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2 A (R) EVOLUÇÃO DO PODER DE PUNIR

2.2 A ABERTURA DIALÓGICA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA

2.2.2 Adaptando o Paradigma Atual aos Novos Anseios Democráticos

Constatando que o pós-guerra alterou a sociologia do Direito, Boaventura de Sousa Santos pondera que o Direito, enquanto fato social, ao mesmo tempo em que mantém certa tradição, deve existir também para manutenção do bem comum,

95

ROUSSEAU, 1973, p. 28.

96

DALLARI, op. cit., p. 131.

97

Cf. ROUSSEAU, op. cit., p. 35-36.

98

ressaltando a visão polarizada a cerca dele99.

Com efeito, relata o autor, que as dificuldades em acessar a Justiça são imensas, e norteadas por diversos problemas100 (sociais, culturais, econômicos), o que leva a administração da justiça a atender muito mais a interesses políticos do que efetivamente a resolver conflitos jurídicos101.

Baseando-se nessas observações sociológicas, o autor propõe uma reforma da política judiciária, sugerindo a criação de novos mecanismos de resolução de litígios, instituições mais leves e baratas: “localizadas de modo a maximizar o acesso aos seus serviços, operando por via expedita e pouco regulada, com vista à obtenção de soluções mediadas entre as partes”102

.

E esta opção sociológica se dá diante da crise verificada no atual sistema de construção da resposta ao conflito, pois a crise deste modelo é real e atual. É preciso admitir, para, a partir dessa assunção, começar a trilhar um caminho alternativo.

Ciente da dificuldade de reconhecer um erro e encarar como possível e concretizável uma ideia nova, no presente caso a proposta de participação efetiva dos diretamente envolvidos no processo de construção da resposta aos problemas penais, é necessário retomar a apresentação do já anunciado autor inglês Francis Bacon, uma vez que este filósofo, através de seus aforismas, alerta para a necessidade de superação de certas crenças que impossibilitam a evolução e a renovação científica.

Com efeito, Francis Bacon aduz que “são de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a mente humana. Para melhor apresentá-los, lhes assinamos nomes, a saber: Ídolos da Tribo; Ídolos da Caverna; Ídolos do Foro e Ídolos do Teatro”103

. E esclarece o autor, de maneira didática, sobre a necessidade de reconhecer essas barreiras, alertando que:

A formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos. Será, contudo, de

99

Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o politico na pós-modernidade. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2010, p. 162.

100 Cf. Ibid., p. 169-171. 101 Cf. Ibid., p. 172-174. 102 Ibid., p. 176. 103

BACON, Francis. Novum organum. Tradução de José Aloísio Reis de Andrade. 2. ed. São Paulo: Abril cultural, 1979, p. 14.

grande préstimo indicar no que consistem, posto que a doutrina dos ídolos tem a ver com a interpretação da natureza o mesmo que a doutrina dos elencos sofísticos com a dialética vulgar104.

Sobre os primeiros, Francis Bacon os denomina de Ídolos da Tribo, referindo- os àqueles fundados na própria natureza humana, na tribo ou espécie humana, afirmando que todas as percepções, tanto dos sentidos como da mente, guardam analogia com a natureza, nos termos do autor:

Os ídolos da tribo estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana. E falsa a asserção de que os sentidos do homem são a medida das coisas. Muito ao contrário, todas as percepções, tanto dos sentidos como da mente, guardam analogia com a natureza humana e não com o universo. O intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe105.

Já sobre os segundos, o filósofo assevera a natureza interna destes preconceitos, pois:

Os ídolos da caverna são os dos homens enquanto indivíduos. Pois, cada um — além das aberrações próprias da natureza humana em geral — tem uma caverna ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natureza: seja devido à natureza própria e singular de cada um; seja devido à educação ou conversação com os outros; seja pela leitura dos livros ou pela autoridade daqueles que se respeitam e admiram; seja pela diferença de impressões, segundo ocorram em ânimo preocupado e predisposto ou em ânimo equânime e tranqüilo; de tal forma que o espírito humano — tal como se acha disposto em cada um — é coisa vária, sujeita a múltiplas perturbações, e até certo ponto sujeita ao acaso106.

No tocante aos terceiros ídolos, o autor acrescenta que eles nascem diante das associações que o indivíduo realiza ao longo da sua vida. Essa troca de experiências, por meio da comunicação, afasta o intelecto, como classifica Francis Bacon ao afirmar que:

Há também os ídolos provenientes, de certa forma, do intercurso e da associação recíproca dos indivíduos do gênero humano entre si, a que chamamos de ídolos do foro devido ao comércio e consórcio entre os homens. Com efeito, os homens se associam graças ao discurso, e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E as palavras, impostas de maneira imprópria e inepta, bloqueiam espantosamente o intelecto. Nem as definições, nem as explicações com que os homens doutos se munem e se defendem, em certos domínios, restituem as coisas ao seu lugar. Ao contrário, as palavras forçam o intelecto e o perturbam por completo. E os homens são, assim, arrastados a inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias107.

Por último, alertando sobre a necessidade de se ter clareza da existência dessas barreiras, apresenta como obstáculo à evolução científica, os ídolos do

104

Ibid., loc. cit.

105 SANTOS, 2010, p. 14. 106 SANTOS, 2010, p. 14. 107 BACON, 1979, p. 15.

teatro, criticando as crenças internalizadas através da observação e absorvição do homem e pelo homem, ao expor que:

Há, por fim, ídolos que imigraram para o espírito dos homens por meio das diversas doutrinas filosóficas e também pelas regras viciosas da demonstração. São os ídolos do teatro: por parecer que as filosofias adotadas ou inventadas são outras tantas fábulas, produzidas e representadas, que figuram mundos fictícios e teatrais. Não nos referimos apenas às que ora existem ou às filosofias e seitas dos antigos. Inúmeras fábulas do mesmo teor se podem reunir e compor, por que as causas dos erros mais diversos são quase sempre as mesmas. Ademais, não pensamos apenas nos sistemas filosóficos, na universalidade, mas também nos numerosos princípios e axiomas das ciências que entraram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da negligência. Contudo, falaremos de forma mais ampla e precisa de cada gênero de ídolo, para que o intelecto humano esteja acautelado108.

Assim, sabendo que o intelecto humano, quando assente em uma convicção, tudo arrasta para seu apoio e acordo, nos dizeres ainda de Francis Bacon, torna-se imperioso alertar que é preciso despir-se desses pré-conceitos, e, para tanto, é indispensável reconhecer o funcionamento da mente humana, para, a partir daí, abandonar as amarras e encarar as novas possibilidades apresentadas.

É preciso sair da inércia, reconhecer a crise, discuti-la e apresentar novas formas de tratamento ao problema, sempre com o intuito de, pelo menos, minimizá- lo. Para tanto, é necessário alterar o paradigma de normalidade do caráter hermético e aflitivo da sanção penal para uma abertura dialogal neste processo, desbancando o paradigma dominante.

Sobre o tema de transição de paradigmas, importante o pensamento de Thomas Kuhn, quando trata das chamadas Ciências Normais, definindo-as como aquelas que se baseiam em experiências passadas, e suas conclusões são largamente aceitas. Quando se adota um paradigma como dominante, todos os esforços são no sentido de mantê-lo, pois “alguns dos problemas, tanto nas ciências mais quantitativas como nas mais qualitativas, visam simplesmente à clarificação do paradigma por meio de sua reformulação”109

. Neste sentido, complementa o autor:

A par disso, existe uma segunda razão para duvidar de que os cientistas rejeitem paradigmas simplesmente porque se defrontam com anomalias ou contra-exemplos. [...] Por si mesmas não podem e não irão falsificar essa teoria filosófica, pois os defensores desta farão o mesmo que os cientistas

108

SANTOS, op. cit., p. 15.

109

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Doeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 54.

fazem quando confrontados com anomalias: conceberão numerosas articulações e modificações ad Hoc de sua teoria, a fim de eliminar qualquer conflito aparente110.

Porém, a frustração dessa estabilidade se dá quando essas teorias, que nascem para alcançar determinados resultados, ou explicar determinadas situações, não atingem seus objetivos. Mesmo que se altere o embasamento deste paradigma, por mais de uma vez, não se obtém respostas satisfatórias.

É o que se chama inicialmente de problema. Os esforços serão no sentido de relegitimar o paradigma, para mantê-lo e perpetuá-lo.

Quando tal fato não é possível, nasce a crise e, segundo Thomas Kuhn:

As crises podem terminar de três maneiras. Algumas vezes a ciência normal acaba revelando-se capaz de tratar do problema que provoca crise, apesar do desespero daqueles que o viam como o fim do paradigma existente. Em outras ocasiões o problema resiste até mesmo a novas abordagens aparentemente radicais. Nesse caso, os cientistas podem concluir que nenhuma solução para o problema poderá surgir no estado atual da área ele estudo. O problema recebe então um rótulo e é posto de lado para ser resolvido por uma futura geração que disponha de instrumentos mais elaborados. Ou, finalmente, o caso que mais nos Interessa: uma crise pode terminar com a emergência de um novo candidato a paradigma e com uma subsequente batalha por sua aceitação111.

Em relação à sanção penal, imposta de maneira exclusiva pelo Estado, verifica-se que ela não mais consegue sustentar a intervenção estatal do modo em que se encontra, pois, diante do quadro criminal posto, pode-se afirmar que os objetivos relativos à pena não foram alcançados.

Este comportamento eleito pelo Estado, baseando na racionalidade penal moderna, no sentido de infligir obrigatoriamente uma pena aflitiva àquele que cometeu um crime, excluindo as partes diretamente envolvidas no problema da construção da réplica, não se sustenta.

Deste modo, crise instalada, surge a necessidade de transição do paradigma, pois é o mesmo Thomas Kuhn quem adverte: “decidir rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro e o juízo que conduz a essa decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a natureza, bem como sua comparação mútua”112

.

Destarte, diante do colapso, é necessário a apresentação de um novo modelo,

110 Ibid., p. 108. 111 KUHN, 1998, p. 115. 112 Ibid., p. 108.

que deve iluminar outras faces do evento criminoso, e não apenas o fato e a sanção previstos, mesmo que isso se dê de forma lenta, faz-se imprescindível defendê-lo, pois, de novo, segundo Thomas Kuhn:

A transição de um paradigma em crise para um novo do qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes uma reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações113.

O que se coloca em questão não é o porquê da sanção, ou se o regime carcerário brasileiro faliu, ou, ainda, se ele atualmente reforma o delinquente ou apenas potencializa o criminoso. O que se pretende é ampliar os espaços democráticos, também na seara penal, especialmente quando o conflito ocorre entre pessoas que já se relacionam e, provavelmente, continuarão a conviver após o processo e intervenção penal.

Especialmente nestes casos, a resposta aos conflitos penais precisa apresentar opções diferentes das atuais, a fim de que as partes convivam harmoniosamente depois do delito, oportunizando o diálogo entre os envolvidos, para que o problema seja, enfim, estancado114

.

Logo, o que se quer demonstrar é que outra forma de resposta, participativa, é mais adequada do que a atual, aflitiva e unívoca é possível em diversos delitos, desde que uma intervenção diversa seja desejada e aplicável ao caso115

. Os novos anseios sociais necessitam de um paradigma emergente, uma forma diversificada e dialógica, não sendo mais suficiente o atual processo hermético para tratar a totalidade dos conflitos.

Ainda nas premissas de Kuhn:

113

Ibid., p. 116.

114

Será, ainda, tratado neste trabalho, outro fator que corrobora para a insatisfação com a atual forma de construção da resposta penal aos delitos oriundos de violência doméstica, qual seja, a desistência por parte da vítima, que, após registrar ocorrência nas delegacias, faz as pazes com o agressor, ou, simplesmente, entende que a intervenção estatal só irá aumentar os seus problemas ou, ainda, a vítima não quer ver o pai dos seus filhos encarcerado, até porque nutre por ele algum sentimento diante de uma vida comum que tiveram durante certo (ou muito, ou pouco) tempo.

Nesse sentido, também será abordada a decisão do Supremo Tribunal Federal, ADI 4424, datada de 09 de fevereiro de 2012, no sentido de firmar entendimento sobre a espécie de Ação Penal do Crime de Lesão Corporal Leve quando praticado nas situações abarcadas pela Lei Maria da Penha, destacando os fundamentais contornos que ficaram, lamentavelmente, fora da discussão.

115

A continuidade será descrito quais os critérios serão utilizados na eleição do encaminhamento ou não do caso penal à tentativa de restauração entre os envolvidos.

Tal como a escolha entre duas instituições políticas em competição, a escolha entre paradigmas em competição demonstra ser uma escolha entre modos incompatíveis de vida comunitária. Por ter esse caráter, ela não é e não pode ser determinada simplesmente pelos procedimentos de avaliação característicos da ciência normal, pois esses dependem parcialmente de um paradigma determinado e esse paradigma, por sua vez, está em questão116.

Pelo exposto, pode-se afirmar que o modo de construção da sanção precisa de novos caminhos, trazer a vítima e o ofendido para o centro da elaboração dessa réplica ao delito, desbancando, portanto, a racionalidade penal moderna aflitiva.