse ofensor, pontual, entenda de forma diferente a maneira de se comunicar e resolver seus conflitos pessoais.

Isso porque, muitas vezes, esse homem não é um deliquente, é um cidadão que entende de maneira equivocada certas nuances da sua relação amorosa. Acrescente-se a isso, fatores culturais que influenciam o comportamento dos indivíduos, que submersos em uma cultura machista acreditam que o comportamento de suas cônjuges/companheiras devam seguir a um padrão socialmente imposto. E quando essa expectativa é frustrada, esse homem não está preparado para lidar com esse problema que se apresenta.

Não se pode mais simplesmente olhar esse agressor pela lente do dever ser, é preciso entender que fatores sociais interagem, de forma contundente, nas escolhas desse cidadão.

Muitas vezes, uma notícia de violência doméstica é recebida com espanto pela comunidade. Olvida, essa coletividade, especialmente no Brasil, que, até pouquíssimo tempo, essa intervenção paternalista era normal, considerando-se um “direito” do cônjuge varão a obediência da mulher.

Essa concepção de mulher como sexo frágil, objeto de satisfação masculina não é recente, não havendo como dissociar esse forte fator cultural ao contexto da violência doméstica.

E não é através da imposição legislativa que essa atitude será transmutada. Muito mais do que leis rígidas, é preciso conscientização e, muitas vezes, ajuda. O homem que agride a mulher também deve ser sujeito de preocupações estatais.

Isso porque, muitas vezes, receber o estigma de delinquente não é a melhor forma de tratar esse indivíduo, que cometeu crimes de pequena e média gravidade, em um âmbito restrito, por motivos específicos, devendo o Estado adequar o tratamento dispensado a este conflito, por meio de um procedimento horizontal, possibilitando a retomada da consciência e desfazimento de um ciclo de violência.

Assim, quebrando com a racionalidade punitiva do sistema penal moderno, entendendo que punir por punir pode, em certos casos, não atingir os ideias penais, é que se defende essa possibilidade de aplicação de métodos não judiciais aos conflitos domésticos. Por uma descontinuidade nos processos de vitimização e de estigmatização do infrator, que se propõe uma diversificação e desjucialização das formas de resolução desses conflitos paritários, devendo o Estado, restringir-se, nestas hipóteses, a homologar o acordo celebrado.