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2. O CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO COMO NOVO PROJETO

2.4 A JURISPRUDÊNCIA DAS CORTES EQUATORIANA E BOLIVIANA A PARTIR

A grande inovação representada pelo terceiro ciclo do constitucionalismo latino- americano, por meio das Constituições do Equador e da Bolívia, tem um potencial muito rico para estabelecer novos rumos para o direito, no sentido de assumir o compromisso com a existência da vida em uma perspectiva que não se esgota no tempo.

No entanto, é necessário ter a clareza de que as alterações constitucionais e legislativas, de maneira isolada, não são capazes de implicar em mudanças no plano concreto. O resultado pretendido apenas poderá ser alcançado quando coletividade e poder público assumirem, juntos, em todas as suas escolhas, em todas as suas esferas de decisão, o compromisso com o respeito e a proteção da vida.

Nesse sentido, um dos planos em que cabe ao poder público a atuação para concretizar as disposições constitucionais e legais é o Poder Judiciário, por meio do qual é realizado o controle de todo o ordenamento, visando dar coerência ao sentido proposto pela Constituição, bem como são decididos os conflitos concretos aplicando os princípios e regras ali constantes. No que se refere ao potencial transformador das Constituições equatoriana e boliviana, portanto, é importante que os direitos da natureza e o direito ao bem viver constituam razões

da decisão, de maneira efetiva, e não que constem apenas como argumento a mais, incapazes

de influenciar a decisão proferida. Cabe, neste momento, analisar de que maneira tais disposições vêm sendo enfrentadas pelas Cortes constitucionais do Equador e da Bolívia.

Passados alguns anos do início da vigência das Constituições dos Estados supramencionados, verifica-se que já começa a se delinear uma jurisprudência em suas respectivas Cortes Constitucionais, a respeito do bem viver e dos direitos da natureza, ou da Mãe Terra, no ordenamento jurídico desses países.

A Corte Constitucional do Equador tem utilizado como fundamento o direito ao bem viver na solução de diversos casos. De maneira menos frequente, há menção aos direitos da natureza nos julgados. No que se refere ao bem viver, este surge, não raro, associado ao direito ao trabalho299, à educação300, à seguridade social301 e à igualdade302.

299

Ver, por exemplo, os casos: 0008-09-IS, julgado em 23 jul. 2009; 0019-09-IS, julgado em 24 nov. 2009; 0009-09-IS, julgado em 29 set. 2009; e as sentenças: 0017-2009-RA, de 17 jun. 2009; e 0820-2008-RA, de 13 jan. 2009. Disponíveis em: <http://www.corteconstitucional.gob.ec/>. Acesso em: 31 jul. 2014.

300 A exemplo dos casos: 0041-09-IS, julgado em 10 jun. 2010; 0038-09-IS e 0029-09-IS, julgados em 13 jan.

2010; e 0002-09-IN, julgado em 08 abr. 2010. Disponíveis em: <http://www.corteconstitucional.gob.ec/>. Acesso em: 31 jul. 2014.

301 Ilustra-se com os seguintes casos: 0042-09-IS, julgado em 25 maio 2010, e 0023-09-IN, julgado em 10 jun.

E, ainda que haja na Constituição equatoriana a previsão específica para os direitos da natureza, permanece também um viés em que o meio ambiente é reconhecido como condição para a qualidade de vida e dignidade humana. Nesse sentido, a Corte tem julgado o direito a viver em um ambiente sadio associado a direitos de liberdade303, não afastando, naturalmente, o reconhecimento de que a natureza pode ter seus próprios direitos assegurados, quando for o caso – especialmente ao envolver o equilíbrio ecológico e as funções essenciais dos ecossistemas.

Dentre os casos que a Corte Constitucional do Equador teve a oportunidade de analisar, foi feito o exame de decretos executivos por meio dos quais declarou-se estado de exceção em determinada província do Equador, sob o fundamento de fazer cessar as atividades de aproveitamento florestal em bosque nativo, permitindo assim a regeneração natural da vegetação304.

Após ter sido reconhecido o cumprimento dos requisitos formais para a declaração do estado de exceção, os argumentos utilizados para a solução do caso desenvolveram-se no sentido de que as altas taxas de desmatamento ameaçam os serviços ecossistêmicos que “permitem à coletividade o acesso ao direito a um ambiente sadio”. A decisão faz referência à obrigação estatal de “proteger os direitos da natureza e aplicar as medidas de precaução e restrição das atividades que possam conduzir à extinção das espécies, à destruição de ecossistemas ou à alteração permanente dos ciclos naturais”.

Outro caso aqui utilizado para ilustrar o efeito das novas disposições constitucionais na jurisprudência do Equador versa sobre uma situação de escassez de água, a qual levou à declaração de estado de exceção em províncias equatorianas, a fim de assegurar a captação, armazenamento e distribuição de água para o consumo humano e o uso agropecuário305.

O Estado justificou a medida de exceção como forma de minimizar as condições de vulnerabilidade face ao déficit hídrico enfrentado pela região, visto que “a população tem direito a viver em um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, que garanta a sustentabilidade e o bem viver”. Não são feitas outras menções ao bem viver, de modo que a

302 Por exemplo, os casos: 0125-09-EP e 0171-09-EP acumulados, julgados em 07 jul. 2009. Disponíveis em:

<http://www.corteconstitucional.gob.ec/>. Acesso em: 31 jul. 2014.

303

Como exemplo, ver os seguintes casos: 0048-09-IS e 0025-10-IS acumulados, julgados em 22 dez. 2010. Disponíveis em: <http://www.corteconstitucional.gob.ec/>. Acesso em: 31 jul. 2014.

304 ECUADOR. Corte Constitucional del Ecuador. Casos nº 0003-13-EE e 0004-13-EE acumulados, julgados em

15 jan. 2014. Disponível em: <http://www.corteconstitucional.gob.ec/>. Acesso em: 31 jul. 2014.

305 ECUADOR. Corte Constitucional del Ecuador para el período de transición. Caso nº 0004-10-EE, julgado em

decisão centra-se em discutir a presença dos requisitos para a declaração de constitucionalidade do estado de exceção.

O terceiro caso que aqui citamos para ilustrar a aplicação dos direitos de bem viver e dos direitos da natureza na Corte equatoriana diz respeito, também, à declaração de constitucionalidade de estado de exceção. Vale lembrar que, de acordo com os próprios julgados da Corte, admitir um estado de exceção não implica, necessariamente, a previsão de restrição de direitos constitucionais, uma vez que é possível utilizar esse mecanismo quando se tratar de proteger direitos que não seriam protegidos através de mecanismos ordinários; tais situações seriam, então, uma variante dos estados de exceção restritivos de direitos constitucionais306.

No caso em comento, estão também presentes os fundamentos do estado de exceção na proteção do direito ao ambiente e ao sumak kawsay, em decorrência dos altos níveis de contaminação da lagoa de Yahuarcocha. A intervenção do Estado no caso concreto ocorreu por meio da proibição total de qualquer atividade capaz de gerar impactos ambientais na lagoa. Dessa forma, o Estado assume um protagonismo na proteção da natureza e do bem viver, “estabelecendo mecanismos efetivos de prevenção e controle da contaminação ambiental, recuperando os espaços naturais degradados e o manejo sustentável dos recursos naturais” ,

conforme consta na decisão.

A Corte equatoriana ressalta que o sumak kawsay é parte da estrutura do Estado, “sobre o qual se assenta o projeto de Estado que conduz a sociedade equatoriana a um bem viver”. O fundamento baseia-se na manutenção do “equilíbrio entre o ser humano, os recursos naturais e o desenvolvimento, em um marco de racionalidade e equilíbrio”. Destaca-se também que o Estado garante a seus habitantes o acesso aos direitos constitucionais, constituindo especialmente como marco “os direitos econômicos, sociais e culturais, como são o ambiente, a saúde, a educação, o desenvolvimento, etc.”.

De maneira geral, é possível perceber na Corte equatoriana que o bem viver e os direitos da natureza vêm ganhando espaço nas decisões, especialmente para justificar medidas estatais que objetivam assegurar o equilíbrio ecológico do ambiente, bem como uma relação harmônica entre a comunidade humana e os elementos naturais.

Nota-se, no entanto, que tais aspectos surgem, na maior parte das vezes, como elementos adicionais, mas não essenciais, da decisão. Em outras palavras, o bem viver e a natureza enquanto sujeito de direitos encontram dificuldades para surgir como razões de

306 ECUADOR. Corte Constitucional del Ecuador para el período de transición. Caso nº 0008-09-EE, julgado em

decidir, de maneira que, na maior parte das situações, é possível retirar da decisão as linhas em que tais argumentos estão inseridos, obtendo, ao final, o mesmo resultado no processo.

Apesar de o enfoque desta pesquisa ser constitucional, é relevante citar um julgado da Corte Provincial de Justiça de Loja, referente a uma ação de proteção em que constaram como polos a natureza versus o governo provincial de Loja307.

Com base no artigo 71308 da Constituição do Equador, Richard Frederick Wheeler e Eleanor Geer Huddle interpuseram uma ação de proteção em favor do rio Vilcabamba, e contra o Governo Provincial de Loja, em decorrência da ampliação da estrada Vilcabamba- Quinara, de responsabilidade do governo provincial. A ausência de estudos de impacto ambiental provocou danos à natureza, especialmente por conta do depósito de grandes quantidades de pedras e materiais de escavação no leito do rio.

O julgado considera o princípio da precaução enquanto dever dos juízes, a fim de promover a efetiva tutela dos direitos da natureza, aplicando também a inversão do ônus da prova. Desse modo, não se trabalha somente com a certeza do dano, mas com a sua probabilidade, de forma a evitar a contaminação ou degradação.

Como elemento central da decisão, está o reconhecimento no plano concreto de que a natureza é sujeito de direitos, merecedora de proteção por si só, e que qualquer pessoa pode buscar junto ao poder público a restauração dos ambientes degradados. Os danos ambientais são reconhecidos como “danos geracionais”, por sua capacidade de impactar não apenas as gerações atuais, mas também as futuras. Foi enfatizado que, no caso em comento, não há colisão entre direitos constitucionais, visto que a proposta e a decisão não seriam a não construção da estrada, mas a realização da obra em observância aos direitos constitucionais da natureza309.

307 ECUADOR. Corte Provincial de Justicia de Loja. Juicio nº 11121-2011-0010, julgado em 30 mar. 2011.

Disponível em: <http://www.corteconstitucional.gob.ec/>. Acesso em: 31 jul. 2014.

308 “Art. 71. La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete

integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos.

Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la naturaleza. Para aplicar e interpretar estos derechos se observaran los principios establecidos en

la Constitución, en lo que proceda.

El Estado incentivará a las personas naturales y jurídicas, y a los colectivos, para que protejan la naturaleza, y promoverá el respeto a todos los elementos que forman un ecosistema”. Cf. ECUADOR. Constitución del

Ecuador. 2008. Disponível em: <http://www.asambleanacional.gov.ec/documentos/constitucion_de_bolsillo.pdf

>. Acesso em: 10 abr. 2012.

309 ECUADOR. Corte Provincial de Justicia de Loja. Juicio nº 11121-2011-0010, julgado em 30 mar. 2011.

Ainda que não tenham sido determinadas medidas específicas de restauração integral do rio, a decisão é de grande relevância, por trazer os direitos da natureza na condição de elemento central do julgado, operando enquanto eixo condutor de todo o desenvolvimento da argumentação jurídica para a proteção da natureza e de todos os elementos que a compõem.

No que se refere à jurisprudência no Tribunal Plurinacional boliviano, o bem viver vem sendo utilizado como fundamento em diversas situações julgadas pela referida Corte, desde a resolução de pretensões em ação penal, relativas a prisões ilegais e ao não respeito da celeridade processual310, como também a privação da liberdade do menor por tempo superior ao previsto pela lei311, e até mesmo a alegação de violação do direito ao trabalho, à saúde familiar, à vida e à segurança jurídica312.

De maneira mais próxima ao objeto do presente estudo, um dos julgados do Tribunal Plurinacional da Bolívia analisa a aplicação de uma resolução administrativa frente à legislação florestal daquele país, no que se refere a autorizações de desmatamento. A decisão destaca que a Constituição ambiental boliviana está voltada à proteção do meio ambiente e à gestão dos riscos ambientais, dialogando com princípios do Direito Internacional Ambiental, tais como os princípios da precaução e da prevenção, a fim de evitar que se concretizem danos e perigos aos sistemas de vida da Mãe Terra313. Nos termos da decisão, se é papel do Estado assumir uma postura ativa na prevenção dos riscos, então é papel dos juízes adotar as necessárias medidas tendentes a proteger os direitos da Mãe Terra, sob pena de responsabilidade.

310 Nesses casos, a construção da jurisprudência assinala que o Estado sustenta-se, dentre outros valores, na

liberdade, cuja concreção consubstancia-se no fim máximo, que é o bem viver. Cf. BOLIVIA. Tribunal Constitucional Plurinacional. Sentencia Constitucional 1688/2011-R, julgada em 21 out. 2011. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.gob.bo/>. Acesso em: 23 abr. 2012.

311 Na fundamentação da decisão, considerou-se que, de acordo com a nova ordem constitucional, os princípios e

valores do novo Estado Plurinacional da Bolívia assumem-se e promovem-se como de caráter ético-morais da sociedade plural, o “ama qhilla, ama llulla, ama suwa”, máximas milenares que foram constitucionalizadas e que devem ser praticadas por toda pessoa, física ou jurídica. Especialmente considerando o princípio do ama

qhilla, exige-se que todo indivíduo observe uma conduta de vida diligente, e isso é exigido, ainda em maior grau,

de um servidor público como é o juiz, do qual se deve cobrar uma atitude de acuidade na administração da justiça, sobretudo quando afeta o bem viver e a vida harmoniosa. Cf. BOLIVIA. Tribunal Constitucional Plurinacional. Sentencia Constitucional Plurinacional 0015/2012, julgada em 16 mar. 2012. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.gob.bo/>. Acesso em: 23 abr. 2012.

312 Neste caso, considerou-se, como parte da fundamentação, que o direito à saúde não significa somente o

direito a não sofrer com uma enfermidade, mas também o direito a uma existência com qualidade de vida, e ainda, que a saúde é um valor e fim do Estado Plurinacional, já que o bem estar comum e o respeito à saúde conduzem a um bem viver. Cf. BOLIVIA. Tribunal Constitucional Plurinacional. Sentencia Constitucional 1580/2011-R, julgada em 11 out. 2011. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.gob.bo/>. Acesso em: 23 abr. 2012.

313 BOLIVIA. Tribunal Constitucional Plurinacional. Sentencia Constitucional 0548/2013, julgada em 14 maio

Se por um lado as diferentes situações em que o bem viver é utilizado como fundamento nas decisões do Tribunal Plurinacional boliviano reforçam o entendimento de que o direito ao bem viver possui muitas inter-relações, sendo uma totalidade que exige a harmonia entre diversos outros direitos, por outro lado nota-se que as potencialidades do texto constitucional são muito maiores.

Vale mencionar, nesse sentido, um voto dissidente proferido na sala plena do Tribunal Plurinacional da Bolívia, a respeito do controle de constitucionalidade do Estatuto Autonômico Indígena Originário da Marka Pampa Aullagas. A decisão havia declarado a compatibilidade desse Estatuto com a Constituição Política da Bolívia. O autor do voto dissidente não discorda dessa parte dispositiva da decisão. Entende, no entanto, que o Tribunal não deveria limitar-se à realização do “teste de constitucionalidade”, mas deveria “pronunciar-se expressamente sobre os alcances da autodeterminação dos povos indígenas originários campesinos, o caráter voluntário da elaboração dos Estatutos Autonômicos Indígenas e o respeito à natureza” 314

.

Isso porque, nos termos do voto dissidente, da Constituição boliviana de 2009 emerge um constitucionalismo plurinacional descolonizador, de forma que do Estado Plurinacional Comunitário resulta um pacto de povos, e não somente um Estado que “reconhece direitos” aos povos indígenas, já que são os povos indígenas que “se erguem como sujeitos constituintes, definindo o novo modelo de Estado e as relações entre os povos que o conformam”. No marco desse novo paradigma de sociedade, alternativo ao “desenvolvimentismo”, surge o bem viver.

Nesse mesmo voto, foi destacado que a Constituição boliviana tem características que a distinguem e individualizam, dando conta de um constitucionalismo sem precedentes, de modo que os intérpretes do texto constitucional “devem ser fiéis a seus fundamentos, aos princípios e valores que consagra, com a finalidade de materializar e dar vida às normas constitucionais”.

A observação trazida no voto dissidente presta-se a fazer um alerta para que as disposições constitucionais não figurem nas decisões das Cortes constitucionais da Bolívia e do Equador apenas como elemento a ser mencionado na fundamentação, mas que possam influenciar efetivamente no resultado das decisões, de modo a concretizar o objetivo de proteção da vida e sua durabilidade, por meio de um sentido de indivisibilidade entre os

314

BOLIVIA. Tribunal Constitucional Plurinacional. Aclaración de voto. Expediente nº 02015-2012-05- CEA. Proferido em 12 maio 2014. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.gob.bo/>. Acesso em: 01 ago. 2014.

direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais, em uma perspectiva de complementaridade e integridade.

É certo que as constituições latino-americanas, especialmente por meio do discurso proposto naquelas proclamadas no século XXI, o qual remete à cosmologia dos povos indígenas e destaca os direitos da natureza e do bem viver, são uma fonte importante para propor o diálogo com outras experiências, inclusive com a experiência constitucional brasileira. No entanto, parece-nos que tal interação pode ser mais proveitosa na medida em que os próprios tribunais – no caso, equatoriano e boliviano – viabilizem, de fato, a aplicação de tais disposições constitucionais com toda a carga transformadora que é possível decorrer dos textos constitucionais em estudo.

3. DIÁLOGOS ENTRE O CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E A