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3 A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO RESPOSTA ADEQUADA A

3.2 A NECESSÁRIA DIVERSIFICAÇÃO NO SISTEMA PENAL

3.2.2 A Promessa Estatal e a Realidade Alcançada

Quando o Estado se organizou teve por meta, como demonstrado acima, a busca da concretização de valores eleitos, e, através dessa escolha, trilha meios através dos quais se alcançará essa promoção.

Ocorre que, tratando-se dos fins eleitos pelo Direito Penal, qual seja: tutelar bem jurídico, aplicando sanção com objetivo de prevenir delitos, seja alcançando os demais membros da coletividade, seja atuando sobre o sujeito que cometeu fatos rotulados como criminosos (teorias da pena), os objetivos não vem sendo

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SANTANA, 1998, p. 97.

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CHRISTIE, Niels; OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de; ISOLA, André Fonseca. Conversa com um abolicionista minimalista. Entrevista. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 6, n. 21, jan./mar. 1998, p. 14.

alcançados. E é, baseando-se nisso, que se faz inarredável a oxigenação do sistema penal, com a necessária troca de lentes e paradigmas.

Após o desbanque da certeza (razão) pela física quântica, é preciso repensar o atuar estatal de forma autista, devendo, na seara penal e processual penal, trazer as partes diretamente envolvidas no conflito para o palco de discussão.

Frise-se que não se pretende substituir o sistema. Mas diversificá-lo, na medida em que o mundo plural exige multiplicidade de opções.

Mais uma vez, é Selma Pereira de Santana quem afirma:

Ao lado das relações entre a sociedade e delinquente, o crime pode torna- los, ambos responsáveis perante a vítima. Ademais, o Estado não pode considerar-se desonerado de sua cota de responsabilidade.

O conflito real que pode estar na gênese do crime, não se soluciona com a abstração metafisica de uma restauração da ordem jurídica como condição para a superação do conflito que se exprime no crime.

Será sempre inacabada a humanização das ciências criminais e do direito processual penal enquanto se abonar a vítima ao seu destino.

Uma ciência que ignore a vitima permanecerá, em todas as suas manifestações, como uma das muitas instituições barbaras de uma sociedade só aparamente humanizada e de um pretenso Estado de Direito social153.

Constatando que o paradigma retributivo acompanha a sociedade há muito tempo, Howard Zehr pontua que o senso comum acredita que aqueles que violam a lei, praticam crime, portanto, devem ser punidos, e esta tarefa é do Estado. Pregam este caminho quase que natural e inevitável154.

Afirmando que existem outras formas de ver as coisas, e que a tomada do paradigma retribucionista não precisa ser visto necessariamente como um progresso, simplesmente porque se sobrepôs a um anterior (vingança privada)155, Howard Zehr relata que o que parece ser uma evolução pode ser apenas uma impressão desta, pois:

As interpretações históricas tendem a focalizar dois desenvolvimentos da história da justiça criminal: a ascensão da justiça pública em detrimento da justiça privada, e a crescente dependência do encarceramento como forma de punição. Não há duvida de que essas duas instâncias foram desenvolvimentos de algum tipo. Com tudo, estudos históricos recentes levantam algumas duvidas sobre o padrão e significado desses desenvolvimentos.

Normalmente pensamos no passado como um período dominado pela justiça “privada”. A justiça privada é caracterizada como vingança pessoal,

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SANTANA, 1998, p. 97.

154

Cf. ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008, p. 93.

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muitas vezes descontrolada e brutal. A moderna justiça pública, ao contrário, é vista como um processo controlado: mais humano, mais equilibrado, menos punitivo. Presumimos que as prisões são menos punitivas e mais modernas do que aquilo que ocorria antes. Segundo essa perspectiva teríamos nos tornado mais civilizados e racionais na administração da justiça e da punição. A realidade se revela mais complexa do esse quadro convencional sugeriria156.

E demonstra que esta visão temporal de melhoria não atende ao que se propôs, pois a justiça pública não civilizou, nem abrandou a punição, pois:

A justiça “privada” não era necessariamente privada, nem envolvia necessariamente vingança. As soluções “privadas” não eram necessariamente mais punitivas, menos comedidas ou racionais do que a justiça dispensada pela esfera pública. Pelo contrário. A justiça pública pode ser até mais punitiva, em sua abordagem, oferecendo uma gama mais limitada de resultados possíveis. A vingança que provavelmente ocorria antes da justiça estatal, era apenas uma dentro de um conjunto muito mais amplo de opções. A chamada justiça privada certamente tinha deficiências, mas o quadro não é tão simples quanto costumamos presumir157.

Alertando, ainda, sobre a visão que era dada ao crime na Idade Moderna, o autor constata que antes, o crime era visto como um conflito interpessoal, sendo tratado, primeiro, como um mal cometido contra uma pessoa. Valorava-se, nesse sentido, o dano efetivamente causado, nascendo obrigações a serem cumpridas por parte daqueles que violaram direito alheio. Nesse prisma, o enfrentamento era vista como uma forma de resolver conflitos, mas também uma oportunidade de negociação, restituição e, portanto, restauração, tudo com a participação efetiva das vítimas, ofensores, familiares e comunidade158.

Ora, era muito mais efetiva a solução para os conflitos, penais ou não penais, pois, além de agradar a todos, a resposta era muito mais célere e próxima dos envolvidos e da comunidade em que eles estavam inseridos.

Assim, destacando a adequação do uso de métodos privados na solução do conflito, o autor diferencia o conceito de pena e culpa nesta modalidade de justiça consensual, alertando que:

Nossos conceitos de culpa e punição podem representar uma transformação (e talvez uma perversão) desse princípio de “conversão”. A palavra grega pune significa uma troca de dinheiro por danos cometidos e pode estar na origem da palavra punição. Da mesma forma, culpa {no inglês, guilt} pode derivar no termo anglo-saxão geldun que, como a palavra alemã GELD, refere-se a pagamento. As ofensas criavam dividas. A justiça exigia que alguns passos fossem cumpridos para que considera-se reparado o mal. 156 ZEHR, 2008, p. 93-94. 157 Ibid., p. 94. 158 Cf. Ibid., p. 95.

O ofensor e a vítima (ou representante da vítima no caso de assassinato) resolviam a maior parte das disputas e danos – inclusive os que consideramos criminoso – fora das cortes. E o faziam no contexto de sua família e comunidade159.

Aludindo a participação dos envolvidos direta e indiretamente no conflito, o autor registra, ainda, a importância da igreja e dos líderes comunitários que desempenharam papeis fundamentais nessas soluções de conflito negociadas, afastando, portanto, a aplicação de regras e imposição de decisões, por parte de pessoas completamente distantes da dinâmica e realidade interpessoal e comunitária do problema160.

Apresentando, no entanto, duas modalidades de soluções negociadas para o conflito: a opção retributiva e a opção judicial, destacando que a alternativa retributiva implicava na vingança privada e:

Esta opção era adotada com menos freqüência do que em geral se pensa, e por razões óbvias. A vingança é perigosa, costuma levar a violência recíproca e derramamento de sangue. Nas sociedades caracterizadas por comunidades pequenas, de relações muito estreitas havia necessidade de manutenção dos relacionamentos. Assim, negociação e indenização faziam muito mais sentido do que a violência. Com certeza, a possibilidade estava sempre presente, mas sua aplicação era limitada e seu papel e dignificado muito diferentes daqueles que como hoje imaginamos161.

Frisa, também, o professor, que havia um interessante limite à vingança privada, eram os asilos, locais em que as pessoas acusadas de terem cometido delitos corriam para se esconder das vítimas, até sua raiva passar, e a negociação poderia ser iniciada.

Ocorre que, esta não foi a opção do Estado Absoluto, que retirou das mãos da vítima a possibilidade de participar da justiça, tomando para si, de forma absoluta, o poder de punir e a construção dessa resposta penal, independente dos desejos dos envolvidos.

Nesse prisma, acreditando-se que sempre o Estado é capaz de solucionar, de maneira mais eficiente, os problemas infracionais, optou-se por retirar ofensor e ofendido do palco das discussões.

Ora, se Dalmo de Abreu Dallari estava certo (citado acima) que a preocupação do poder político é a eficácia, devendo os fins almejados justificarem os meios eleitos, é preciso demonstrar que as promessas foram (e estão sendo) atingidas.

159 ZEHR, 2008, p. 95. 160 Cf. Ibid., p. 96. 161

Neste sentido, se cada delito tem uma razão e uma consequência peculiar, a univocidade da sanção carcerária, resposta idêntica, simples e hierarquicamente imposta, precisa ser revista, e novas formas de tratamento do delito precisam ser apresentadas.

Diante da realidade e dos efeitos de uma política criminal fechada, é que se embasa a necessidade de diversificar o modus operandi do sistema, trazendo os envolvidos para dentro do processo de construção da resposta aos conflitos taxados como criminosos.