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3. DIÁLOGOS ENTRE O CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E A

3.1 IDENTIFICANDO ONDE É NECESSÁRIO PROTEGER MELHOR

3.1.2 A invisibilidade dos povos indígenas no Brasil

Outro aspecto de grande relevância para o fim de compreender os efeitos ou resultados que têm decorrido da interpretação da Constituição brasileira a partir de paradigmas essencialmente europeus diz respeito ao tratamento conferido aos povos indígenas em nosso país.

Partimos, inicialmente, do entendimento que a Constituição não distingue a que

pessoas ela destina sua proteção quando trata de dignidade. Se é assim, entende-se que a

referida proteção recai sobre todas as pessoas (humanas), de modo que a todas elas deve ser garantido o direito de desenvolver sua vida de maneira a concretizar seu projeto existencial. Sendo os projetos existenciais múltiplos em uma comunidade plural, todos eles merecem consideração e proteção, pois permitem à pessoa traçar e alcançar um sentido para sua vida.

Nesse sentido é que evidencia-se a relação estrita entre a proteção da dignidade de vida e de um mínimo existencial350, referencial este que, além de agregar um componente ecológico – como condição para que se assegure uma existência digna e duradoura –, deve contemplar também um componente cultural, e até mesmo espiritual, a fim de alcançar a proteção completa de realidades indispensáveis para a concretização do sentido coletivo de existência traçado pela comunidade.

A própria Constituição Federal brasileira estende sua proteção para abranger projetos de vida plurais, reconhecendo o direito à identidade cultural e ao desenvolvimento de projetos existenciais culturalmente diversos, em geral manifestados sob uma perspectiva coletiva, tal como ocorre com comunidades tradicionais e, de modo bastante específico na Constituição brasileira, com os povos indígenas.

Assim, é certo que o texto constitucional nacional reconhece uma proteção muito mais expressiva para os povos indígenas do que aquele destinado às demais comunidades tradicionais, talvez notadamente pelo fato de tais povos possuírem uma relação (entre a comunidade humana, e desta com os elementos não-humanos e com o ambiente no qual estabelecem suas interações) que precede a colonização, e que resulta em um reconhecimento de seus direitos originários sobre suas terras tradicionalmente ocupadas.

350 Para a compreensão do conceito de um mínimo existencial, é possível consultar: SARLET, Ingo Wolfgang. O

Estado Social de Direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental da propriedade. In: Revista

Eletrônica sobre a Reforma do Estado, n. 9, mar.-maio 2007. Acerca de um mínimo existencial em sua

dimensão ecológica, menciona-se: AYALA, Patryck de Araújo. Direito fundamental ao ambiente, mínimo existencial ecológico e proibição de retrocesso na ordem constitucional brasileira. In: Revista dos Tribunais, v. 901, nov. 2010. BRASIL. Senado Federal. Princípio da proibição de retrocesso ambiental. Comissão de meio ambiente, defesa do consumidor e fiscalização e controle, Brasília-DF. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242559>. Acesso em 30 abr. 2013.

Por meio do reconhecimento do direito a um projeto de vida – que, conforme demonstrado na segunda seção desta pesquisa, tem sua origem na Corte Interamericana de Direitos Humanos –, enfatiza-se que todos devem ter a capacidade de tomar decisões e realizar escolhas sobre como definir os rumos de sua própria existência, e de ter acesso às condições que viabilizem atingir níveis suficientes e satisfatórios de felicidade e de bem-estar.

Esse bem-estar pode ser atingido conforme as escolhas de um projeto existencial próprio e conforme o que se considera como indispensável a uma referência que é flexível, cultural e socialmente determinada, e que, no caso dos povos indígenas, enfatiza uma realidade coletiva, moralmente plural, na qual se integra também um componente ecológico, qual seja, a proteção dos espaços e recursos naturais visando assegurar qualidade de vida e os interesses das futuras gerações.

Então, se o Estado deve respeitar os projetos de vida de uma forma geral (porque, do contrário, estaria causando um dano a um determinado projeto de vida, gerando direito à reparação, conforme entendimento da Corte Interamericana), esse mesmo Estado está vinculado ainda mais fortemente ao dever de assegurar condições existenciais que alcancem projetos de vida plurais, que estão voltados para a proteção e conservação dos espaços naturais, garantindo padrões de qualidade de vida e bem-estar tanto para a comunidade no tempo presente, quanto para as gerações futuras.

O que se quer demonstrar é que, em um Estado que se configura sob a formulação teórica de um Estado ambiental, a garantia de que se realizem projetos de vida sustentáveis não se manifesta apenas na forma de um dever, mas de um objetivo estatal. Isto porque ele está intrinsecamente ligado a outros objetivos desse Estado ambiental, sempre levando em conta sua finalidade última, que consiste em assegurar, por todos os instrumentos que estejam ao seu alcance, e em cooperação com a coletividade, a durabilidade de todas as formas de vida.

Esse dever estatal pode ser cumprido ao assegurar as condições existenciais que alcancem projetos plurais, protegendo a liberdade de escolhas sobre projetos complexos, diferenciados e cada vez mais próximos dos objetivos que precisam ser alcançados por esse Estado ambiental. Aqui é possível visualizar uma aproximação entre os objetivos de proteção dos artigos 225 e 231 da Constituição Federal brasileira, a fim de que seja possível alcançar, como objetivo comum, a continuidade da vida com qualidade.

Quando tais deveres estatais (de proteger projetos existenciais culturalmente diversos e de assegurar, pelos melhores meios que tiver ao seu alcance, a durabilidade da vida) são reconhecidos como objetivos relevantes do Estado e da sociedade, e quando se nota que essa

noção de dignidade deve ser integrada por outras referências (nos termos desenvolvidos na subseção anterior), então resta claro que a ordem jurídica brasileira assume um compromisso de proteger realidades indispensáveis para que a vida se desenvolva em seu sentido integral. Esse conjunto de realidades é composto por uma série de fatores que se inter-relacionam e que compõem, juntos, um sentido de mínimo existencial.

Associado à noção de mínimo de existência em todas as suas dimensões (social, econômica, cultural, ecológica, espiritual), está o dever de vedação de retrocesso, desenvolvido na primeira seção desta pesquisa. A proibição de retorno nos níveis de proteção conferidos merece ênfase nesta investigação não apenas em sua dimensão ecológica, mas também no sentido aqui proposto, de garantir o desenvolvimento de projetos plurais, sobretudo aqueles que enfatizam uma outra proposta de vivência, que agrega elementos culturais e ecológicos. O Estado, então, não pode proteger menos, cabendo a ele aprimorar os níveis de proteção já conferidos e garantir a sua concretização no plano fático.

No entanto, com relação aos direitos dos povos indígenas, a melhoria nos níveis de proteção, ou, ao menos, a concretização da proteção já assegurada constitucionalmente, não é o que vem acontecendo (de forma plena) na prática. Portanto, apesar da previsão constitucional da proteção dos projetos existenciais culturalmente determinados, coletivos e infinitos (porque não se esgotam no tempo) dos povos indígenas, é necessário reconhecer que, no plano da concretização de tais direitos, estes vêm sendo constantemente violados, pela omissão ou, em outros casos, pela própria ação estatal. Para ilustrar essa realidade, faremos referência, a seguir, a dois casos concretos.

Um caso de grande relevância para a discussão aqui desenvolvida diz respeito à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol351, em Roraima. Após o extenso processo de demarcação, que se arrastou por décadas, houve, em 2005, a demarcação contínua do território, a qual foi contestada por fazendeiros da região, que alegavam ofensa às suas possibilidades de desenvolvimento econômico, além de ter sido apontado por oficiais do Exército brasileiro que tão extensa área destinada aos povos indígenas na fronteira do país representaria uma ameaça à segurança nacional.

Com a atribuição de pronunciar-se acerca da constitucionalidade da demarcação contínua da terra indígena, o Supremo Tribunal Federal trouxe, por meio de sua decisão, aspectos importantes para a afirmação dos direitos dos povos indígenas no Brasil,

351

Os detalhes do processo podem ser consultados em: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular.

Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Petição n.º 3.388. Relator: Ministro Ayres Brito. Brasília,

especialmente quando reconheceu a constitucionalidade da demarcação contínua do território, por considerar a terra indígena para esses povos, não como um simples direito, mas como “verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia” 352

.

Apesar dos aspectos positivos da decisão, é preciso reconhecer que o Supremo Tribunal Federal acabou por fazer de sua interpretação do art. 231 da Constituição Federal um legítimo instrumento de redução da condição de sujeitos dos povos indígenas naquele caso e, inegavelmente, em decisões e outros atos futuros353 que vierem a se concretizar com base no julgado ora mencionado.

Isso porque, ao julgar a constitucionalidade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o STF impôs dezenove condicionantes, que configuram verdadeiras restrições aos direitos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas, enfatizando a ideia de controle estatal sobre esse território e reduzindo o âmbito de aplicação de direitos como a autodeterminação, a consulta, a participação e o acesso e uso dos recursos naturais.

As condicionantes impostas pelo STF não constam no texto constitucional. A Constituição Federal – ela, a quem esse Tribunal deve garantir correta interpretação e aplicação – assegura aos povos indígenas, por meio de seu art. 231, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, além de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. A Constituição não apresenta restrições ou limitações ao exercício desses direitos, de modo que não caberia ao STF fazê-lo.

Nessa situação, visualiza-se como o Poder Judiciário, por meio de sua mais alta Corte nacional, atua por vezes limitando direitos já conquistados. O outro exemplo que julgamos relevante expor nesta oportunidade ilustra como o Estado, desta vez por meio da Administração Pública (indireta), age contrariamente a compromissos assumidos no âmbito constitucional e convencional.

352 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular. Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Petição n.º 3.388. Relator: Ministro Ayres Brito. Brasília, 19 de março de 2009, p. 8. Disponível em:

<www.stf.jus.br>. Acesso em 13 out. 2014.

353 As condicionantes impostas pelo Supremo Tribunal Federal para a demarcação da Terra Indígena Raposa

Serra do Sol têm o potencial de refletir-se em futuras demarcações, aumentando, assim, o grau de lesividade aos direitos dos povos indígenas. Como exemplo do efeito da decisão do STF sobre casos futuros, a Advocacia Geral da União expediu a Portaria n.º 303, de 16 de julho de 2012, fixando as condições impostas pelo STF naquela situação específica como limites para a atuação da AGU. A Portaria em sua íntegra pode ser consultada em: BRASIL. Advocacia Geral da União. Portaria n.º 303, de 16 de julho de 2012. Disponível em: <http://www.agu.gov.br/SISTEMAS/SITE/PaginasInternas/NormasInternas/AtoDetalhado.aspx?idAto=596939 &ID_SITE>. Acesso em 13 out. 2014.

Trata-se do caso da Usina Hidrelétrica Teles Pires, em Mato Grosso, que teve a Licença Prévia e a Licença de Instalação concedidas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA), mesmo contrariando dois aspectos essenciais na situação: a) a ausência de consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas Kayabi, Munduruku e Apiaká, afetados pela obra; e b) a violação de territórios sagrados para os povos mencionados.

Ocorre que as obras da UHE Teles Pires envolvem, dentre outras interferências sobre o meio ambiente natural, a inundação das corredeiras do Salto Sete Quedas. Esse local é a área onde ocorre a reprodução dos peixes migratórios que constituem a base da alimentação dos povos indígenas que vivem na bacia do Rio Teles Pires. E, ainda, para os Munduruku, sua existência cultural e espiritual depende da continuidade da paisagem tal como existe ali, pois as corredeiras de Sete Quedas são, para eles, um local sagrado, onde vivem espíritos ligados a sua cosmologia e também os espíritos de seus antepassados.

A fim de tentar evitar os efeitos danosos ao equilíbrio das comunidades ameaçadas pela obra da UHE Teles Pires, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado de Mato Grosso propuseram uma ação civil pública354 em face do IBAMA e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), requerendo, principalmente, a suspensão do licenciamento da UHE Teles Pires até a realização da consulta livre, prévia e informada aos povos que serão afetados pelo empreendimento.

Neste exemplo em análise, o judiciário exerce papel diferenciado na proteção dos valores ecológico e cultural, enfatizando, dentre diversos e importantes fundamentos de decisão, a necessária redução dos riscos como um instrumento de eficácia dos princípios da precaução, da prevenção e da proibição do retrocesso ecológico. Destaca, ainda, a garantia do mínimo existencial ecológico dos povos indígenas, os quais, conforme destacado na decisão, foram diretamente atingidos em seu patrimônio de natureza material e imaterial.

Desse modo, além de apresentar fundamentos para a proteção dos espaços naturais abrangidos pelo empreendimento e para a proteção dos povos indígenas afetados em seus modos de vida, a decisão enfatiza uma relação entre a proteção da natureza e dos projetos existenciais dos povos indígenas, em que os dois sentidos se inter-relacionam e se complementam.

354 BRASIL. Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Ação Civil Pública. Processo n° 0003947-

44.2012.4.01.3600. Sentença proferida pelo Juiz Federal Substituto Marcel Queiroz Linhares em 12 de novembro de 2014, p. 98. Disponível em: <http://processual.trf1.jus.br/consultaProcessual/numeroProcesso.php ?secao=TRF1>. Acesso em 13 out. 2014.

A decisão do juiz federal substituto da 1ª Região, prolatada em novembro de 2014, julgou procedente o pedido formulado na inicial, impondo aos réus a obrigação de não fazer, consistente no impedimento de dar continuidade ao licenciamento e às obras da UHE Teles Pires, até que o Congresso Nacional realize a consulta aos povos indígenas afetados, conforme determinação do art. 231, § 3º, da Constituição Federal.

A atuação estatal, por meio de seus poderes, quando ocorre de modo similar aos exemplos aqui mencionados, viola um compromisso firmado por meio do projeto de futuro definido na Constituição, além dos compromissos internacionais assumidos, a exemplo da Convenção nº 169 da OIT, bem como da Convenção da Diversidade Biológica355. Esses compromissos podem encontrar melhores condições de ser viabilizados, sobretudo por meio de um arranjo jurídico aberto ao diálogo e ao aprendizado com outras experiências, a exemplo daquelas destacadas na segunda seção desta pesquisa356. Os caminhos para possibilitar esse diálogo aberto à reflexão serão desenvolvidos na subseção seguinte desta investigação.

É fundamental compreender que a violação do projeto existencial dos povos indígenas afeta não apenas sua sobrevivência física, mas todo o sentido de sua vida. A eliminação do

sentido é extremamente grave, e é isso o que ocorre quando suas referências espirituais e suas

relações diferenciadas para com a natureza são destruídas por atuações ou decisões que ignoram as consequências práticas dessas escolhas. É tão mais grave tratar de violação de direitos dos povos indígenas porque não é possível tratar suas consequências com as soluções tradicionais do direito ocidental europeu. Não é possível falar em indenizações nestas hipóteses; danos espirituais causados a povos indígenas não podem ser reparados. Não há como recompor a situação original depois que a harmonia é perdida, depois que suas

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Nesse sentido, o Brasil, ao ratificar a Convenção 169 da OIT, assumiu o compromisso de, por meio de seu governo, desenvolver (em conjunto com os povos indígenas) uma ação coordenada e sistemática para proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade, zelando inclusive pelo seu bem-estar espiritual. Por meio da Convenção sobre Diversidade Biológica, o Brasil se comprometeu a respeitar, preservar e manter o conhecimento e as práticas das comunidades locais e povos indígenas, considerando especialmente (no contexto da Convenção) que os estilos de vida tradicionais são relevantes à conservação e ao uso sustentável da biodiversidade.

356 As experiências constitucionais do Equador e da Bolívia foram enfatizadas na segunda seção desta

investigação, por acreditarmos que consistem em experiências relevantes para propor o diálogo e aprendizado por parte da Constituição brasileira. Conforme exposto naquela oportunidade, as duas Constituições acima referidas foram escolhidas por apresentarem um nível de ruptura mais forte em relação às outras Constituições, mesmo aquelas participantes do constitucionalismo latino-americano; por esse motivo é que Equador e Bolívia representam, no âmbito desse movimento, um novo ciclo, com características próprias. Na segunda seção (item 2.2.1) foram abordadas, ainda, decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, as quais destacam o direito a um projeto de vida como uma dimensão do próprio direito à vida. Assim, danos espirituais causados aos povos indígenas ferem seu direito a um projeto de vida construído de maneira coletiva, duradoura e indivisível. Portanto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos constitui, também, um interlocutor relevante na busca pelo aprimoramento nos níveis de proteção e na construção de um sentido de direito ao ambiente que seja considerado culturalmente plural, indivisível, integral.

referências culturais são destruídas. No entanto, o direito ocidental não consegue compreender e lidar adequadamente esses conflitos, porque os pressupostos (os parâmetros) são diversos dos seus.

Portanto, apesar da proteção constitucional aos direitos das etnias e à pluriculturalidade, na prática, tais valores estão até o momento ocultos; são invisíveis. Apesar de toda a construção teórica do sentido de dignidade, essa referência parece operar resultados apenas em uma perspectiva individual (liberal), pois, para os povos indígenas, essa referência (dignidade) não tem conseguido oferecer respostas satisfatórias.

Uma Constituição baseada em valores e referências inspiradas em uma realidade distinta da sua acaba por apresentar imperfeições em sua aplicação, porque falha desde a compreensão de seu sentido. Assim, o conflito enfrentado na América Latina (e aqui não se deve esquecer que o Brasil está inserido na América Latina) com relação à garantia de direitos aos povos indígenas não está presente na Europa. A grande questão é compreender como uma Constituição pautada em valores europeus consegue oferecer proteção a esses sujeitos (no caso, os povos indígenas). Neste momento, parece que a resposta oferecida é, simplesmente, nenhuma. Essa proteção não ocorre de fato da maneira plena como deveria decorrer do artigo 231 da Constituição; ocorre de uma maneira muito incompleta, limitada.

Neste momento, nota-se que para a sociedade civil, e até mesmo para o Estado, os povos indígenas são invisíveis357; a cultura é invisível. Esses sujeitos e valores somente se tornam visíveis por meio do choque358. Enquanto não houver choque, esses povos simplesmente parecem não existir enquanto sujeitos de direitos.

O desafio (e a resposta que se espera favorecer por meio do diálogo com elementos do constitucionalismo latino-americano, em sua proposta descolonizadora e transformadora) consiste em como fazer com que a Constituição consiga torná-los visíveis. Muito mais do que proteger pessoas (em um sentido individual), é importante torná-los (também, e principalmente, no plano fático), sujeitos de sua história e de seus direitos.

357 Romero trabalha com a construção teórica de direitos ambientais dos povos indígenas, reforçando, portanto, a

relação de complementaridade entre a proteção da natureza e de projetos de vida de tais povos. Em sua pesquisa, a autora apresenta os direitos à participação e à consulta como institutos necessários para que os povos indígenas desenvolvam-se conforme seu autogoverno, para a concretização de seu projeto de vida. No entanto, no plano prático, participação e consulta continuam sendo direitos invisíveis. ROMERO, Ellen Cristina Oenning. Os

direitos ambientais dos povos indígenas. Dissertação (mestrado). Programa de Pós-Graduação em Direito

Agroambiental, Faculdade de Direito, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2012, p. 118.

358 Entre as situações de choque das quais os povos indígenas fazem uso para dar visibilidade às suas demandas,

estão manifestações e fechamento de rodovias (em prática conhecida como “pedágio”). Somente quando impõem sua presença é que esses povos parecem ser notados. Mas as respostas do próprio Estado e da grande massa de pessoas em geral destoa daquilo que se esperaria para viabilizar os compromissos assumidos em