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SOCIOLOGIA MILITAR

CAPÍTULO 3 – A SOCIOLOGIA MILITAR COMO SOCIOLOGIA ESPECIAL

3. A investigação na Sociologia Militar: Alguns obstáculos

O primeiro obstáculo que se coloca ao investigador, no estudo da Sociologia Militar, é a própria instituição militar.

Marcada pela sua missão, pela potencialidade de se transformar em agente gerador de violência organizada e legítima, em defesa de um povo ou de um território, pelo especial culto da tradição e de valores morais, pelo espírito comunitário muito vincado, pela sua natureza hierarquizada e consequente estrutura, as Forças Armadas institucionalizaram um conjunto de medidas tendentes a salvaguardar o segredo militar, a segurança da própria instituição, o seu relacionamento com o poder, com a política e com a sociedade em geral.

Apresentando-se, segundo Max Weber, como uma «organização social básica», mas respondendo a uma necessidade social histórica, as Forças Armadas vêem-se postas perante a necessidade de contrabalançar a segurança com a compreensão da sua existência pela sociedade envolvente, de quem e

para quem vivem, bem assim de acompanharem a evolução social, política e económica dessa mesma sociedade.

Algumas alterações marcadas pelo reconhecimento dessa necessidade. Têm-se constatado ao nível do relacionamento das Forças Armadas, com as Ciências Sociais no geral, mormente a partir da altura em que essas mesmas ciências foram reconhecidas como importantes auxiliares na gestão e no comando da instituição.

Importa frisar, contudo, a necessidade de os exércitos se conhecerem cada vez melhor a si mesmos e, também, de melhor serem conhecidos pela sociedade civil.

Esta necessidade advém, não de actualmente ser moda falar-se de controlo das Forças Armadas ou de relações civis-militares, no âmbito do poder, mas, como dizia Raymond Aron, de que “a maneira como os homens se

combateram foi sempre tão eficaz, para determinar as estruturas da sociedade, como a maneira como os homens trabalharam” (Aron, 1963:311).

Uma outra dificuldade relaciona-se com a posição do sociólogo relativamente à investigação. É um dilema que todos os especialistas em ciências sociais conhecem bem: a oposição entre investigação empírica e reflexão teórica.

Se a investigação empírica pode não procurar compreender ou explicar, mas, antes, aperfeiçoar instrumentos de intervenção sobre o comportamento do homem, transformando-se em meio de manipulação, a reflexão teórica pode igualmente não fornecer produto útil algum, para a acção a curto, médio ou longo prazo.

Contudo esta oposição é mais fictícia do que real, se ela supõe uma ruptura entre ambas, na medida em que as duas atitudes não são inconciliáveis, sendo mesmo complementares.

Na maioria dos casos, conforme nos diz Stouffer, “a elaboração teórica

explícita interpreta, compreende, observações aparentemente inexplicáveis, feitas no decorrer da investigação empírica” (1949:23).

Segundo Robert Merton, “hoje, a nossa tarefa principal consiste em

desenvolver teorias especiais, aplicáveis a objectivos conceptuais limitados, teorias, por exemplo, dos desvios de comportamento, das consequências inesperadas de uma acção dirigida a certo propósito, da percepção social dos grupos de referencia, do controle social, da interdependência das instituições sociais, mais do que procurar imediatamente a estrutura conceptual total, própria a produzir estas e outras teorias de médio alcance.

A teoria sociológica, se pretende progredir de modo significativo, deve prosseguir nestes planos interconexos, 1) desenvolvendo teorias especiais das quais se possam derivar hipóteses, que permitam ser investigadas empiricamente e, 2) envolvendo (e não revelando repentinamente) um esquema conceptual progressivamente mais geral, adequado a consolidar grupos de teorias especiais” (Merton, 1970:63).

Conforme foi salientado, deve-se à sociologia militar americana muito do que se tem produzido neste campo.

Esta circunstância leva qualquer investigador, que se queira dedicar ao estudo da instituição militar, à leitura e estudo dos principais sociólogos americanos.

Deve, no entanto, ter-se presente que as Forças Armadas, tal como as sociedades em que se integram, são estruturalmente diferentes umas das outras. As realidades sociais, os sistemas de valores e as práticas sociais americanas não são similares às europeias e, particularmente, às portuguesas, apesar de todas as similitudes que uma instituição universal como a militar possa apresentar.

Cada uma das diferentes Forças Armadas, como lugar de passagem para um grande número de cidadãos, reflecte no seu interior os diversos matizes da sociedade em que se «banha».

O simples decalque de conceitos sociológicos americanos, produzidos de acordo com a sua própria identidade nacional, não será, em princípio, ade- quado à análise de umas quaisquer forças armadas.

Parafraseando o tenente general Belchior Vieira, numa de suas palestras no IDN (Fevereiro de 1993), poderíamos dizer que «as teorias e métodos da

históricos, quer dizer: nasceram em contacto com certa realidade sociocultural e, por tal motivo, é possível que não possam transferir-se sem mais para outro tipo de realidade».

Um outro e não menos importante obstáculo à investigação nas Ciências Sociais, que toca também a Sociologia Militar, é o senso comum.

Este outro código de leitura do real social aparece revestido com a forma de uma crítica ao vocabulário próprio, ao aparelho metodológico e aos conceitos teóricos da investigação sociológica.

Dizem os críticos que a reflexão sociológica pode ser interessante e que, inclusive, os problemas apresentados são importantes; mas as conclusões apresentadas são evidentes.

Independentemente de, em alguns casos, o senso comum e a investigação científica poderem chegar a idênticas conclusões, tem que se realçar o valor, a segurança das conclusões científicas em detrimento das evidências propostas pela apreensão imediata da realidade social.

De facto a perspectiva sociológica nada tem a ver com a familiaridade da realidade social. Não importa reconhecer esta realidade social mas antes conhecer o mundo a que pertencemos, os objectos que nele se diferenciam e as relações que com aquele e com estes os indivíduos e os grupos mantêm.

É erróneo e ingénuo admitir que uma determinada realidade transparece directamente através, por exemplo, de dados estatísticos ou de qualquer outra modalidade de informação empírica.

De facto, essa informação, para ser produzida, teve que sofrer a influência de critérios e processos individuais ou institucionais, quer na recolha de dados, quer no seu tratamento, quer, depois, na sua apresentação.

Nenhuma técnica é imparcial e até os dados aparentemente mais objectivos são obtidos através da aplicação de grelhas, cuja escolha não é, evidentemente, neutra.

Porque veio, então, a verificar-se a grande dificuldade de afirmação académica de uma Sociologia Militar quando, a partir do fim dos anos vinte, no contexto norte-americano, começam a ganhar forma e reconhecimento as

sociologias sectoriais e especializadas, que se encontram hoje completamente instaladas?

As razões apontadas pelos vários autores referem-se a factores de na- tureza ideológico-cultural e teórica.

Podemos considerar o compreensível temor de enfrentar questões tão perturbadoras, como a da violência e da sua administração legal, da guerra e a paz, que põem em causa o sentido da história humana, ou da responsabilização do próprio homem na definição do «sentido» do devir da humanidade.

Mais do que noutras áreas da Sociologia, surgem aqui reacções emotivas do género, porquê estudar temas militares, se o resultado das investigações pode ser utilizado pelas próprias Forças Armadas para reforçar a sua posição na sociedade. Afinal aquelas investigações iludem a questão fundamental, que é a da problemática da legitimidade das Forças Armadas na sociedade, que envolve necessariamente controvérsia em relação aos valores políticos e pessoais dominantes nesta área.

Segundo Moskos e Jenkins, “contribui para as reticências no reconhecimento

da Sociologia militar a tradição daquilo que denominam pesquisa in-house, constatando- se que as investigações sociológicas referentes às Forças Armadas são; 1) Essencialmente realizadas no âmbito dos organismos militares. 2) Orientadas fundamentalmente mais para a recolha de dados do que para a análise sociológica. 3) Com finalidade nitidamente mais prática do que teórica” (1988:330).

Ao contrário do que se verifica em grande número de países, não existe em Portugal qualquer centro específico de estudo e investigação sobre questões sociológicas militares, ainda que no Instituto da Defesa Nacional (IDN), sob a tutela do Ministro da Defesa Nacional e no âmbito militar, nomeadamente nos Institutos de Altos Estudos Militares do Exército, e da Força Aérea, assim como no Instituto Superior Naval de Guerra, tenham sido produzidos alguns trabalhos de mérito.

Nas nossas universidades, o alheamento por estas questões é a regra, pese o reconhecimento por parte das autoridades universitárias, da oportunidade e pertinência da existência, entre nós, de uma Sociologia espe-

cializada em temas militares.

Constituem ténues excepções, os estudos produzidos em domínios sectoriais, no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) na Universidade Nova de Lisboa e, principalmente, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, onde decorre anualmente um mestrado em Estratégia, com várias dissertações defendidas na área militar, assim como algumas teses de doutoramento relacionadas com a organização militar, na especialidade das Relações Internacionais.

Este Instituto conta, no seu corpo docente, com alguns militares no activo ou na reserva, contendo uma forte ligação às Forças Armadas, por via de conferencistas ligados ao Instituto de Defesa Nacional ou aos Institutos de Altos Estudos Militares.

O ISCSP também foi pioneiro na área de Geopolítica e de Geoestratégia, assim como contribuiu para desenvolvimento do interesse pela Sociologia Militar, através da Ciência Política e das Relações Internacionais.

LISTA DE ESTUDOS NA ÁREA MILITAR

AUTOR TEMA ESCOLA DATA

Maria Carrilho FA’s e Mudança Política em

Portugal no séc. XX ISCTE 1979 Alberto da Silva

Nogueira. O espectro da guerra e a procura da paz ISCSP 1986 José Luís Pinto

Ramalho. Portugal e a estratégia de futuro da OTAN ISCSP 1987 Duarte Nuno de

Ataíde Saraiva Marques Pinto Soares

Estratégia nacional referenciais

históricos, perspectivas actuais ISCSP 1989 António José Neves

Berbém

O Atlântico a sul como questão

estratégica mundializada ISCSP 1989 Luís Manuel Alves de

Fraga

Portugal e a Primeira Grande Guerra: os objectivos políticos e o esboço da estratégia nacional 1914-

1916

ISCSP 1990 Rui Mora de Oliveira

Estratégia aeroespacial; ciclos de evolução e perspectivas futuras

ISCSP 1992 Nuno António Bravo

Mira Vaz

Aspectos do condicionamento das opiniões públicas durante as guerras de África; 1961-1974

ISCSP 1992 Maria Regina da Costa

Flor e Almeida

Segurança no Mediterrâneo

António Joaquim Viana de Almeida

Tomé

O poder aeroespacial e o seu

impacto na estratégia ISCSP 1995 António Maria F. de

Tavares de Carvalho

Estratégias de Portugal ISCSP 1995 Pedro Félix Kissoka. Viver com conflitos internos ISCSP 1995

José Manuel Freire

Nogueira As guerras liberais; uma reflexão estratégica ISCSP 1995 Cardoso de Sousa Institucional-ocupacional dos Análise da Tendência

Oficiais do Exército Português

ISPA 1996 Manuel Fernando

Rafael Martins. A influência da tecnologia no desarmamento ISCSP 1996 José Medeiros Ferreira O Comportamento Político dos

Militares ISCTE 1997 Helena Carreiras Mulheres nas Forças Armadas

Portuguesas ISCTE 1998 Fernando Pereira Marques O Exército e a sociedade em Portugal ISCTE 1999 Vítor Daniel Rodrigues Viana

Perspectivas para um sistema de segurança colectiva: a ONU e as

operações de apoio à paz ISCSP 1999 Maria Francisca Alves

Ramos de Gil Saraiva

As Nações Unidas e a segurança colectiva: a carta das Nações

Unidas em transformação ISCSP 1999 José Augusto Lima Cooperação europeia na luta contra o terrorismo ISCSP 1999

João Vieira Borges

Intervenções militares portuguesas na Europa do séc. XVIII: uma

análise estratégica

ISCSP 2000 Serafim de Oliveira

Leitão

Segurança europeia; perspectivas de evolução

ISCSP 2000 Luís Manuel Alves de

Fraga

O fim da ambiguidade: a estratégia nacional portuguesa de

1914 a 1916

ISCSP 2001 João José Brandão

A evolução do conceito estratégico ultramarino português da

Conferência de Berlim à descolonização

ISCSP 2001 João Paulo Santos de

Castro Fernandes O ultramar português no apaziguamento internacional ISCSP 2002 Henrique Gomes Bernardo

Estratégia de um conflito ISCSP 2003 Carlos Nelson Lopes

da Costa

Estratégia marítima ISCSP 2003 Mário Jorge Nunes

Cruz

O sistema bipolar de segurança em Portugal

ISCSP 2003

É de destacar também a criação de uma cadeira opcional de Sociologia das Instituições Militares no ISCTE e de uma cadeira curricular (semestral) de Sociologia Militar na Universidade Moderna.

Mesmo na Academia Militar, onde já em 1959 tinham sido introduzidas as cadeiras de Introdução às Ciências Sociais e de Sociologia Geral, só no ano lectivo de 1998-99, os currículos dos cursos das Armas e Serviços passaram a incluir uma cadeira de Sociologia Militar (semestral), embora alguns assuntos do seu âmbito fossem abordados noutras cadeiras.

Mais recentemente, no ano de 2001, foi criado na Universidade Independente uma Pós-graduação em Sociologia Militar que, por curiosidade, não contempla na sua estrutura curricular uma única cadeira de Sociologia Militar.

Paralelamente temos, em 2003, a criação de uma Pós-graduação na Universidade Internacional em Ciências Militares, que têm como uma das suas cadeiras estruturais a Sociologia Militar.

E, no entanto, como sublinhava Maria Carrilho em 1978, na revista Nação e Defesa “a Instituição Militar, presente em todas as sociedades com Estado, tem sido

instrumento determinante no moldar político da História” (1978:34) com Portugal

como exemplo vivo.

É geralmente reconhecido que, mesmo nos países com um acentuado desenvolvimento da investigação sociológica militar e um consequente interesse académico (EUA, Inglaterra, França, Alemanha, Holanda, Suécia e Itália) subsiste um apreciável atraso, entre a sociologia militar e outros ramos especiais da Sociologia.

Para além da «incompatibilidade», que alguns sociólogos afirmam existir, entre as suas posturas políticas liberais e a análise de instituições, com carácter ou tendências autoritárias, como consideram ser as militares, são diversas as razões apontadas para aquele atraso, segundo Harries Jenkins e Charles Moskos (1988).

Em primeiro lugar, uma reserva ligada à questão fundamental da legitimidade última dos estudos sociológicos militares, inserida no problema geral da eventual utilização dos dados obtidos na investigação. A pergunta crítica é frequentemente expressa nos seguintes termos: «Para quê estudar as Forças Armadas se o resultado das investigações pode vir a ser utilizado pelas

próprias Forças Armadas para fortalecer a sua posição na Sociedade»?

Em segundo lugar, a persistência de uma tradição de investigação «interna», derivada do amplo campo de acção que, no âmbito das ciências sociais, foi explorado por técnicos dos EUA, durante a II Guerra Mundial, com vista ao recrutamento militar.

Em terceiro lugar, o temor, consciente ou inconsciente, de enfrentar a questão da violência e da sua gestão, uma temática que põe em causa valores fundamentais da sociedade.

Em quarto lugar, as dificuldades de acessibilidade aos dados essenciais para os estudos sociológicos do âmbito interno das instituições militares, tradicionalmente «resistentes» à observação exterior.

Em quinto lugar a incompatibilidade entre as posturas políticas liberais dos sociólogos – investigadores e a análise de instituições com carácter ou tendências autoritárias.

Mas nenhuma destas razões constitui, porém, obstáculo intransponível para o desenvolvimento dos estudos sociológicos sobre a instituição militar, hoje considerados como uma faceta importante da empresa intelectual, que devem o seu maior desenvolvimento às investigações realizadas nos EUA conforme se referiu anteriormente variadas vezes.

PARTE II

TEORIAS E MODELOS DE